Redação Pragmatismo
Cinema 10/Jun/2019 às 15:00 COMENTÁRIOS
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José Padilha não sabe o que fazer com o monstro que ajudou a alimentar

Publicado em 10 Jun, 2019 às 15h00

Lava Jato: diretor José Padilha agora não sabe o que fazer com o monstro que ajudou a alimentar. Em uma das cenas da segunda temporada de 'O Mecanismo', o personagem de Moro coleciona capas de revista sobre ele mesmo e fica com o olhar perdido quando a filha pergunta se é verdade que ele iria entrar na política. Ali a decepção não é da criança com o pai. É do entusiasta com o ídolo

José Padilha não sabe o que fazer com o monstro que ajudou a alimentar
Sérgio Moro e José Padilha (Imagem: Lula Marques | PT e Captura de tela – Montagem: PP)

Matheus Pichonelli, TAB

Na primeira temporada de “O Mecanismo”, série ficcional da Netflixlivremente inspirada em eventos reais” sobre a operação Lava Jato, o diretor José Padilha levou oito episódios e cerca de 400 minutos para resumir, em uma espécie de PowerPoint de papéis pendurados na parede, como gira a engrenagem do conluio entre poder político e econômico no Brasil.

Na voz de um policial desolado interpretado por Selton Mello, o cineasta mostrou que, por aqui, os políticos nomeiam as diretorias das estatais, que dão as obras para as mesmas empreiteiras, que superfaturam e devolvem o dinheiro, para os políticos e para os diretores, em forma de propina. O mesmo mecanismo, afirma o personagem, vale para quem falsifica a carteirinha ou suborna o guarda para aliviar a multa.

Em outras palavras: se o brasileiro tem um signo, este signo é a corrupção. À apatia de seu personagem que descobre sozinho o suposto coringa do baralho, o diretor respondia com uma sequência épica que reconstituía a prisão de uma dezena de empreiteiros ao fim da primeira temporada. Era uma alusão à operação Juízo Final, desencadeada pela Polícia Federal em 2014.

Os acusados eram levados para o xadrez enquanto o público, antes humilhado, era então exaltado pelos versos de Nelson Cavaquinho: “Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente“.

Na tempestade perfeita das crises econômica e política no Brasil, aquelas cenas causaram rebuliço às vésperas da eleição presidencial de 2018. Ejetada do poder após o escândalo, Dilma Rousseff veio a público dizer que a narrativa era “mentirosa e dissimulada“.

Não se sabe como ela reagiu ao saber que, na segunda temporada, o impeachment é tratado como uma farsa montada por ex-aliados e adversários para contrapor sua incapacidade de frear a Lava Jato. O pretexto das pedaladas fiscais é definida em uma reunião entre os arquétipos de Aécio Neves, Michel Temer e Eduardo Cunha.

Na nova temporada da série, o inimigo agora é outro – mas nem tanto. Procurada (e devidamente informada do spoiler), a ex-presidente não quis se manifestar dessa vez.

Um novo alvo

Quando os novos episódios chegaram à gigante do streaming, na sexta-feira 10 de maio, o ex-presidente Michel Temer acabava de ser preso pela segunda vez, o ministro da Educação explicava os cortes nas instituições de ensino com a ajuda de bombons, e o presidente Jair Bolsonaro estava possesso com as críticas dos “especialistas de sempre” que atacavam sua proposta de estender o porte de armas para diversos profissionais, entre eles jornalistas e caminhoneiros.

Quem poderia imaginar que o país das delações forçadas e prisões preventivas exaltadas pela série chegaria a tal estágio de distopia?

Padilha, se imaginou, não levou a sério a própria fantasia. Em março de 2018, durante entrevista ao programa “Conversa com Bial”, na TV Globo, o cineasta admitia que a Lava Jato havia colocado um “custo” na eleição. Ele defendia que partidos como o PT, o PSDB e o PMDB deveriam ser extintos e, mesmo temendo a possibilidade de os brasileiros elegerem uma espécie de Donald Trump, o “vácuo” era melhor que todas essas opções. A esperança, afirmou ele, era que a virtude estivesse em algum lugar ali no meio do espectro político, de onde sairia uma versão tupiniquim do presidente francês Emmanuel Macron.

O sistema é foda, talkey?

Padilha sonhou com Macron e acordou com Jair Bolsonaro, que, como um personagem da série, diz ser vítima do “sistema” de um país “ingovernável“.

Segundo Padilha, a culpa pela eleição de Bolsonaro é da esquerda que decidiu apoiar Fernando Haddad (PT) quando estava claro que só quem não tinha envolvimento com a Lava Jato teria chance de vencer. A declaração foi dada em entrevista à revista “Veja”.

Uma vez eleito, Bolsonaro roubou de Padilha a esperança e o fascínio pelo ex-juiz e agora ministro da Justiça Sergio Moro, a quem o cineasta já chamou de “samurai ronin“. Há a possibilidade que o processo de desencanto se intensifique: uma série de reportagens publicadas no domingo 9 de junho pelo site “The Intercept Brasil” mostra que Moro orientou as investigações da Lava Jato por meio de mensagens trocadas pelo aplicativo Telegram com o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa.

Em uma das cenas da segunda temporada, o personagem que remete ao juiz coleciona capas de revista sobre ele mesmo e fica com o olhar perdido diante da TV quando a filha pergunta se é verdade que ele iria entrar na política – o que, na ficção, ele nega. Ali a decepção não é da criança com o pai. É do entusiasta com o ídolo, que de herói nacional passou a ser chamado por ele de “salame fatiado e entregue em pedaços ao centrão para aprovar a reforma da Previdência“.

A exemplo do que sentia por outro ídolo, o ex-goleiro Bruno, o flamenguista José Padilha disse que não podia reclamar antes “porque não sabia do assassinato que ele ia cometer“. O assassinato, no caso, era o pacote anticrime do ministro que, segundo o diretor, era um pacote “pró-milícia“. Se mantida a mesma linha de raciocínio, as revelações sobre a influência de Moro nas investigações da Lava Jato devem receber avaliação semelhante.

Da escravidão à Lava Jato

A distância em relação ao juiz pintado como herói é uma estratégia de quem percebeu, com inteligência, que o ministro está sendo queimado simbolicamente em praça pública após ser blindado pela imprensa e se meter onde não sabe. A avaliação é de um espectador da série, o sociólogo Jessé Souza.

Autor do livro “A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato“, Souza diz que a série é um típico produto da indústria cultural que nada de braçada em concepções dominantes que já estão na cabeça das pessoas. No livro, o autor rechaça a ideia de que no Brasil a corrupção é um dado cultural. Esse pressuposto, escreve ele, é parte do esforço midiático para convencer todo um povo de que ele é inferior não só intelectualmente, mas também moralmente. A lógica embutiria a ideia de que “é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utilizá-las, já que os outros são honestos de berço e nós seríamos corruptos de berço“.

Em entrevista ao UOL, ele não titubeia em dizer: “a série é bolsonarista“. Segundo ele, o bolsonarismo é resultado do caldo da “histeria e da criminalização da política” produzido na esteira da Lava Jato. Em nome do combate à corrupção, afirma, foram destruídas as noções de presunção da inocência.

Quando você destrói as crenças na democracia, você anseia por um antidemocrata“, diz. O combate à corrupção, segundo o autor, exige a compreensão de que a verdadeira espoliação no país se dá por meio da sonegação e do “roubo do orçamento via dívida pública, que se apodera da poupança e do trabalho de todas as classes“.

Ele cita um levantamento, divulgado pela Tax Justice Network, em 2010, segundo a qual os bilionários brasileiros detinham cerca de US$ 520 bilhões (ou mais de R$ 1 trilhão) em paraísos fiscais.

A histeria em torno da corrupção na política torna invisíveis as verdadeiras causas da pobreza e do desemprego no país. Quem ganha com isso se não os donos do mercado? Quando você criminaliza a política, você criminaliza a soberania popular. E a única defesa do povo é a política.” Na opinião de Jessé Souza, Padilha “confirma a enganação com virtuosismo técnico“. “Não acredito que ele seja imbecil, mas um manipulador“, completa.

Se gritar pega ladrão?

Na série, Bolsonaro aparece apenas durante a reconstituição da votação do impeachment na Câmara – aquela em que ele exalta o torturador e ídolo Carlos Alberto Brilhante Ustra. Só ali o policial incorruptível admite que, do vazio, pode surgir coisa pior.

O desencanto de Padilha com os rumos da Lava Jato e alguns de seus personagens, porém, só fica evidente quando o estrago está feito – nas telas e no Brasil real. Acompanhadas em sequência, há uma coleção de sentenças que cabem como uma luva à mitologia bolsonarista, segundo a qual só um outsider poderia implodir o “mecanismo” por dentro. A começar pela abertura, que mostra todos os presidentes eleitos desde 1989 com uma tarja de marginal no rosto ao som do samba “Reunião de bacana, cujo refrão é “Se gritar `pega ladrão´, não fica um, meu irmão‘”.

A demonização da política, na série, é também uma construção estética. A classe empresarial e política, do PSDB ao PT, é sempre retratada como uma reunião de velhos ranzinzas no sofá tomando uísque e discutindo dois únicos assuntos: como espoliar o país e como estancar a sangria das investigações. As relações pessoais são frias ou quase não existem – quando existem, são compradas ou mediadas por dinheiro.

Os investigadores, por sua vez, são jovens, idealistas, bonitos, interessantes, vivem em apartamentos modestos, dividem a cerveja, convivem com uma tensão sexual entre eles, são amados pelos amigos, pela família e andam de mãos dadas com os filhos.

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Entre humanos e não humanos, o vácuo é construído entre diálogos e monólogos do policial que fariam corar o mais árduo defensor do bolsonarismo. (Um antiglobalista raiz teria orgasmos, por exemplo, nas cenas de perseguição a um doleiro no Paraguai, “a pátria da sacanagem barata“, onde o personagem pede remédio para azia antes de comer uma iguaria local, diz que “puteiro paraguaio é uma baita redundância” e que o Mercosul se resume a um esquema de contrabando de cigarro).

O personagem diz que, no Brasil “a lei é madrinha da corrupção“, que “o mecanismo se renova a cada quatro anos” e “que a democracia brasileira é um jogo de cartas marcadas“, como se ressoasse a ideia do diretor de que a democracia no Brasil é uma forma de expropriação, como expressou a Pedro Bial.

A reportagem entrou em contato com os três partidos retratados na série: PT, MDB e PSDB. Deles, apenas a direção tucana se pronunciou. A resposta veio em meados de maio. Para a legenda, é “falsa, inconsequente e injusta a imputação que lhe é feita como parte do ‘mecanismo’ de corrupção instituído no Brasil“.

O partido diz que “os realizadores da indigitada série televisiva abusam da metonímia ao atacar a parte pelo todo, ofendem a verdade ao ultrajar o partido por acusações que ainda restam ser apuradas contra alguns de seus membros e prestam um lastimável desserviço à democracia ao deturpar a realidade, desprezando os fatos, numa indisfarçável tentativa de desacreditar uma organização partidária que tem entre seus propósitos principais o aprimoramento do funcionamento das instituições e a defesa do Estado democrático de Direito contra qualquer ameaça de retrocesso a situações autoritárias“.

Os ataques a educadores, a perseguição de professores, a demonização de artistas e produtores culturais, a extensão do direito de matar, os devaneios de Olavo de Carvalho, o racha entre militares e a família real, a proximidade com as milícias, os tuítes sobre golden shower e os silêncios sobre os 80 tiros disparados no carro de uma família no Rio são só os capítulos mais recentes de uma temporada que dispensa a ficção. Você desconfia quem é o roteirista desse enredo?

A nota do PSDB

O PSDB concebe a liberdade de expressão e de expressão artística como indispensáveis para o Estado Democrático de Direito e tem no respeito ao pluralismo de ideias uma de suas marcas inalienáveis na atuação partidária.

É exatamente a postura propositiva em favor das liberdades públicas que autoriza o PSDB a rotular de falsa, inconsequente e injusta a imputação que, segundo o portal UOL, lhe é feita em produção artística comercial, citando-o, segundo o repórter – “como parte do ‘mecanismo’ de corrupção instituído no Brasil desde a redemocratização“.

A ética é diretriz fundamental da organização e do funcionamento do PSDB, cuja história, desde a sua fundação, tem legado lições exemplares de comportamento moral e de defesa do interesse público em todos os níveis de representação política e em todas as áreas da administração pública para as quais os seus membros foram chamados a contribuir.

A conduta pessoal de qualquer filiado, que venha a ser incompatível com os princípios e as responsabilidades partidárias, agride primordialmente o próprio PSDB e exige, como tem merecido, reação disciplinar prevista no seu estatuto, não devendo servir de pretexto para generalizações que visem a denegrir o partido como um todo, e que pretendam, a serviço de uma controversa versão da realidade política brasileira, desvirtuar seus méritos e inegáveis contribuições ao fortalecimento do regime democrático e à promoção do desenvolvimento econômico e social do país.

A liberdade de expressão e crítica deve ser exercida com responsabilidade, porque interessa a todos que assim seja. A prevalecer a informação indicada, os realizadores da indigitada série televisiva abusam da metonímia ao atacar a parte pelo todo, ofendem a verdade ao ultrajar o partido por acusações que ainda restam ser apuradas contra alguns de seus membros e prestam um lastimável desserviço à democracia ao deturpar a realidade, desprezando os fatos, numa indisfarçável tentativa de desacreditar uma organização partidária que tem entre seus propósitos principais o aprimoramento do funcionamento das instituições e a defesa do estado democrático de direito contra qualquer ameaça de retrocesso a situações autoritárias.

A resposta de Padilha

Procurado para comentar as críticas do PSDB à série, José Padilha afirmou que “os brasileiros sabem, e os procuradores e juízes concursados também, que o PSDB, hoje conhecido como o partido do operador Paulo Preto, usa caixa dois desde a primeira eleição de FHC“.

E completou: “Caixa dois não tem origem, mas o dinheiro saiu de algum lugar né? Saiu de onde? O mesmo vale para PT e PMDB. Sobre o PSDB em particular, ninguém esquece do apego deste partido ao poder, e de como foi aprovada a emenda da reeleição de FHC… E de como foi feita a privatização das teles… Sim, não havia delação premiada. Erros deste tipo o PSDB não comete, só o PT. Mas agora que há, estamos conhecendo bem as histórias do Rodoanel… Sim, não foram pegos os políticos que remeteram alguns dos muitos bilhões de dólares enviados por CC5 pelo Banestado para fora do Brasil quando o PSDB era governo… Não havia delação premiada. Mas que o dinheiro foi enviado, isso foi né… Quem permitiu as operações via CC5? Quem remeteu os recursos? Para quem? A ideia de que denunciar o mecanismo que opera no Brasil, em todos os níveis da administração pública, no legislativo e no executivo, é denunciar a atividade política, é balela. Equivale a se esconder atrás de uma suposta defesa da atividade política para justificar a corrupção desta atividade. Gostaria que PSDB, PMDB e PT explicassem para os brasileiros por que o país não cresce de forma contínua faz mais de 40 anos… Por que estamos afundados em violência? Por que estamos favelizados se a política que eles fazem é tão sincera e bem-intencionada? A política não implica em corrupção sistêmica. O que implica em corrupção sistêmica é a política viciada, que PSDB, PMDB PT e outros partidos mais implantaram no país“.

Padilha disse também que fala por si, não pelo policial Ruffo (Selton Mello), que é um personagem. “Além de vestir a carapuça, os líderes de nossos maravilhosos partidos não sabem a diferença entre realidade e ficção?“, questionou.

Ele afirmou ainda que as filmagens levaram seis meses e que, no Brasil, não há cenário político estável por mais de seis dias. “A culpa, é claro, é das séries e dos artigos que escrevo, que certamente estão destruindo a atividade política saudável que Cunha, Temer, Lula, Aécio, Serra, Palocci, Cabral praticaram.

Sobre o resultado das urnas, Padilha lembrou que, bem antes das eleições, escreveu “em letras garrafais“, na “Folha de S. Paulo“, que Bolsonaro não era aceitável na Presidência do Brasil. “Sim, às vezes a verdade não provoca sentimentos positivos. E, no entanto, a imprensa vive dando notícia ruim… O UOL noticia corrupção o tempo todo. Você está sugerindo que o UOL ajudou a eleger o candidato que disse que ia mudar tudo o que está aí? Imagino que não, certo? Criticar um sistema corrompido não é o mesmo que cair no conto do vigário (de Bolsonaro, de Aécio, de Cabral, de Lula…) de gente que promete acabar com a corrupção e não cumpre“.

O diretor enviou os comentários antes das revelações sobre a influência de Moro nas investigações da Lava Jato.

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