Redação Pragmatismo
América Latina 26/Fev/2019 às 11:45 COMENTÁRIOS
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A aventura de Bolsonaro na Venezuela e a "ajuda humanitária" desnudada

Publicado em 26 Fev, 2019 às 11h45

A farsa da ajuda humanitária ficou desnudada. Tratava-se de uma emboscada para promover um golpe interno por meio de uma ação externa, visando instalar um governo subserviente aos interesses dos Estados Unidos. Se a eleição de Maduro é suspeita, a autoproclamada presidência de Guaidó não tem legitimidade

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Fronteira entre a Venezuela e o Brasil (Imagem: AP)

Aldo Fornazieri*

Não é preciso ser defensor do governo de Nicolás Maduro para repudiar, com veemência, a intromissão absurda e criminosa dos governos dos Estados Unidos, da Colômbia e do Brasil nos assuntos internos da Venezuela. De fato, Maduro não é um bom governante, é uma das causas da infelicidade e da diáspora do povo venezuelano. Mas isto, neste momento, fica num plano secundário em face da agressão externa que a Venezuela está sofrendo. As agressões são patrocinadas por Donald Trump, Iván Duque e Jair Bolsonaro, respectivamente presidentes dos Estados Unidos, Colômbia e Brasil.

A farsa da ajuda humanitária ficou desnudada. Tratava-se de um ardil, de uma emboscada, para promover um golpe interno por meio de uma ação externa, visando derrubar o governo venezuelano e instalar um governo ilegítimo e golpista de Juan Guaidó, subserviente aos interesses dos Estados Unidos.

Se a eleição de Maduro é suspeita sob vários aspectos, a autoproclamada presidência de Guaidó não tem nenhuma legitimidade. Ele afirma que segue a Constituição. E a Constituição da Venezuela manda que em caso de interinidade de um presidente ele é obrigado a convocar eleições no prazo de 30 dias. Os 30 dias da autoproclamação de Guaidó já expiraram, o que demonstra que ele já rasgou a Constituição, perdeu a respeitabilidade e se revelou um fantoche, um joguete, nas mãos de Trump. Ao apelar para forças estrangeiras Guaidó traiu o povo venezuelano, sua soberania, sua autodeterminação.

Trump, Duque e Bolsonaro são responsáveis pela anarquia, pela violência e pelas mortes que se espalharam nas fronteiras da Venezuela com a Colômbia e o Brasil. Se esses governos intervencionistas quisessem realmente promover ajuda humanitária aos venezuelanos teriam entregue os donativos à ONU e à Cruz Vermelha a quem cabe, de direito e de bom senso, promover ações de ajuda humanitária. Mas, evidentemente, tratou-se de uma ação intervencionista nos assuntos internos da Venezuela.

Bolsonaro, secundado pelo seu chanceler, violou a Constituição brasileira e a Carta das Nações Unidas. A agressão só não foi maior graças ao bom senso equilíbrio dos generais que compõem o governo brasileiro que, até este momento, merecem um elogio por impedirem a ampliação da aventura golpista de Bolsonaro. Com efeito, o Artigo 4º da Constituição brasileira afirma que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: “I – Independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos pelo progresso da humanidade; X – concessão de asilo político”.

A Câmara dos Deputados e o Senado Federal deveriam convocar o chanceler Ernesto Araújo para que preste conta das tentativas de violar o que prescreve a Constituição no que se refere às relações internacionais. O deputado Eduardo Bolsonaro também deveria se explicar ao incitar a violência contra o governo da Venezuela. O que se espera, no mínimo, é que os parlamentares da oposição encaminhem essas convocações.

Não bastasse violar a Constituição brasileira, Bolsonaro, ao se intrometer nos assuntos internos da Venezuela, viola vários dispositivos da a Carta da ONU, particularmente o inciso 2 do Artigo 1º, que diz: “Os propósitos das Nações Unidas são: …. 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal”.

As ações de Trump, Duque e Bolsonaro vão no sentido de provocar uma guerra civil na Venezuela e uma intervenção externa. Isto precisa ser dura e amplamente denunciado. O que esses governos fizeram no último sábado na fronteira com a Venezuela foram ações de provocação para justificar a violência e a agressão àquele país. Se é verdade que fracassaram nessa primeira ofensiva, nada impede que, guiados pelos seus espíritos sombrios e irresponsáveis, voltem ao ataque novamente.

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Uma guerra na Venezuela, civil ou externa, pode desestabilizar toda a América Latina. Se a região já é violenta socialmente, a violência política pode se generalizar. Foi um grande feito do ex-presidente da Colômbia, Juan Manoel Santos, ter alcançado a paz com as Farc. Duque e Bolsonaro, incitados por Trump, podem estar abrindo as portas para o ressurgimento da violência política e guerrilhas na região. Se o jogo político passa a ser decidido cada vez mais por golpes e ações de forças e de violência, os grupos depostos e derrotados advogarão a legitimidade do recurso à força para sobreviverem. Isto seria um enorme retrocesso na América Latina, um prejuízo incalculável aos parcos avanços das democracias na região. É esse aventureirismo irresponsável de Trump, Duque e Bolsonaro que precisa ser repudiado. As forças políticas da América Latina – de direita, de centro e de esquerda – precisam persistir no intento democrático, único caminho razoável que pode indicar saídas às trágicas condições de vida dos povos da região.

Desta forma, em relação à Venezuela, a única ação legítima, em consonância com a Constituição brasileira e com a Carta da ONU, consiste em pressionar e estimular para que as partes em conflito naquele país se sentem na mesa e busquem uma solução negociada para os conflitos. Somente isto e nada mais do que isto é legítimo. Fora isto, pelos princípios da Constituição e da Carta da ONU, cabe unicamente aos venezuelanos decidirem o que fazer.

O governo Bolsonaro tem o direito de se afastar do governo Maduro, de se aproximar de governos de direita como os de Israel, Itália e Estados Unidos. Ele só não tem direito, em nome dessas aproximações, de prejudicar os interesses do Brasil e de conspurcar a nossa soberania. Ele só não tem direito de se embrenhar numa aventura golpista que pode levar a uma guerra civil na Venezuela ou uma ação armada do Brasil contra aquele país.

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O Brasil tem problemas demais para que se ocupe com uma ação intervencionista na Venezuela. O Brasil tem mais de 50 milhões de pobres e cerca de 15 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. É com estes que o governo Bolsonaro deveria se preocupar. Solidariedade internacional sim, mas desde que se respeite a soberania e a autodeterminação dos povos e desde que seja feita por instituições isentas e credenciadas para isto, a exemplo da ONU e da Cruz Vermelha.

O aventureirismo golpista de Bolsonaro e de Ernesto Araújo precisa ser contido, seja pelos generais do governo, mas principalmente pelo Congresso Nacional, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Precisa ser contido por mobilizações de democratas para proclamarem um não à aventura intervencionista e um sim à paz na Venezuela. Maduro não representa nenhum risco para o Brasil, pois mais dia ou menos dias ele sairá do governo.

A Venezuela e seu povo não representam nenhum risco à soberania brasileira. Se há um risco real à nossa soberania seria a presença de forças militares norte-americanas na região amazônica. Ali estão as águas, as florestas, a biodiversidade, as terras e as riquezas minerais. Isto tudo pertence ao Brasil e aos demais países amazônicos. Se há um risco efetivo à soberania do Brasil e dos outros países da região ela é representada por Trump e os Estados Unidos que querem reerguer a velha doutrina do século XIX, de James de Monroe: “A América para os americanos…do norte”. Isto não devemos e nem podemos aceitar.

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*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

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