Luis Gustavo Reis
Colunista
Música 17/Mai/2018 às 17:01 COMENTÁRIOS
Música

Bezerra da Silva: produto do morro

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 17 Mai, 2018 às 17h01
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Capa e contracapa do LP “Eu não sou santo”, gravado por Bezerra da Silva em 1990.

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

José Bezerra da Silva, conhecido como Bezerra da Silva, foi um dos maiores sambistas do Brasil. Cantor e instrumentista, Bezerra é, sem dúvidas, o artista mais identificado com a cultura dos marginalizados suburbanos do Rio de Janeiro.

Nascido na periferia de Recife em 1927, sua infância foi semelhante à de milhões de brasileiros – penosa, diga-se de passagem. O abandono do pai, a falta de comida, a moradia precária, conjugadas ao futebol nas ruas de terra, as brincadeiras com pipa e, sobretudo, as músicas tocadas nos quintais da vizinhança, embalada pelo som do triângulo, da sanfona e da zabumba, marcaram os primeiros anos de vida do jovem nordestino.

Já na adolescência, as condições de penúria e a expulsão precoce da marinha mercante – instituição que havia ingressado alguns anos antes – o levaram a migrar para o Rio de Janeiro. Chegou à cidade no porão de um navio que transportava açúcar, trazendo consigo apenas a “coragem e a cara”, expressão consagrada por centenas de migrantes nordestinos que se estabeleceram na cidade carioca na primeira metade do século XX.

Durante muitos anos, a estadia no Rio de Janeiro foi marcada pela privação e completa falta de recursos financeiros. Ainda que tenha conseguido emprego na construção civil assim que desembarcou na cidade, o pagamento não era suficiente para prover recursos básicos de sobrevivência.

A situação piorou quando foi demitido do emprego nos idos de 1954. Além disso, as brigas constantes e a vida boêmia, contribuíram significativamente para o fim da relação conjugal que mantinha com sua primeira companheira, obrigando Bezerra a abandonar o barraco onde moravam no Morro do Cantagalo, na Zona Sul da cidade.

Sem trabalho e residência, passou a viver como morador de rua, amargando frio e fome durante anos a fio nas vias públicas de Copacabana. Para escapar da mendicância, foi acolhido em um terreiro de umbanda, recebendo ajuda (inclusive um barraco para morar) e muitos conselhos das pessoas que frequentavam o templo religioso. A descoberta da umbanda foi fundamental para restituir o sentido da vida de Bezerra e impedi-lo de cometer suicido, recurso que várias vezes pensou em lançar mão.

A vivência no terreiro trouxe uma nova dimensão para o malandro, que retomou a verve musical que havia desenvolvido desde quando desembarcara no Rio de Janeiro. Conseguiu ingressar na orquestra da gravadora Copacabana Discos, momento em que potencializou sua atuação como compositor, instrumentista e cantor, emplacando músicas gravadas pelo Rei do Ritmo e um dos maiores expoentes do forró pé de serra, Jackson do Pandeiro.

Bezerra da Silva gravou seu primeiro compacto em 1969. Seis anos mais tarde, seria lançado seu primeiro LP com músicas que não fizeram muito sucesso. Porém, a partir da série “Partido Alto Nota 10” – lançada em 1977, 1979 e 1980 –, ganhou dimensão e aclamação do público. O repertório dos discos passou a ser abastecido por compositores anônimos, pessoas que Bezerra conhecia em suas andanças pelos morros, subúrbios e favelas. Ele andava por esses lugares sempre de gravador em punho, recolhendo os sambas nas chamadas “bocadas”.

Em entrevista concedida em agosto de 2003, destacou a importância dos compositores em sua vida:

São estes compositores que me mantêm com mais de trinta e poucos anos de pé! Abaixo de Deus, eu devo a eles. Se não fossem eles, eu não estaria aqui! As maiorias são favelados, pobres, desempregados e de baixas rendas, quase todos moram na Baixada Fluminense do Grande Rio. Esse pessoal tem um poder de criatividade fora do comum e quase todos são analfabetos.”

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Bezerra notabilizou-se por um estilo que muitos chamaram de “sambandido”, misturando samba, crítica social, comicidade e a malandragem característica do Rio de Janeiro.

Os principais temas de suas músicas foram os problemas sociais enfrentados pelas comunidades, entre eles: o descaso do poder público, a pilantragem dos políticos, os malandros e ladrões à margem da lei, a maconha, a violência policial, as querelas entre vizinhos. Além disso, versou sobre outras linguagens, dentre as quais, a de maior destaque, refere-se à condenação da caguetagem (delação). Esta temática diz respeito à uma das estratégias adotadas por comunidades que vivem sob permanente ameaça policial, onde os laços de solidariedade ou de poder local impedem que aqueles que estão à margem da lei sejam “dedurados” por vizinhos ou pessoas próximas. Bezerra gravou diversos sambas de repúdio aos chamados “dedo-duros”, também conhecidos como “dedo-de-seta” ou “X9”. Em algumas das músicas diz:

Na hora da dura
Você abre e o bico e sai cagüetando
Eis a diferença, mané
Do otário pro malandro
(“Na hora da dura”, Beto Pernada / Simões)

Pra morar no morro
tem que ter muita versatilidade
Ouvir muito e falar pouco
ser bom malandro e ter muita amizade
Permanecer na lei que é de Murici
e o provérbio que diz: “não sei de nada
cada um trata de si”
(“Nunca vi ninguém da dois em nada”, Caboré)

Em uma das canções mais críticas, o partideiro explicita sem delongas a condição das favelas brasileiras:

A favela nunca foi reduto de marginal
Só tem gente humilde, marginalizada
E essa verdade não sai no jornal
A favela é um problema social
Sim mas eu sou favela
Posso falar de cadeira
Minha gente é trabalhadeira
Nunca teve assistência social
Ela só vive lá
Porque para o pobre, não tem outro jeito
Apenas só tem o direito
A um salário de fome e uma vida normal
(“Eu sou favela”, Noca da Portela / Sérgio Mosca)

Antes da explosão do Rap nacional, Bezerra da Silva já disparava músicas que o perpetuariam como “embaixador dos morros e favelas”: “Malandragem Dá um Tempo”, “Bicho Feroz”, “Overdose de Cocada”, “Sequestraram Minha Sogra”, “Defunto Cagüete”, “Malandro Não Vacila”, “Meu Pirão Primeiro”, “Lugar Macabro”, “Pai Véio 171”, “Candidato Caô Caô”.

Em 1995, gravou um sugestivo álbum chamado “Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró: Os Três Malandros In Concert”, uma paródia ao show dos três tenores, Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras. Versatilidade, irreverência e originalidade eram marcas características das músicas gravadas no álbum pelos três malandros.
Adepto entusiasta da umbanda, Bezerra decidiu se converter ao culto evangélico em 2001. Quatro anos mais tarde, seria lançado um CD póstumo com músicas gospels que ele havia gravado chamado “Caminho de Luz”.

Bezerra da Silva morreu de falência múltipla dos órgãos em 2005, perto de completar 78 anos. Ele sempre dizia que era “bom malandro” e que não queria morrer numa sexta-feira ou feriado, para não atrapalhar a praia e o descanso dos amigos. Pois assim foi, o sambista morreu numa manhã de segunda-feira, dia 17 de janeiro, primeiro mês do ano. O curioso da data é que juntando numericamente o dia e o mês de morte, temos o adjetivo que ele se auto-intitulava: “1 7 1”.

Mais do que qualquer outro artista, ele tematizou criticamente e sem eufemismos a desigualdade social, explicitando a fratura entre morro e asfalto, ricos e pobres, trabalhadores e patrões, mansões e favelas. Embora tenha tombando a sepultura, Bezerra imortalizou um dos versos que marcaria definitivamente a sua vida:

Sou produto do morro
Por isso do morro não fujo e nem corro
No morro eu aprendi a ser gente
Nunca fui valente e sim conceituado
Em qualquer favela que eu chegar
Eu sou muito bem chegado
E no Cantagalo na linha de frente
Naquele ambiente sou considerado

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*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político

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