SEXUALIDADES

Uedson Diogo Silva da Cruz e Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
A interpretação da formação da sociedade brasileira, especialmente a partir da década de 1930, encontrou em autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda referências fundamentais. Ambos buscavam compreender os elementos estruturantes da vida social no Brasil, ainda que por vias metodológicas diversas. Enquanto Freyre enfatiza a mestiçagem, a vida doméstica e as relações íntimas como forças determinantes da constituição cultural brasileira, Sérgio Buarque descreve padrões de sociabilidade marcados pela centralidade dos afetos e da vida privada.
A sexualidade ocupa papel central na leitura freyriana da formação nacional. Em Casa-Grande e Senzala, publicada em 1933, ela é compreendida como força sociológica, histórica e cultural que atravessa a organização familiar, o regime patriarcal, as hierarquias sociais e a construção de identidades. A mestiçagem, entendida como mistura não apenas biológica, mas cultural, é, em grande medida, apresentada como resultado direto das relações íntimas ocorridas entre europeus, indígenas e africanos.
Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, ao desenvolver o conceito de “homem cordial” em Raízes do Brasil (1936), enfatiza que a sociabilidade brasileira é profundamente marcada pelo predomínio da afetividade e da intimidade. Embora sua obra não trate exclusivamente da sexualidade, o conceito de cordialidade permite articular uma leitura sobre como formas de vínculo afetivo e interpessoal moldam as relações sociais.
A partir desses referenciais, o presente ensaio tem como objetivo aprofundar a análise da sexualidade como elemento estruturador da sociedade, tomando como foco principal a obra Casa-Grande e Senzala e, de modo complementar, estabelecendo articulações conceituais com Raízes do Brasil.
A sexualidade ocupa posição central na interpretação freyriana da formação brasileira. Para Freyre, a construção da sociedade colonial não se deu apenas pela organização econômica do engenho, pela estrutura escravista ou pela hierarquia patriarcal, mas também e de maneira decisiva pelas relações íntimas e até sentimentais estabelecidas entre os diferentes grupos que compunham o cotidiano da casa-grande e da senzala.
Essa sexualidade não é apresentada de forma episódica, mas como categoria analítica. Ela atravessa o cotidiano e opera como força geradora de vínculos, tensões, adaptações culturais e transformações sociais. Para o autor, a miscigenação que deu origem ao Brasil não teria sido possível sem o conjunto de relações que envolveram senhores, escravas e indígenas, configurando um ambiente de intensa convivência íntima.
O papel das mulheres indígenas e africanas aparece, em Freyre, como elemento fundamental na constituição da vida colonial. O contato entre colonizadores portugueses e mulheres nativas teria inaugurado uma fase inicial de fusão de hábitos, costumes, práticas sexuais e formas de vida. Posteriormente, a chegada de populações africanas diversificou esse quadro, ampliando a matriz de influências corporais, sexuais, afetivas e culturais.
Segundo Freyre, a sexualidade foi um dos canais mais profundos de integração cultural. Ela teria promovido o intercâmbio linguístico, gastronômico, religioso e afetivo entre grupos distintos. Assim, a mestiçagem biológica é consequência de um processo cultural amplo, no qual a intimidade e a convivência doméstica desempenharam papel decisivo.
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A leitura freyriana enfatiza que o modelo patriarcal do engenho estruturou as dinâmicas sexuais do Brasil colonial. A casa-grande funcionava como centro de poder familiar, econômico e simbólico. A proximidade entre senhores, escravizados, crianças, agregados e mulheres de diferentes origens criava um ambiente no qual as fronteiras entre o público e o privado eram permeáveis.
A sexualidade em Casa-Grande e Senzala aparece como um elemento estruturador das relações sociais do Brasil colonial, revelando não apenas práticas íntimas, mas também hierarquias de poder, raça e gênero que atravessavam a sociedade patriarcal. Freyre descreve como a formação sexual dos jovens brancos ocorria de modo precoce, quase sempre mediada pelas escravas da casa-grande. Segundo o autor, os meninos eram introduzidos “muito cedo no pecado da carne” por mulheres negras e mulatas, numa iniciação que, para ele, era socialmente tolerada e até mesmo encorajada. Essa dinâmica não envolvia apenas aprendizado sexual, mas reforçava a lógica de domínio, visto que a sexualidade também expressava os lugares sociais atribuídos a brancos e negros dentro da ordem patriarcal.
Da mesma forma, a visão sobre doenças venéreas revela outra camada da construção da masculinidade. Freyre observa que a sífilis, longe de ser vista como motivo de vergonha, funcionava quase como um símbolo de virilidade, uma “insígnia de valentia sexual” entre jovens da elite patriarcal. Alguns rapazes, segundo ele, chegavam até a se envergonhar de nunca terem contraído uma infecção, entendendo isso como sinal de pouca experiência amorosa. Assim, a sexualidade funcionava como marcador social, onde poder, prestígio e identidade masculina eram articulados através de práticas que hoje seriam consideradas abusivas, mas que, no contexto do patriarcado escravocrata, eram naturalizadas.
Desse modo, Freyre evidencia que a sexualidade não era um aspecto periférico da vida colonial, mas sim um eixo fundamental na organização das relações sociais, reforçando e consolidando o poder dos senhores sobre corpos racializados e femininos.
Nesse contexto, a sexualidade se relacionava diretamente às formas de organização da família patriarcal. Era no espaço doméstico que se desenvolviam relações afetivas, vínculos íntimos e laços que, embora hierarquicamente organizados, contribuíam para a formação de uma cultura de proximidade. A sexualidade, nesse modelo, aparece como fenômeno estruturador não apenas da vida privada, mas também da própria ordem social.
Freyre destaca que o ambiente tropical, o clima, a arquitetura das casas e o modo de vida rural favoreciam convívio intenso, marcado por elevada sociabilidade e circulação de corpos e afetos. Desse quadro emerge o que o autor identifica como “intimidade” característica da sociedade brasileira. Essa intimidade se expressa na maneira de relacionar-se, nos gestos familiares, na proximidade física e na convivência contínua que unia casa-grande e senzala.
A sexualidade, portanto, não é tratada apenas como comportamento individual, mas como instituição social. Ela contribui para definir papéis, estabelecer prioridades, orientar práticas domésticas e moldar a estrutura de sentimentos que, para Freyre, caracteriza o Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda, ao introduzir o conceito de “homem cordial”, busca explicar a predominância da afetividade e da pessoalidade na vida social brasileira. O autor afirma que “nossa vida social é, em larga medida, dominada pelo espírito da família” (Holanda, 1936/1995, p. 106). A cordialidade, nesse sentido, não se limita à gentileza ou ao urbanismo dos costumes, mas representa a inclinação a agir guiado por sentimentos, impulsos e vínculos íntimos.
Para Sérgio Buarque, a cordialidade deriva da projeção da estrutura doméstica sobre a esfera pública. A afetividade que organiza o convívio familiar passa a orientar também as relações políticas, econômicas e sociais. Assim, a sociabilidade brasileira se caracteriza por certa permeabilidade entre o que é privado e o que é público.
A ambiguidade da cordialidade simultaneamente afetuosa e suscetível a impulsos é elemento significativo para compreender como emoções e vínculos pessoais estruturam comportamentos sociais. Embora o autor não trate explicitamente da sexualidade, suas categorias analíticas permitem compreender como formas de intimidade e afetividade moldam relações interpessoais no Brasil.
A aproximação entre Freyre e Sérgio Buarque surge da observação de que ambos situam a origem de padrões sociais brasileiros no ambiente doméstico, ainda que a partir de perspectivas distintas. A sexualidade, em Freyre, e a cordialidade, em Sérgio Buarque, se encontram na valorização da intimidade como núcleo da organização social.
A sexualidade descrita por Freyre marcada pela convivência cotidiana, pelo contato físico e pelo entrelaçamento de corpos e culturas pode ser interpretada como um dos primeiros espaços onde se manifestaram formas de sociabilidade afetivas e personalistas. Em termos amplos, a intimidade sexual colonial constitui uma dimensão concreta do que Sérgio Buarque identificaria como projeção do privado sobre o público.
O autor de Raízes do Brasil observa que “o predomínio do meio doméstico [….] dificultou entre nós o desenvolvimento de formas de convívio baseadas na impessoalidade” (Holanda, 1936/1995, p. 108). Tal afirmação conecta-se diretamente à estrutura patriarcal da casa-grande, na qual as relações íntimas e familiares incluindo práticas afetivas e sexuais organizavam a vida social. Como dito por Freyre: “O menino branco crescia colado ao corpo da ama negra, recebendo dela não apenas leite, mas afeto, cheiros, ritmos corporais e vinculação emocional”. Essa proximidade produzia um “imprinting sensorial” (não é termo dele, mas conceito dele), que marcava o futuro gosto erótico do adulto. A sexualidade, nesse quadro, é uma expressão concreta dessa lógica doméstica que se estende para toda a sociedade.
Dessa forma, a mestiçagem e a sexualidade descritas por Freyre e a cordialidade analisada por Sérgio Buarque representam dimensões complementares de um mesmo fenômeno: a constituição da vida social brasileira a partir de vínculos interpessoais profundos, afetivos e frequentemente oriundos da esfera privada.
A sexualidade desempenhou papel fundamental na interpretação de Gilberto Freyre sobre a formação da sociedade brasileira. Em Casa-Grande e Senzala, ela aparece como força organizadora da mestiçagem, promotora de trocas culturais, estruturadora da vida doméstica e configuradora da sociabilidade colonial. A intimidade entre diferentes grupos étnicos e sociais teria produzido não apenas uma população mestiça, mas também práticas culturais, símbolos, valores e modos de vida caracterizados pela proximidade e pelo contato contínuo.
A articulação com o conceito de “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, permite compreender a continuidade histórica dessa intimidade. Enquanto Freyre discute a sexualidade como fenômeno central da formação colonial, Sérgio Buarque identifica a afetividade e a pessoalidade como princípios que organizam a vida social brasileira. A cordialidade surge, assim, como extensão da intimidade estruturada na casa-grande.
Este ensaio apresentou uma análise descritiva e imparcial, evidenciando como sexualidade, mestiçagem e cordialidade são elementos interligados na interpretação clássica da formação brasileira. Ao compreender esses autores em conjunto, torna-se possível observar de que maneira a dimensão íntima sexual e afetiva constituiu uma base duradoura da sociabilidade nacional.
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