Diálogo revela desespero de médica após prescrever dose cavalar de adrenalina em criança que morreu no hospital
Ao longo da semana, atenções se voltaram para a técnica de enfermagem responsável por aplicar a medicação. Mas vazamento de diálogo entre a médica que prescreveu a dose e o diretor de plantão alterou o curso da investigação. Caso repercutiu fortemente entre profissionais da área de saúde: "Não foi erro só da médica, mas erro como um todo de todos os processos do hospital. Flagrante falha de adesão ao protocolo do paciente seguro", relatou um médico

por Ana Oliveira e Felipe Borges
A morte de Benício Xavier de Freitas, 6 anos, após receber uma dose excessiva de adrenalina em um hospital privado de Manaus, desencadeou uma crise sem precedentes entre profissionais da saúde e levantou questionamentos sobre falhas graves no atendimento, nos protocolos internos e na supervisão médica. A Polícia Civil do Amazonas (PC-AM) confirmou que a criança morreu por “overdose de adrenalina”, aplicada por via intravenosa — um procedimento que especialistas classificam como incompatível com a terapia indicada para o quadro clínico apresentado pelo menino.
Ao longo da semana, as atenções se voltaram inicialmente para a técnica de enfermagem responsável por aplicar a medicação. Mas o vazamento de um diálogo entre a médica que prescreveu a dose, identificada como Juliana Brasil Santos, e o diretor de plantão do hospital, Enryko Garcia de Carvalho Queiroz, alterou o curso da investigação e da repercussão pública. Nas mensagens, a médica demonstra desespero ao perceber a gravidade do quadro clínico e admite ter cometido um erro na prescrição.
O caso ocorreu no sábado, 22, no Hospital Santa Júlia, e segue sob investigação policial. A direção da unidade ainda não se manifestou oficialmente.
Mensagens mostram admissão de erro e desespero
O diálogo vazado foi registrado no dia da morte da criança. Segundo apuração obtida por profissionais de saúde próximos ao caso, as mensagens teriam sido trocadas em tempo real, à medida que o quadro de Benício se agravava rapidamente.
Por volta das 16h21, a médica relata que o menino estava com a pele amarelada e pede ajuda urgente. Em outra mensagem, ela escreve que “errou na prescrição da dose de adrenalina”, segundo trecho revelado por fontes ouvidas pela reportagem.
Na tentativa de conter o avanço dos sintomas após a administração da medicação, a médica busca contato com o médico plantonista da UTI, identificado como Dr. Luiz, que teria sido chamado para auxiliar na condução do caso. Benício foi transferido para a unidade intensiva, mas não resistiu, apesar das tentativas de reanimação.
O vazamento das conversas gerou forte repercussão entre profissionais da saúde. Um médico ouvido pela reportagem foi categórico: “Não foi erro só da médica, mas erro como um todo de todos os processos do hospital. Flagrante falha de adesão ao protocolo do paciente seguro.”
O que aconteceu no dia da morte de Benício
Segundo a família, Benício havia chegado ao hospital com sintomas leves de virose — febre e tosse seca. A prescrição inicial incluía xarope, lavagem nasal e, posteriormente, a administração de adrenalina.
De acordo com o delegado Marcelo Martins, responsável pela investigação, a criança recebeu 9 mililitros de adrenalina, com intervalo de 30 minutos entre as aplicações. Profissionais de saúde que atuaram na reanimação confirmaram à polícia que a dose administrada era “muito acima do recomendado”, caracterizando uma superdose.
Benício sofreu seis paradas cardiorrespiratórias antes de morrer. Na coletiva de imprensa realizada na sexta-feira, 28, o delegado afirmou:
“Tomamos o depoimento de alguns dos médicos que auxiliaram no procedimento após o uso da substância, e todos confirmaram que o diagnóstico da criança era de overdose de adrenalina. Uma superdose acima do normal, que culminou nas paradas cardiorrespiratórias até o óbito.”
Martins também informou que solicitou a prisão preventiva da médica Juliana Brasil Santos, mas o pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM). Juliana e a técnica de enfermagem Raíza Bentes prestaram depoimento no 24º Distrito Integrado de Polícia (DIP).
O depoimento da técnica de enfermagem
Após ser ouvida, Raíza Bentes participou de uma entrevista coletiva e deu sua versão sobre o momento da administração da adrenalina. Segundo ela, estava sozinha na sala quando aplicou a medicação e seguiu a risca o que constava na prescrição.
“Mostrei a prescrição médica para a mãe. A adrenalina estava prescrita intravenosa”, disse. Ela relatou ainda que nunca havia administrado adrenalina por essa via: “Eu falei que nunca tinha administrado aquela medicação desse jeito, mas estava prescrito.”
A técnica disse que a mãe questionou se haveria nebulização, procedimento normalmente associado ao uso de adrenalina em crianças com sintomas respiratórios. “A mãe perguntou sobre a nebulização. Eu disse que na prescrição não tinha nenhuma nebulização.”
Raíza também descreveu a reação imediata de Benício: “Ele começou a ficar pálido, a boca sem cor. Corri para chamar a médica.”
Segundo ela, a médica teria demorado a atender ao chamado. “Quando eu chamei, ela falou que era para esperar”, afirmou.
Após retornar à sala e ver o estado da criança, a médica teria mudado o discurso e questionado a mãe: “Eu não falei que era para fazer nebulização?”, teria dito.
A técnica reafirmou que não poderia realizar um procedimento sem registro formal: “A gente não pode fazer nada que não esteja na prescrição médica.”
Falha em cadeia e revolta entre profissionais
O episódio gerou indignação entre médicos, enfermeiros e farmacêuticos. Uma profissional da área publicou um desabafo nas redes sociais, resumindo a percepção de quem acompanha o caso de perto:
“Uma médica que disse para a mãe que era inalatório, mas prescreveu erroneamente EV.
Uma técnica que ‘sabia’ que não era daquela forma, mas fez por medo.
Uma farmácia que dispensa sem indagar sobre a prescrição.
Uma médica que não sabe conduzir uma emergência.
Gente, o que que é isso!? Infelizmente não existe: ‘foi sem querer’. Uma criança morreu, e a punição tem que existir para todos os envolvidos.”
A fala reflete a avaliação de que houve erro em cadeia, com falhas sucessivas:
— na prescrição,
— na checagem da dose e via de administração,
— na execução do procedimento,
— no suporte emergencial,
— e no monitoramento da criança após a reação.
Especialistas reforçam que protocolos de segurança do paciente, como a checagem dupla de medicação e a confirmação da via de administração, existem justamente para prevenir ocorrências desse tipo.
Investigação segue em andamento
A Polícia Civil ainda aguarda o laudo pericial detalhado e deve complementar a investigação com novos depoimentos de profissionais que estavam de plantão no dia do ocorrido. A linha de apuração busca esclarecer se houve negligência, imperícia ou imprudência, individual ou coletiva.
A família de Benício insiste por justiça e cobra transparência. Eles afirmam que o menino estava consciente e em estado geral razoável ao chegar ao hospital, e que jamais imaginaram que um erro médico desse tipo pudesse ocorrer.
Confira o depoimento de um médico que repercutiu fortemente sobre o caso:
— “Sou cardiologista e para vocês terem uma ideia do tamanho dessa dose administrada, quando um paciente ADULTO está em parada cardiorrespiratória, administramos 1 ml puro de adrenalina (UM ML). Foram administrados 9 ml na criança. Dose cavalar. Não foi erro só da médica, mas erro como um todo de todos os processos do hospital. Flagrante falha de adesão ao protocolo do paciente seguro. Todo medicamento prescrito passa por uma cadeia de checagem, que se inicia no médico, passa pela dispensação e checagem farmacêutica, passa pela enfermagem e depois só que a técnica faz a administração. Passou por todos esses setores e ninguém viu. Depois de administrada essa dosagem, havia muito pouco a se fazer. Poderíamos tentar usar o protocolo pré-operatório de uma doença chamada FEOCROMOCITOMA, um tumor que produz adrenalina em grandes quantidades. Nesses casos vamos o bloqueio da adrenalina usando duas drogas, que são a fentolamina (bloqueio alfa1) e depois o betabloqueador (bloqueio beta1), assim bloqueando todos os receptores de ação da adrenalina”.



