Delmar Bertuol
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Especial 15/Out/2025 às 09:31 COMENTÁRIOS
Especial

QUANDO ELA CHEGA

Delmar Bertuol Delmar Bertuol
Publicado em 15 Out, 2025 às 09h31

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Finalmente, depois de quarenta anos, tenho um transtorno mental. Estava preocupado. Quase que fui fazer exames pra saber se tudo bem comigo, pois já tinha idade e ainda não experimentara uma fluoxetina. E sou do grupo de risco: professor.

Mas eis que este ano finalmente consegui um distúrbio. Antes tarde do que nunca. Ansiedade, depressão, Síndrome de Burnout… não se sabe ainda. A psicóloga não fechou definitivamente o diagnóstico. Precisa saber mais sobre minha infância e a relação que tenho com minha mãe.

O psiquiatra ouviu meus dramas. Mas também não foi certeiro no CID. Me mandou parar em casa uns dias (antes que me acidentasse de carro ou dormisse em meio à aula. Aula que eu estivesse dando, no caso). Receitou-me uns remédios, cancelou um e adicionou outro. Um não faz efeito, outro me dá sono repentinos e há até o que baixa a libido.

Dormir enquanto dirige ou faz a chamada do sétimo ano ou mesmo só querer ficar deitado sem forças pra nada, tudo bem. Mas não transar, aí já é inadmissível. Preciso me curar. E logo.

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Brincadeiras à parte, sorte de quem não tem nenhum transtorno ou sintomas desse tipo. Por mais raro que isso cada vez mais seja. Não tenho os dados, mas acredito, baseado em vozes da minha cabeça, que os ansiolíticos sejam os mais vendidos nas farmácias, só perdendo no verão para os picolés, que hoje as farmácias vendem de tudo. Do remédio para emagrecer ao chocolate. E por falar em vozes da minha cabeça, foi força de expressão. Sintomas esquizofrênicos felizmente não tenho.

Em determinados círculos de amigos, às vezes, me sentia deslocado nos assuntos sobre dosagem e efeitos colaterais dos antidepressivos. Hoje, já posso dar meu relato de como o lítio me fazia perder a hora ou de como o escitalopram me causava disfunção erétil. Broxa, era mesmo o termo utilizado, pois nesses assuntos em confidência, não há melindres ou eufemismos entre os conversantes.

Na verdade, é uma mistura de sentimentos. Não dá pra distinguir até que ponto o sono é efeito do lítio ou uma tentativa inconsciente de fuga da realidade. E, se se for honesto, não se pode atribuir a culpa da falta de tesão somente ao remédio.

No meu caso, era uma falta de vontade de tudo. Só queria o refúgio aconchegante da cama. Encarar os afazeres, por vezes, me causava enorme desídia. Nalgumas ocasiões, não tinha forças nem pra passar manteiga num pão. Mas o jejum de um dia era compensado por distúrbios alimentares no outro, em que, na falta de comida no armário, quase que eu comia o armário. Na minha pior crise, por pouco que repentina e inconsequentemente não pedi demissão, como se eu tivesse com a vida ganha, vivendo de dividendos isentos do imposto de renda. Foi o estopim pra eu, talvez vencendo um velado preconceito, procurar ajuda profissional.

Mas eu dizia, aqueles que conseguem de fato viver o agora decerto o aproveitam bem mais.

Separado da mãe dela, vejo minha filha relativamente pouco. Angustia-me a percepção de que não estava ali pra ela (e pra mim) plenamente. A ansiedade termina com qualquer gozo de folga ou momento em princípio feliz. O sofrimento precoce pelo insabido amanhã, muitas vezes, fez com que eu não desse o melhor de mim pra minha pequena. Os pais certamente terão dimensão do quão frustrante isso pode ser.

O paradoxo disso tudo é que justamente este foi o ano em que me casei. Evidente que os amigos fizeram automática ligação entre o matrimônio recente e os sintomas e me questionaram da minha felicidade na relação, no que refleti.

Mas, como disse, um paradoxo. Meu casamento foi (e está sendo) uma das minhas maiores satisfações. Da cerimônia e da festa eu lembro quase que diariamente, já que sempre passo defronte à Igreja. Mas para além da reunião dos amigos, num brinde inesquecível, lembro entusiasmado de que diariamente a espero chegar. Faço os planos pro final de semana e gosto tanto de uma viagem como de passar dois dias deitados na cama procurando filme ou série na Netflix. Assistir de fato é algo mais raro.

Agora, estou um pouco melhor. Segui uns conselhos da psicóloga e também troquei a medicação. Na roda de conversa dos depressivos, já falo da broxitude no verbo no passado e ofereci minha cartela de tadalafila prum amigo.

 

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Semanas atrás, contudo, enquanto eu era um zumbi de pau mole se arrastando pela casa, era essa mesma esposa que chegava. Eu, invariavelmente, no quarto, sonolento, a aguardava. Era o melhor momento do dia, esse quando ela chegava. Ela chegava e me abraçava despretensiosamente, perguntando do meu dia, se melhor, se pior, se com fome, se com sono. Questionava dos remédios, se já os havia tomado. Se eu jantara. Se eu queria jantar.

E no outro dia, também invariavelmente, eu acordava atrasado. Lítio. E mesmo não sendo o seu turno, ela também levantava num pulo pra ir adiantar o café enquanto sem vontade eu tomava banho, lamentando mais um dia de extenso expediente.

Já falei, essa fase, se não passou de todo, pelo menos melhorou bastante. Lembro até com graça dalgumas passagens, como quando dormi em sala enquanto assinava o caderno do aluno ali do lado; ou quando ronquei no oitavo ano assistindo a Tempos Modernos. Chaplin, nada pessoal. E até depois do susto, relato com certa pilhéria da ausência que tive dirigindo, em que invadi a pista contrária da BR por longos cinco segundos que poderiam ter sido fatais.

Sigo com medicação diária e com terapia. O psiquiatra me pede notícias. Há dias bons e até ótimos. Quando comigo, tento dar o melhor que minha filha merece e precisa, na difícil idade dos nove anos (se é que existe idade fácil). Há noites mal e bem dormidas, por bom e maus motivos, se é que me entendem. Mas há também os dias difíceis, em que até as tarefas básicas são com custo realizadas. Escovar os dentes, nesses dias, parece árdua missão, posto que o banheiro está a longínquos três metros distante da cama. Banho, então, somente com sentença transitada em julgado, senão, recorro às instâncias superiores. Mas, graças ao tratamento e ao que relato a seguir, esses dias são exceção e não mais a regra.

Não sei se Deus, o destino, a sorte, o acaso quiseram que minha mulher aparecesse bem quando tardiamente precisei dalguém com paciência e empatia ou meu lado. Que, mesmo também tendo ela estafante rotina, ainda oferecia seu colo, no vespertino.

Que bom que aguentei as piadas de quinta série e cultivei amigos de anos. Agora, me chamam de soneca broxa, mas antes, me estenderam seus ombros contando, eles também, em mútua cumplicidade, seus percalços.

Se posso ter a pretensão de dar conselho depois do que vivi e ainda vivo, é de que tenham amigos verdadeiros e leais.

Sei que há quem escolha a solitude. Durante algum tempo, também optei por estar não sozinho, mas comigo mesmo. É legítima escolha. Mas, se se tiver um companheiro ou companheira que realmente queira estar contigo nos momentos mais difíceis. Aquela pessoa que se espera com ansiedade (essa boa) sua chegada, isso é complemento a qualquer medicação de indesejável efeito colateral.

 

<span style=”color: #808080;”>*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”</span>

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