Camila Koenigstein
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Desigualdade Social 10/Abr/2020 às 13:31 COMENTÁRIOS
Desigualdade Social

COVID-19 e a seletividade da vida no continente africano

Camila Koenigstein Camila Koenigstein
Publicado em 10 Abr, 2020 às 13h31

O COVID-19 não é maior que outras pandemias e doenças que atingiram o mundo e o continente africano, a única diferença é que nos caixões postos em solo europeu há em sua maioria corpos brancos.

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(Imagem: Sumaya Hisham | Reuters)

Camila Koenigstein*, Pragmatismo Político

O nome dela é Rosa e seu vídeo viralizou nas redes sociais. No entanto, assim como eu, muitos receberam o vídeo via WhatsApp. Procurei e não encontrei muita coisa além de ‘Rosa, emigrante negra na Europa’. Em diversas publicações segue somente Rosa, sem sobrenome, sem indício para seguirmos suas publicações, seu trabalho, nada.

Rosa representa a voz da consciência de um continente arrasado pela dominação branca e sua perversidade, que outrora parecia absurda, mas que hoje ganha contornos próprios, responsabilizando o caos vivido na África, principalmente na parte subsariana, aos cidadãos locais.

Entre a fome e enfermidades, que em diversos lugares do mundo já foram controladas ou erradicadas, como: malária, meningite, tuberculose, doenças respiratórias, diarreia, inanição e HIV, mais um número alarmante de suicídios em diversos países como por exemplo, Quênia. Vemos dentro dessa realidade a seletividade em relação a vida, são séculos resistindo a indiferença que assola o continente, além do trauma causado pela diáspora, procedente da escravidão.

Dentro desse contexto há duas questões que necessitam ser olhadas com mais cuidado: África segue sendo o lugar de exploração e experimentos do homem branco, além da expropriação de terras por parte de empresas chinesas e francesas, algo que vou aprofundar mais adiante.

Em meio a pandemia do COVID-19, em diversas regiões do mundo, incluindo África, alguns médicos infectologistas propuseram que os experimentos para a possível cura da doença deveriam se concentrar no continente africano, nada surpreendente quando diversos países europeus fizeram absolutamente tudo para retirar a humanidade existente na região, ou seja, essa seria só mais uma manifestação do olhar eurocêntrico voltado ao outro distinto de mim, logo indivíduo inferior.

Como não lembrar, por exemplo de Saartjie Baartman, que no ano de 1800 teve sua humanidade retirada, sendo explorada em Paris e Londres.

De mulher passou a ser chamada de elefante, e depois recebeu o nome de “Vênus Negra”

Esa mujer que trabajaba como criada para un colono holandés en África del Sur, aceptó la propuesta de su amo de exhibirse en Europa como artista, a cambio de una compensación financiera. Era el año de 1800. Pero la realidad es que ese colono sin escrúpulos la explotó como si fuera un monstruo de feria, transformándola en una especie de “mujer elefante”, primero en Londres y luego en París.

Esse é somente um caso entre tantos outros que mulheres e homens africanos que foram animalizados, tal postura seguiu através daqueles que saíram do continente para serem escravizados.

Foram retratados em filmes, teatros famosos nos Estados Unidos e Europa, conhecidos como Minstrel show [1]. Esses eram espetáculos mórbidos que perduraram por anos, principalmente nos EUA após abolição da escravidão. Nem precisamos citar as leis Jim Crow, criadas no final do século XIX, que perduraram até 1965.

Com isso quero dizer que tanto o negro que saiu forçado para ser transformado em escravo, como aquele que ficou, nunca foram vistos como cidadãos, mas sim, máquinas de produção, divertimento, distração e ódio.

Tudo isso ainda segue presente, embora como tudo na modernidade ganhou formas “suaves” que nublam a realidade através de uma falsa integração do negro na sociedade, gerando naturalização e indiferença.

O fenômeno retratado por Rosa, em seu vídeo foi um alerta sobre as fala dos médicos franceses Jean-Paul Mira, del Hospital Cochin de París e Camille Locht, do Instituto nacional Francês de sanidade e Investigação Médica (Inserm) que defenderam que os testes para o desenvolvimento da medicação deveriam ocorrer na África, lembrando que a região tem um forte histórico no que tange testes para enfermidades, o último caso catastrófico ocorreu recentemente, infectando 129 pessoas com o vírus HIV.

Os participantes recebiam, aleatoriamente, durante 18 meses, o regime de vacina ou injeções de placebo. A fim de garantir a segurança os voluntários, também foi proporcionado acesso a profiláticos, incluindo a profilaxia pré-exposição (PPrE), um fármaco antirretroviral que, administrado diariamente, demonstrou ser altamente efetivo para prevenir a infecção por HIV. Entre aqueles que receberam a vacina, 129 infecções por HIV foram registradas. Já entre os que receberam placebo foram confirmadas 123 infecções por HIV, razão pela qual o teste foi suspenso.

Rosa, fala sobre as doenças esquecidas e que abatem diversos países africanos, mas que não atingem europeus e norte-americanos, são ignorados pelos povos ditos “civilizados”. Sua voz potente, mostra que o tempo passou, mas a mentalidade em retratar africanos como coisa, persiste.

Na atualidade, causa mais comoção testes em animais de laboratório do que cidadãos negros, tanto que tal proposta surgiu com naturalidade, e somente quando vozes como de Rosa começaram ressoar é que a Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou repúdio alegando a postura colonialista que tal fala continha.

Leia também: Coronavírus: o silêncio da mídia sobre o confinamento dos pobres

O fenômeno da desumanização, como bem disse Memmi: faz parte do processo colonialista que atinge colonizado e colonizador, por um lado o colonizador extirpa sua capacidade de empatia para infligir dor ao outro, esse outro que deixa de existir frente aos olhos daqueles que exercem violência, tal processo faz parte da lógica do Ocidente, e esse foi um exemplo claro dessa mentalidade.

Atualmente, além de foco dos laboratórios ávidos por dinheiro, empresas asiáticas e européias compram terras para produzir alimentos e exportam, enquanto os habitantes locais passam fome.

A África é o lugar em que a China mais investe. Segundo um porta-voz do Ministério do Exterior chinês, somente no primeiro semestre de 2016 Pequim fechou 245 novos acordos no valor de 50 bilhões de dólares no continente africano. O Império do Meio já superou, há muito, os EUA e as antigas potências coloniais europeias como principal parceiro comercial dos africanos Além de projetos de infraestrutura e acordos sobre matérias-primas […] Pequim aposta cada vez mais em iniciativas militares, tendo estabilidade como palavra-chave. “Na estratégia da China para a África, agora a segurança também desempenha um papel importante. Isso reflete o pensamento chinês sobre temas e interesses globais.

Mas, a consciência branca enxerga a morte com seletividade de classe e principalmente cor negra, marcada pela miséria oriunda dos conflitos instalados pelo colonialismo, nada mais é do que “assunto do passado”.

O fenômeno capitalismo/objetificação faz parte do mesmo processo, tanto em África como em partes do mundo onde vigora o caráter de desprezo ao povo local doente e carente de auxílio econômico, como por exemplo os ciganos na Romênia e tantos outros povos.

A posição do branco é tão dissimulada e sem escrúpulos que tentam afirmar que o negro se utiliza de uma espécie de vitimismo como retórica para conseguir “benefícios” sociais; Isso nada mais é que uma tentativa de tirar a responsabilidade que carregam nos ombros, puro sentimento colonialista que persistente em larga duração, mas que todos fazem questão de ocultar, “incluindo” pessoas negras no mercado de trabalho, publicidade, filmes e propaganda.

Aimé Césaire, que em 1955, escreveu seu ensaio, talvez o mais famoso, Discurso sobre o Colonialismo, expõe que o nazismo só causou tanta comoção porque foi o crime do homem branco contra o homem branco, é dizer: Europa contra Europa.

A Europa é indefensável […] suas vítimas foram os cúmplices; que toleravam esse mesmo nazismo antes de sofrer até aí só tinham aplicados a povos não europeus, e o que brota, rompe, goteja, antes de submergir nas suas águas avermelhadas de todas as fissuras da civilização ocidental e cristã […] Seria inútil citar o coronel Montagnac, um dos conquistadores da Argélia?

“Para varrer as ideias que me assediam algumas vezes, mando cortar cabeças, não cabeças de alcachofra, mas verdadeiras cabeças de homens”.

Conviria recusar a palavra ao conde d Herisson?

“É verdade que trazemos um barril cheio de orelhas colhidas, par por par, aos prisioneiros, amigos ou inimigos”.

Fato, a Europa é indefensável, pois mesmo diante da morte dos seus, mantém seu caráter de exploração de corpos e territórios, busca coisificar o outro em nome da salvação de sua pseudo humanidade, tanto que negros na Itália, como registrados em vídeos receberam tratamento distinto dentro dos hospitais.

Portanto, pura hipocrisia essa romantização da doença que mescla histeria coletiva, nacionalismo exacerbado, e informações desencontradas. Esse método tipicamente europeu que conhecemos há séculos, transforma tudo que ocorre em seu território em fato histórico e o resto, sobras, permanecem a contrapelo como diria Benjamin e acabam no esquecimento, principalmente quando atingem pessoas consideradas “inferiores”.

O COVID-19 não é maior que outras pandemias e doenças que atingiram o mundo e o continente africano, a única diferença é que nos caixões postos em solo europeu há em sua maioria corpos brancos. Quando passar os altos índices na Europa e atingir somente negros e indígenas de áreas carentes, como passou com o zika e a dengue, que agora são enfermidades integralmente de pobres, todo o valor e medo deixará de existir.

Em alguns anos, vamos assistir filmes e mais filmes, escolhidos por homens brancos para grandes premiações, mostrando toda a valentia que o Ocidente carregou nos braços na época da pandemia de COVID-19.

*Camila Koenigstein é formada em História pela PUC-SP, Pós graduada pela Faculdade de Sociologia e Politica de São Paulo e mestranda em sociologia com enfase em América latina e Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Citações

[1] Os minstrel show eram peças teatrais em que atores brancos, com a cara pintada e caracterizados de negros, se burlavam por meio de imitações exageradas de canções,costumes, crenças e formas de falar dos afro americanos. (tierra Madre. p.53)

Bibliografia

Sarah Baartman. A chocante história da africana que virou atração de circo, http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160110_mulher_circo_africa_lab

Julio Feo. ‘La Venus negra’, alegato contra el racismo y por la dignidad humana, http://www.rfi.fr/es/cultura/20101101-la-venus-negra-alegato-contra-el-racismo-y-por-la-dignidad-humana

RFI. Cientistas abandonam teste de vacina contra HIV na África do Sul após 129 voluntários infectados, http://www.rfi.fr/br/%C3%A1frica/20200203-cientistas-abandonam-teste-de-vacin3%A1frica-do-sul-ap%C3%B3s-1

Diferenças entre a África do Norte e a África Subsaariana, https://www.proenem.com.br/enem/geografia/africa-africa-do-norte/

MEMMI, Albert. Retrato del colonizado. Buenos Aires, Argentina. Ediciones de la Flor. 1966.

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