Redação Pragmatismo
Educação 08/Fev/2018 às 04:12 COMENTÁRIOS
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Trabalhadora que aprendeu a ler com método cubano diz que "vivia na escuridão"

Publicado em 08 Fev, 2018 às 04h12

"Quem não sabe ler vive no mundo só pra dizer que está vivendo, mas não sabe de nada. É como se estivesse no escuro, entendeu? A gente vê as coisas, mas não sabe o que é", diz agricultora brasileira que aprendeu a ler com método cubano

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A dona de casa Doralice dos Santos Oliveira (reprodução)

Cristiane Sampaio, Brasil de Fato

A dona de casa Doralice dos Santos Oliveira já contava 53 anos – mais de 40 deles trabalhados na enxada, sob o sol ardente do campo – quando conheceu o mundo das letras. “A coisa que mais achei bom na vida foi ir pra escola“, conta. Moradora do município de Itaipava do Grajaú, interior do Maranhão, e filha de analfabetos, ela passou a vida utilizando a digital para assinar documentos, uma necessidade que só mudou em 2016.

Depois de um convite do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ela passou a frequentar o projeto Sim, Eu Posso. Foram oito meses de aulas até que Dona Dora – como é conhecida na comunidade – passasse, enfim, a fazer parte das novas estatísticas do estado. Ela é uma das cerca de 7 mil pessoas que se formaram pelo projeto, uma iniciativa voltada para a alfabetização de jovens, adultos e idosos, apoiada pelo governo estadual.

Baseado num método cubano e adaptado ao Brasil pelo MST, o projeto é hoje a esperança de milhares de maranhenses que viveram por muitos anos sem o direito de saber ler e escrever. “Quem não sabe [ler] vive no mundo só pra dizer que está vivendo, mas não sabe de nada. É como se estivesse no escuro, entendeu? A gente vê as coisas, mas não sabe o que é“, conta Doralice.

O Maranhão é o terceiro estado brasileiro em número de analfabetos, alcançando 840 mil pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou mais no estado é de 16,7%.

Essa realidade se transforma à medida que novas pessoas ganham assento em uma das turmas do Sim, Eu Posso. No segundo semestre de 2017, teve início a segunda etapa do projeto, com mais de 20 mil alunos distribuídos em 15 municípios. Na primeira jornada, em 2016, cerca de 75% dos 9.482 inscritos encerraram o curso alfabetizados.

“A vontade é metade da viagem”

Aplicado nos municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, o projeto teve a primeira experiência no Maranhão em 2008, em caráter experimental e voltado para assentamentos e acampamentos de reforma agrária. Hoje, a iniciativa reúne diferentes grupos – trabalhadores urbanos, sem-terra, indígenas, quilombolas, entre outros – e alcança gente como o entusiasmado Raimundo Neves Ferreira, um aposentado de 62 anos que se sente “como um garoto de 12“.

Todo dia, quando cai a noite, lá está ele sentado na sala de aula do professor Erasmo – o próprio filho, diga-se de passagem –, ao lado de outros seis membros da família. “A melhor parte do meu dia é esta, a hora em que eu venho pra aula“, conta, estampando um sorriso.

Com 48 anos de agricultura, Raimundo estudou apenas uma vez na vida, na adolescência, quando teve a oportunidade de aprender o abecê com uma professora particular. Mas, sentindo todo dia o peso da enxada, não conseguiu ir além, e só agora pisou numa sala de aula pela primeira vez. “Praticamente, eu não sei nada, mas tenho vontade de aprender“, vibra.

O que ele vai fazer depois que concluir os oito meses do curso de alfabetização? Escrever um livro sobre a história do município de Itaipava do Grajaú, onde nasceu e se criou. “Ainda está bem longe [disso acontecer], mas a vontade é a metade da viagem, aí eu vou lutar pelo resto“, diz, ensinando todos ao redor.

Companheirismo

A empolgação do aposentado é a mesma que move o coração de gente como Miguel da Conceição Nogueira, 84 anos, e Geni Rodrigues dos Santos, 77 anos, o casal de alunos mais idoso do projeto. Com 62 anos de casamento, os dois pisaram na sala de aula pela primeira vez juntos, para o encanto de todos que fazem parte desse convívio.

Todo dia eles saem de casa com a roupa bem passada e mochila nas costas para assistir às aulas do Sim, Eu Posso. “Nós somos os primeiros que chegam e os últimos que saem“, gaba-se Geni, que não pôde estudar quando jovem porque precisava ajudar a mãe a tirar o sustento de casa. “Tinha muita vontade, mas não tinha tempo, aí chegou o momento em que sou estudante também. Tudo tem o dia“, celebra a aposentada.

Com uma origem tão pobre quanto a dela, Miguel não contava com a possibilidade de ainda conseguir estudar, mas hoje, com apenas poucos meses de aula, já comemora o feito de escrever a própria assinatura, estampada no título de eleitor recém-tirado. “Eu fico muito satisfeito, alegre“, diz, exibindo o documento.

Ao serem convidados para o projeto, os dois, assim como muitos outros alunos, sentiram timidez e receio, mas seguiram em frente, na ânsia de tecerem outro horizonte de vida, a despeito de qualquer idade. Segundo a coordenadora pedagógica Maria Zenilde, que acompanha sete núcleos do projeto, o medo dos alunos não resiste ao encanto da sala de aula. “A resistência de vir pra escola é só até o momento em que eles vêm porque, no dia seguinte, não querem mais deixar de vir“, conta.

Que o diga Dona Dora, que, mal se formou na turma de 2016, já é uma das alunas do programa Educação de Jovens, Adultos e Idosos (Ejai) do estado. “Eu não paro, não. Quando não estou fazendo crochê, pego o livro. Quero é aprender“, diz.

Já o medo, aquele que quase a impede de iniciar os estudos, ficou no passado, na retaguarda da vida, para onde Dora não pretende voltar. “Só vou daqui pra frente agora, fazendo mais e mais cursos“, avisa, espiando o futuro.

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*A repórter viajou com apoio do Governo do Estado do Maranhão e do MST.

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