Redação Pragmatismo
Racismo não 22/Jan/2018 às 14:15 COMENTÁRIOS
Racismo não

Memórias de minha velha mãe: Desmanchando o noivado

Publicado em 22 Jan, 2018 às 14h15
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Douglas Rodrigues Barros*, Pragmatismo Político

Todos avisaram; as famílias não se davam bem. Na boca da então sogra, minha mãe era só a negra de Seu Tetéu. Numa metrópole como São Paulo, contudo, isso poderia ser esquecido. José, olhos azuis e ombros largos, viera antes para aprumar as coisas. Minha mãe, olhos negros e pele escura, chegou depois. O sofrimento de ambos, que para o pobre torna-se a lamparina da formação, era superado pela esperança da união.

Um sorriso, ou antes um estado de graça, frisava os lábios grossos; os olhos fixos no futuro próximo vendavam-se às vezes com suspiros de satisfação ante o acúmulo de dinheiro conquistado com suor e lágrimas. Dinheiro operário.

Minha mãe e Zé decidiram voltar para a “terra” da qual tinham partido juntos. Com o dinheiro juntado dava para comprar uma casa e abrir uma bodega lá pelos lados do Cariri. Também era provável que a ignorância dos seus parentes tivesse sido superada pela saudade e perda para a distância. Triste engodo.

A alegria do retorno durou pouco mais de uma semana, mas vale descrever o céu descrito pela minha mãe: “o céu, sempre azul, sorria àqueles que o observavam desajeitados da caçamba do pau de arara; o mandacaru, cheio de vigor e de seiva, calava fundo no peito e trazia as nossas velhas cantigas”.

Tudo marcado. Casamento e festa. Teve até um vestido que, na vida de minha mãe, fora o primeiro e último. A família do noivo, porém, se reuniu para evitar o desfecho. Para a sogra, a despeito daquelas feições graves e severas que impunham respeito e inspiravam afeição e simpatia, minha mãe era só muito escurinha. “Preta demais para a família!

A fortaleza da pobre moça não se abalaria por isso. A velha sogra era uma ignorante. Contudo, a expressão de tristeza e ao mesmo tempo resignação, que respirava na fisionomia de José, traduzia um abalo sísmico naquele castelo de amor erguido na areia. Fazia pressentir na pobre moça o predomínio de uma carência imperiosa e infantil de seu noivo, como se aquele bem-amado moço, namorado por sete anos vertiginosamente, lhe fosse totalmente desconhecido.

Titubear não era uma alternativa à José. Depois de tudo, sete anos juntos trabalhando em fábricas de São Paulo, nas ruas como camelôs e fazendo bicos aos finais de semana, acreditar, por um segundo que fosse, naquela ignorância transmitida por sua família era um verdadeiro crime para o coração sensível de minha mãe.

Contudo, faltando quinze dias para o casamento, a moça – minha mãe – entrou correndo na casa de seu pai com olhos mareados de lágrimas. Era uma mulher que cumpria a penitencia do amor, depois de ter gasto o seu tempo e os seus haveres em promessas e esperanças que agora se revelavam estéreis. Não queria acreditar que tudo desmoronava por causa de sua pele. Não queria acreditar nisso.

Pegou todos os seus pertences, inclusive o vestido, colocando-os numa mala e sem se despedir de NINGUÉM partiu para São Paulo novamente.

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Ao chegar em São Paulo depois de quinze dias, porém, logo descobriu-se grávida. Mas, num susto que envolveu um camburão da polícia e o estouro de um pneu de ônibus, minha mãe teve um aborto espontâneo de seu filho que já tinha cinco meses na barriga. O feto, aquele que seria meu irmão, ficou agarrado em suas pernas e o sangue escorria enquanto os policiais foram em auxílio. Era o fim de uma longa história de amor.

PS – José ficou com sua mãe e se casou com uma prima de mesma cor, separando-se três meses depois e fugindo da cidade, hoje, segundo minha mãe, mora em Rondônia. Ambos, nunca mais se viram ou se falaram.

*Douglas Rodrigues Barros é doutorando em ética e filosofia política pela Unifesp, acabou de publicar a novela “Os terroristas?” pela editora Urutau e colaborou para Pragmatismo Político.

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