Fotógrafo que perdeu a visão: "lembro da violência policial todos os dias"
Lembro da violência policial todos os dias, diz fotógrafo que perdeu visão. Vítimas, familiares e movimentos sociais se unem para pedir desmilitarização da polícia e reparação do Estado
Não há um dia sequer, desde o fatídico 13 de junho, que Sérgio Silva não se lembre do dia em que perdeu a visão do olho esquerdo depois de ser atingido por uma bala de borracha, enquanto trabalhava como repórter fotográfico. “Todos os dias quando eu acordo, me olho no espelho e a imagem que tenho é essa que você está vendo agora: da violência, do meu olho fechado. Todos os dias eu lembro, não tem como.”
Naquela tarde de junho, em São Paulo, Sérgio registrava, pela agência Futura Press, uma manifestação contra o aumento da tarifa de transporte público quando policiais começaram a atirar com balas de borracha na esquina das ruas Caio Prado e Consolação, no centro da cidade.
A tragédia que lhe tirou a visão, há quase quatro meses, mudou sua vida. Não apenas deu fim ao seu instrumento de trabalho, como o impediu de conseguir manter uma rotina comum para um homem de 31 anos, casado e com duas filhas. “Além de tecnicamente eu estar muito abaixo de um fotógrafo normal, não sou capaz de enxergar direito o caminho pelo qual devo ir ou mesmo de pegar um transporte público sozinho”, contou. “Retomei a vida social recentemente, há cerca de três semanas. Vou a casa de familiares, amigos, estou fazendo primeiro uma adaptação, para depois pensar em exercer minha profissão como antes.”
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Silva é mais uma das vítimas da ação da polícia militar que, juntamente com outras entidades e movimentos sociais, aproveitaram o aniversário de 21 anos do Massacre do Carandiru – no qual 111 presos morreram por integrantes do Choque – e os dias que antecedem os 25 anos da Constituição cidadã para reivindicar reparação e justiça pelos abusos cometidos pela polícia, assim como a sua desmilitarização.
Falando em nome do Movimento Mães de Maio, Débora Silva fez um chamado nesta quarta-feira 2 para a necessidade de blindagem da sociedade contra a violência institucional, cristalizada por abusos levados adiante por tais agentes do Estado. “Os crimes de maio não vão cair no esquecimento, não passarão. Enquanto não soubermos da verdade e justiça, teremos crimes de maio continuados. Queremos um outro Estado. Queremos uma polícia desmilitarizada”, protestou. “Nós não somos da paz. Somos do ódio. Mataram meu filho e quero resposta em relação à incompetência policial, à injustiça.”
Os mortos de maio de 2006 – o que muitos veem como uma resposta da polícia aos ataques do PCC em São Paulo naquele ano – fazem parte de estatísticas alarmantes. De acordo com a Rede Nacional de Familiares de Vítimas da Violência, o Brasil é palco de ao menos 60 mil homicídios por ano. O total equivale a 5 mil mortes por mês ou quase 165 por dia. Os números, que cruzam dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a Secretaria de Saúde, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e Crime) e de pesquisas como o Mapa da Violência, mostram que nos últimos anos foram mais de 500 mil pessoas assassinadas no País.
Os números contemplam ainda casos mal esclarecidos, como os de desaparecimento forçados, como é o caso de Amarildo, pedreiro desaparecido na favela da Rocinha, cujo caso levou ao indiciamento de dez policiais militares na última terça-feira 1º, e de mortes em circunstâncias não explicadas, como foi o caso do auxiliar de limpeza da Unifesp Ricardo Ferreira Gama, morto em agosto na Baixada Santista.
“Que meu filho passasse dez anos dentro da cadeia, mas estivesse com saúde e vivo. Mas onde eu posso visitar o meu filho hoje? No cemitério”, lamentou a sua mãe, Elvira Ferreira, presente no ato que reuniu vítimas e parentes de vítimas da violência policial. O funcionário da universidade federal morreu em 2 de agosto, depois de ter sido ameaçado por policiais militares em Santos dias antes. “Eu lavei o sangue do meu filho no chão da rua. Esfreguei com uma vassoura o resto de massa cefálica que tinha ali. De lá para cá, não sei mais quem eu sou.”
Fazem coro pela desmilitarização da polícia outras entidades como MPL, MTST, Rede 2 de Outubro, Coletivo DAR, Comitê contra o Genocídio da População Preta, Pobre e Periférica, Comissão Estadual de Mortos e Desaparecidos SP, Frente de Esculacho Popular, Margens Clínicas, Grupo Tortura Nunca Mais e Periferia Ativa, além da Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência (RJ), Campanha Reaja ou Será Mort@ e Quilombo Xis (BA).
Reparação
A briga não é apenas pelo fim da violência e abuso policial, mas também pela assistência do Estado e reparação a vítimas. Apesar de estar impedido de trabalhar desde 13 de junho, Silva conta que em nenhum momento o Estado ofereceu ajuda médica, psicológica ou financeira: “Foi um silêncio total e absoluto”, conta. “Tenho me apertado, diminuído o consumo. Minha esposa está se desdobrando, procurando mais freelas e trabalhos aos finais de semana. Tenho uma filha de 7 anos e outra de 13, para as quais pago escola, convênio médico. São gastos que um pai de família tem de manter e que não estou conseguindo colocar dentro de casa hoje.”
Além da indenização que pretende pedir ao Estado por danos morais e físicos – depois de uma cirurgia para reparar a fratura no rosto abaixo do olho esquerdo e outra para colocar uma prótese -, Silva coletou 45 mil assinaturas para uma petição na qual solicita uma reunião com secretário de Segurança de São Paulo, Fernando Grella Vieira, para debater o uso das chamadas armas não letais. “São menos letais? Mas cegam”, lembra. “Essa petição é para proteger essas pessoas que estarão na rua novamente, proteger minhas filhas, meus próximos filhos. Não sou contra a polícia, sou contra a militarização dela. Contra essa polícia que anda armada, que atira em jovens da periferia, que vai para manifestações e usa suas armas menos letais.”
Marsílea Gombata, CartaCapital