Eduardo Bonzatto
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Política 04/Mar/2024 às 13:07 COMENTÁRIOS
Política

Curule

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 04 Mar, 2024 às 13h07
Curule

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Roma Antiga. No período republicano e, mais tarde, no imperial, a cadeira curul (em latim: sella curulis, um termo supostamente derivado de “currus”, “carro”) era o assento no qual os magistrados romanos com poder de imperium tinham o privilégio de se sentar.

Carlo Bugatti (1856-1940), um designer milanês que revolucionou a arte decorativa, criou a cadeira curule como um resgate para os dignos magistrados que no século XX ousariam sentar no lugar de reis.

Trono de forma assimétrica, a cadeira de Bugatti convida a reflexões importantes nos dias que seguem.

No Brasil, o império surgiu com Fernando Henrique Cardoso.

Sua inspiração vinha direto de D. Pedro II, certamente o mais elegante, sofisticado e inteligente senhorio do poder na história pátria. E Fernando Henrique trouxe de volta essa aura imperial brasileira para o raiar da democracia neoliberal. Essa não seria a única contradição do tempo.

Primeiro presidente ilustrado por uma formação acadêmica a registrar em livros e artigos as potencialidades que a transição pós ditadura implicariam.

Nesse sentido, preparou as bases para uma longa jornada da esquerda que viria a seguir. Foi um dos fundadores do PT e um dos articuladores da emergência de Lula no cenário político para o século XXI.

Essa fusão entre ilustração e projetos de esquerda, ou em outras palavras, entre as elites ilustradas e projetos de justiça social, ecologia, fim das desigualdades e supressão das hierarquias culturais fermentavam um caldeirão que incluía todas as vertentes políticas numa jornada virtuosa para acolher no poder os representantes populares.

As arrogantes elites industriais e rurais seriam paulatinamente substituídas por oligarcas sem passado, sem ilustração, sem berço.

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Todos os elementos do social seriam revertidos na mesma direção. Parecia ser o preço da globalização que avançava.

A educação perdia definitivamente seu componente de modificação no futuro do trabalho; a política passava a ser identificada com acordos fisiológicos razoáveis; a produção cultural sacrificava qualquer aprofundamento em nome da massificação dos conteúdos; o direito se consolidava em formas artificiais de empoderamento; a supressão das fronteiras nacionais eliminava qualquer proteção capaz de preservar valores tradicionalmente reconhecidos como fundamentais para vincular o sujeito a um passado genealógico que lhe daria sentido.

A partir desses movimentos, a desvinculação interna da nação e as linhagens familiares foram ao mesmo tempo eliminadas. O mundo social parecia propor uma tábula rasa por onde se teria oportunidade de começar de novo a partir do zero.

Cada elemento de ligação com a velha ordem social foi sendo desfeito e substituído por um voluntarismo que em tudo parecia ânsia por uma justiça que o tempo sombrio da ditadura havia suprimido.

A instituição da família, da educação e do trabalho refundavam formas novas de relacionamento. A religião se diversificava em opções horizontais igualmente abdicando de hierarquias ancestrais.

Justiça é o termo que em todo canto vêm à tona. E ali se estabeleceu, na tona. Justiça social, salvamento dos danos causados pela velha ordem industrial ao meio ambiente e às camadas protetoras de ozônio, fim das desigualdades sociais, de gênero, de classe, de raça, de opções sexuais.

Esse momento inaugural parecia refazer todas as promessas para o futuro erradicando os malefícios totais do passado. E tudo estava lastreado pela constituição de 1988, fundadora de uma nova e benéfica cidadania. A democracia tinha a partir de então rosto e forma, prática e prédica. Fortalecia como um discurso a prova de queda.

Era uma palavra mágica que incluía o futuro e julgava o passado como velho e ultrapassado e no qual devíamos depositar só desconfiança e rancor.

Enquanto as urgências neoliberais favoreciam a formação de novos magistrados que avançavam a proteger indivíduos e organizações que surgiam armados para a guerra civil, as tensões fomentadas pelos novos direitos completavam o cenário em que discurso, narrativa e prática compunham o novo universo da política da comunidade.

A comunidade passa a ser o locus fundamental do social e suas relações, de alta complexidade, serão reduzidas a jogos de força e influência. A partir de então nunca de formou tantos advogados, tantos juízes, tantos magistrados. A figura central do mundo neoliberal será marcada definitivamente pelos rábulas. Nunca tantas oportunidades de vagas de emprego estiveram disponíveis para as levas de praticantes da justiça.

A aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil passou a ser obrigatória em 1997. Isso porque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9.394/96) retirou barreiras para a implantação das Instituições de Ensino Superior no Brasil, o que trouxe um expressivo crescimento no número de faculdades de Direito no país.

A proporção do número de advogados a partir de então aumentou exponencialmente, embora a aprovação no exame sempre foi bastante inexpressiva. Apenas recentemente os índices de aprovação foram aumentados.

A justiça dos novos tempos carece de togados.

De modo geral, o caráter de um império é a qualidade de seu governante. No caso específico do Brasil, os ocupantes do cargo político não carregaram consigo nenhuma ilustração. Mas isso acabou por ser marcante no caso dos magistrados. Todos ilustrados, uma boa parte deles ocupantes de ritos quase clericais alçados ao serviço público e alguns capazes de ocupar a cadeira curule com tanta pose e dignidade que podemos sentir que vivemos em Roma, ao tempo dos césares.

A justiça e a lei operam por níveis para conter abusos. O ministério público monta o caso, a polícia investiga e as cortes julgam acolhendo acusação e defesa. No caso brasileiro, em nome da democracia e da justiça social, os dois primeiros níveis foram suprimidos e a corte acusa, investiga e condena.

Não conheço melhor definição de Império.

Essa noção de império do reino da justiça, sua representação orgânica manifesta no social, implica em fluxos de discursos, que são políticos, educacionais, midiáticos, dentre tantos outros, em que o clamor por justiça, o capital efetivo que promove hegemonia, no fundo apenas estimulou o próprio sistema jurídico, em que por tradição originária ainda constante na carta de direitos do homem e do cidadão resultante da revolução francesa, diz apenas da justiça daqueles que são os cidadãos e que, ao tempo de Napoleão, era os burgueses.

Mudaram os termos e também mudaram os ritos, mas a esfera jurídica conserva em seu núcleo o mesmo teor enganoso do passado. Quando afirma a justiça é ainda a do proprietário ou nos termos atualizados, dos que podem pagar.

O império é uma coluna infinita de trocas fisiológicas, de salamaleques de privilégios e de cortesania da civilidade, em que a voz pausada, o português castiço e postura de austeridade dizem tudo nos tribunais superiores.

Salvador Allende reconhecia as assimetrias jurídicas quando anunciava: “não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos”.
A cadeira curule é assimétrica não a toa.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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