Eduardo Bonzatto
Colunista
Política 29/Fev/2024 às 23:22 COMENTÁRIOS
Política

Argumentum Ad Hominem

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 29 Fev, 2024 às 23h22
era mais superficial da modernidade

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Esse tipo de falácia tem por objetivo atingir a pessoa que expressou (contra o homem) o argumento. Um exemplo: quando alguém diz, Sou a favor da descriminalização das drogas. A pessoa que ouve a frase responde: Só sendo uma usuária de drogas para ser a favor dessa ideia.

Vivenciamos a era mais superficial da modernidade. E esse é um problema bioquímico.

Metabolismo é o conjunto de transformações que as substâncias químicas sofrem no interior dos organismos vivos.

A expressão metabolismo celular é usada em referência ao conjunto de todas as reações químicas que ocorrem nas células.

Einstein dizia que quem não pensa opera pela coluna espinhal. Isso é parcialmente verídico quando tentamos entender os caminhos do pensamento atual.

A modernidade ocidental colonizadora nasceu sob dois prismas difusos. De um lado, a escatologia cristã e de outro a moralidade do certo e do errado.

A escatologia cristã naturalizou que o futuro será premiado ou punido àqueles que caminham sob o prisma moral.

Faça o bem, e terá a glória de deus no apocalipse. Faça o mal e será punido pelo inferno.

Vivemos sob esse determinismo colonial até hoje, sem questionarmos as bases teleológicas ou morais. Nossa racionalidade se constituiu assim, aprisionada, limitada, acanhada para que não pudéssemos voar sob as cidades constrangedoras que o novo mundo estava a construir. Há muito mais do que cidades no mundo.

Mas as cidades, os mapas, foram emulando em nossa fisiologia impulsos geográficos. E a biologia foi imprimindo em nossa psique uma prisão cartesiana da razão. E essas esculturas foram edificando nosso corpo como o corpo das cidades e do mundo.

Então a geografia do corpo, a geografia da mente e a geografia do mundo foram se coincidindo e repercutindo os mesmos fundamentos.

O tempo e o espaço fizeram com que essa forma colonizadora fosse produzindo efeitos importantes. Tecnologia, cultura, religiosidade, cientificidade, educação, intelectualidade, formulando um pensamento dicotômico que é importante para a criação de dualidades que se apresenta como alternativa e possibilidade. É a consagração da dialética como ordenamento geográfica, social, histórica, psíquico e biológico.

A dialética é um sistema completo que engloba oposição, conflito originado pela contradição entre princípios teóricos e fenômenos empíricos. Um processo de diálogo entre interlocutores comprometidos com a busca da verdade, através do qual a alma se eleva, gradativamente, das aparências sensíveis às realidades inteligíveis e ideais.

Trata-se, como se vê, de uma espécie de raciocínio lógico e coerente em seu encadeamento interno que, no entanto, pode e deve ser refutado.

Tem em si todos os elementos para edificar a razão humana em seu locus de superioridade inata e divina, apesar de ser colonial e redutora das possibilidades da vida.

É o elemento metodológico que faz com que a teleologia e a moral se ajustem para o benefício de todos, daqueles que concordam e daqueles que discordam. Não há como afirmar qualquer injúria inaugural para a jornada colonial.

Quem quiser que a refute. O que não é possível é recusá-la.

Automatismo do concordo discordo, ou isto ou aquilo. Eis a natureza da teleologia e da moralidade.

Tanto a moralidade quanto a teleologia são mágicas no sentido de apresentar um mundo em processo por corredores estreitos. Basta percorrer.

Em tempos diferentes, tanto a moralidade quanto a teleologia servem a propósitos corretores. Os estados burgueses elegeram o cidadão como elemento ordenador da sociedade. Os estados totalitários, os líderes e seus apelos. Os estados democráticos, a política da escolha limitante. Tudo em nome da ordem e do progresso.

Hoje, o politicamente correto contempla o que é certo e o que não é e os caminhos para a teleologia. Seus aportes são poderosos e ameaçadores. Sob a bandeira do politicamente correto, outros empoderamentos foram sendo tecidos. Ai daqueles que se opuserem á moralidade politicamente correta.

Intelectualmente falando, é apenas censura ameaçadora. Pense o que quiser, mas cuidado com o que expressa. Mas esse é um recurso frágil e covarde. No entanto é vasto e insidioso, pois se apresenta como totalidade. Como se a moral fosse absoluta e infalível. Basta que um grupo eleja certos temas como certos e tá pronta a censura e a pena.

Lugar de fala, cancelamentos, empoderamentos, patrulhas ideológicas, cada elemento se apresenta como válido e justo. Mas nenhuma guerra é ganha com palavras. E se por alguma razão alguns pareçam estar dormindo, é apenas por instantes. O despertar é ruidoso e ruinoso. Mas é apenas a dicotomia sendo dicotômica e isso tá previsto e esperado para manter o sistema de vulgaridades funcionando.

Condenar pela aparência, pela forma parece bastar para a mentalidade mediana que consagrou as redes.

A questão que importa é se aquele que julga domina seus códigos de julgamento.

O pensamento moral e progressivo, base da moralidade cristã e da teleologia cristã, está apto a exercer o papel no tribunal vivo das redes?

Não me entendam mal. A moralidade do certo e do errado é basicamente a cultura colonial e cristã. A teleologia é basicamente cristã, a promessa do progresso é que no futuro teus esforços serão recompensados, no paraíso.

Quando você ouve falar de uma cultura africana que amputa clitóris, julga rapidamente como prática selvagem. Mas quando a cultura reformista das cirurgias plásticas amputa clitóris, é apenas uma escolha de mães e meninas para corrigir efeitos colaterais da natureza imperfeita.

A ilusão de que a moralidade é parcial e aplicada é um erro grave, pois oculta os vínculos morais de cada tema e proposta. Acreditar que o socialismo é bom e o capitalismo é ruim é moralidade cristã. Que a direita é boa e a esquerda é ruim, moralidade cristã. Cada elemento em que se aplica o certo e o errado, o bom e o ruim está aprisionado na moralidade fundamental colonial cristã. O civilizado e o selvagem até o politicamente correto são abas da mesma moralidade.

Certo e errado, são categorias morais e para nós, colonizados existe apenas a moralidade cristã. A cultura é absolutista. A ideologia é absolutista. São os discursos e narrativas que ocupam um lado no espectro cultural e ideológico. E a dicotomia se transforma no modo de pensar o mundo, a realidade, o social e a história.

O mundo intelectual não está imune a essa dicotomia, embora haja uma historicidade em suas formulações.

Por um tempo importante, essas formulações atingiram um pico canônico, em que cada pensador recorria aos ombros de gigantes para questionar, propor, inovar ou condenar ideias no espectro.

Havia certo labor no esforço canônico de discutir ideias, princípios e fundamentos. Isso ampliava o cânone. Criava linhagens teóricas. Estimulava outros a invadir certos redutos políticos para expor incongruências e falhas teóricas.

Mas isso demandava estudo e imersão e, principalmente, escolha no espectro moral da cristandade.

O século XIX foi prolífico nessas jornadas e diversas correntes teóricas ali fizeram fonte e promessa. O século XX não descurou do esforço de se apresentar como questionamento e proponente de novos caminhos aparentemente novos, embora não fossem. Mas o esforço é válido num jogo ideológico. É preciso estudar, ler, pensar. Não era possível questionar impunemente. A reação estava ali, próxima, atenta e feroz.

O território das ideias era frutuoso e perigoso ao mesmo tempo. Mas quando caiu o muro de Berlim, o tempo do esforço foi pro ralo. Pois alguns acreditaram malandramente que a história havia acabado. Outros, que o território estava livre para a preguiça.

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Os gestores da esquerda nos países periféricos, como o Brasil, acreditaram na estratégia de Gramsci da luta cultural precedendo a luta política. E os territórios da cultura foram sendo palmilhados.

Diferente da luta intelectual, a luta cultural é exógena, ou seja, é externa ao ser, ao intelecto e seu território é de proverbiais zonas de discursos, de estéticas, de narrativas. Pois todo esforço reside em dominar espaços de divulgação. Mídias, produções culturais, universidades, cada território em suas regras próprias, dinâmicas singulares mas que estão sempre afeitos da discursos. Tudo muito longe das querelas intelectuais, em que o labor, o domínio de teorias alavancam as tretas com aqueles que estão igualmente preparados para o confronto. Nas lutas culturais é a superfície que fala primeiro e se a contenda for rápida, o território está garantido. Se há domínio dos órgãos emissores, resta apenas a recepção, que não está atenta às lutas para a conquista. Exatamente por essa razão, quando a concessão de direitos de privilégio aparece, aqueles que os recebem consideram que foi por lutas históricas compensatórias. Sequer imagina que as lutas no âmbito da cultura estão por trás dos benefícios.

Isso porque o território da cultura é superficial e sua nomenclatura não precisa de iniciáticos, mas apenas de esperteza antecipatória no domínio das instituições sempre vulneráveis.

“O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’. […] O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado […] mesmo quando distinto e destacado do povo nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, comum a concepção de mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o ‘saber’; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais-povo” (GRAMSCI, 2001).

No caso de uma sociedade intelectualmente superior, tais indicativos poderiam provocar novas percepções do papel do intelectual, mas no Brasil que desembocava no neoliberalismo, tais indicativos fizeram apenas a supressão de uma zona de esforço para que o povo, essa entidade sociológica misteriosa assumisse o próprio lugar do intelectual.

Como por aqui a superfície é tão notável, bastou que uma parcela substantiva que ocupava as zonas culturalmente ocupadas se considerassem marxistas. E pronto.

Todo o papel da esquerda ficou reduzido a esse estereótipo de esquerda. Se perguntamos a um professor universitário que se considera de esquerda o significado de qualquer teoria, solicitando explicações sobre, por exemplo, o que é o marxismo, teremos um rosto indignado diante de nós. E então virá o inevitável, o recurso ad nominem.

Os impropérios virão sem pudor. Mas se você formular alguma teoria qualquer que contrarie a aridez intelectual do esquerdista, será taxado de direitista, de fascista, de homofóbico, de misógino e além.

Esse professor, que se alimenta do discurso ideológico raso da esquerda, nunca leu Marx, nunca estudou os fundamentos que lhe garantiriam um lugar no cânone e sequer sabe o significado de cânone, pois lhe basta o grito, a injuriosa revolta por ter sido questionado por alguém tão insignificante como você, seja lá quem for.

Ele é de esquerda porque a moral do seu lugar de fala é absoluta e inquestionável, afinal ele protege o planeta contra a destruição da camada de ozônio, ele é contra a misoginia, contra a homofobia, contra o machismo, enfim, contra tudo que é ruim e está ligado afetivamente a tudo que é certo e bom.

Essa soberania ignorante, ancorada no politicamente correto, não exige nenhum esforço, apenas a fala mágica do lado certo da moral cristã.

Como todos os recursos morais foram culturalmente apropriados, quem não estiver concordando, é fascista, nazista, e sei lá o que mais.

O esforço, o estudo, a leitura das obras canônicas que definiram sua opção ideológica de esquerda não foram sequer arranhados. Nunca entendeu uma vírgula escrita por Marx. Mas usa seu nome como a fé cristã indica.

O recurso ad nominem, que desqualifica qualquer um que ouse pensar diferente é moeda fácil nesse mundo superficial e estético. Ninguém precisa estudar, laborar, refletir, se equivocar, recompor pelo esforço intelectual historicamente dado para incorporar uma zona moral de domínio, basta afirmar. Sou de esquerda e você é fascista.

Sou marxista e você é o que? Não ouse perguntar a esse bosta o que é marxista, que ele dirá, sem dúvida, é quem protege os pobres, os fracos, os despossuídos. E sua proteção se resume a isso. Um covarde, um inútil, um ser intelectual que não se distancia em nada de uma bactéria.

Certa vez, aqui na varanda de casa, chamei um desses imbecis de bactéria intelectual e ele ficou visivelmente ofendido, reagindo assim: poxa, você me chamou de bactéria, caramba!

A estas amebas intelectuais preguiçosas e oportunistas, só restam diante daqueles que pensam, injúrias, o argumentum ad hominem.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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