Eduardo Bonzatto
Colunista
Saúde 01/Abr/2022 às 11:45 COMENTÁRIOS
Saúde

O medo

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 01 Abr, 2022 às 11h45

Individualmente, o medo constrange, adoece, diminui, encolhe, ao mesmo tempo que solicita a fé, a medicina, a vacina, a autoridade, o salvador. E o medo psíquico que pode ser resumido no medo da perda e o medo da falta

medo

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Capítulo do livro Heliângenese: O paciente se cura, ancorado na medicina canabinóide, no prelo.

Exceto o homem civilizado, o restante da vida não sente medo. Os sistemas intuitivos funcionam para indicar situações e zonas de perigo.

O homem civilizado é o homem colonizador/colonizado e o medo foi apreendido para fazer cumprir sua natureza heteronômica.

O medo é um estado químico do organismo, pois inunda o corpo com cortisol. E o cortisol acidifica um corpo cujo equilíbrio deve pender para o alcalino, em que doenças não proliferam.

Seria possível descrever aqui uma trajetória do medo no mundo ocidental, esse mundo colonizador que é inaugurado com a peste negra na Europa. Esse medo primordial todavia não foi suficiente, pois a crermos nos relatos do tempo, grupos inteiros de pessoas passaram a devotar o tempo que lhes restava a orgias e destemperos no raiar da modernidade. Outros medo foram sendo divulgados: o medo de perder suas cabeças no auge da revolução, o medo dos contos de fadas logo cedo instilados nas crianças, o medo do futuro, o medo das guerras, o medo da morte.

Nos resistentes grupos neolíticos como as tribos, as comunidades ancestrais que se movem na modernidade, em que o indivíduo não foi completado e que o apelo comunal é muito forte ainda o medo não encontra respaldo para ser internalizado e a intuição é parte dos dispositivos do corpo insurgente que marca a dinâmica das máquinas de guerra primitivas.

Produzido pela parte superior das glândulas suprarrenais, ou adrenais, o cortisol é uma hormona corticosteroide proveniente da família dos esteroides. À medida que o corpo percebe o estresse, as glândulas produzem o hormônio e o liberam na corrente sanguínea. Em níveis normais sua produção é parte de nossas atividades diárias, mas sob o estresse e o medo, há um excesso que danifica todo o sistema biológico do organismo.

O hipotálamo, localizado na região central do cérebro, pode “sentir” quando o sangue está com níveis regulares do hormônio. Se o nível estiver muito baixo, o cérebro envia sinais para as glândulas suprarrenais para ajustar a produção. Os receptores de cortisol, os quais ficam em grande parte das células do corpo, o recebem e o usam de formas diferentes.

Ele é produzido, sobretudo, diante de situações ameaçadoras e perigosas. Barulhos estrondosos, latidos de cachorro, andar por uma rua semi-iluminada à noite, dirigir na chuva ou em meio a um trânsito engarrafado, assalto no transporte público (ou o medo de) são alguns dos gatilhos para o estresse.

No entanto, nas sociedades colonizadas, o medo faz parte da necessidade de controle e é estimulado por diversos mecanismos exteriores de alerta tanto para coesão do grupo, como para reforçar a obediência necessária como elemento unificador.

Sociedades colonizadas são forçosamente sociedades administradas por instituições reprodutoras, tais como a família nuclear (tensão e estresse familiar continuado), a educação formal massiva (tensão nas exigências competitivas do estudo), o trabalho que extrai o tempo máximo do sujeito (tensões diversas no trabalho escasso e solicitação de competências).

Mas outras instituições são muito mais devotadas à construção do medo social como a medicina, a polícia, a política, o entretenimento, a tecnologia, a religião, a moral.

Ciclicamente a ameaça de uma guerra nuclear e endemias e pandemias insuflam tamanho estresse que coloca o mundo todo de joelhos.

O século XXI começa com as gigantescas segregações da pandemia covid 19 e apontam para um século higienista como o tônus da vida social.

A história da gripe no universo colonial tem já 500 anos. Quando os colonizadores expandiram sua presença em regiões que desconheciam os vírus típicos eurocêntricos, dizimaram milhões de vidas cujo organismo desconhecia esse malefício. Os sobreviventes foram recebendo as diversas cepas virais e sofrendo adaptações pelo sistema imunológico.

A segregação nunca foi considerada, pois as cepas virais não param de aparecer nas sociedades colonizadas. No entanto, dessa vez o medo foi liberado com generosidade.

Uma antiga fábula conta que um viajante encontrou em sua jornada a peste que ia para uma determinada cidade. Ele então pergunta o que ela ia fazer lá e a resposta foi: vou eliminar mil vidas. Tempos depois eles se encontram novamente e ele questiona a peste: você disse que ia eliminar mil vidas, mas matou dez mil. E a peste responde: seriam mil vidas, mas o medo matou o restante.

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O medo derrama cortisol suficiente no organismo para destruir o estado alcalino em que o sistema imune funciona. A acidificação do organismo é ambiente ideal para a proliferação de doenças. No caso da cepa do covid 19 não é possível calcular quantas vidas foram perdidas com as contínuas notícias da morbidade do vírus.

Com o medo de morrer, muitos morreram por ele. Os sistemas de proteção deixaram de funcionar e permitiram que a invasão patológica cumprisse seu protocolo de controle e destruição.

A questão aqui é entender as razões da divulgação cotidiana das mortes, com covas coletivas e caixões transladados por caminhões que os meios de comunicação não se fartavam de mostrar e todo instante.

A história do medo no século XX mais uma vez pode ser resumida. As duas guerras mundiais, a guerra fria, os terroristas, a queda das torres gêmeas, cada um desses eventos mantinham o mundo sob tensão e medo. No entanto, as guerras industriais terminaram o seu ciclo, a guerra fria e a ameaça nuclear foram desmobilizadas, os terroristas se tornaram figuras míticas pouco confiáveis pelos sistemas de divulgação do medo. Uma epidemia global com sua carga de letalidade encontrou o momento ideal para existir.

Se lembrarmos que a cepa viral de 2010 chamada de H1N1 matou uma quantidade impressionante de pessoas no mundo todo e os veículos de comunicação silenciaram sobre esse terror global. Mas em 2019 a situação foi bem diferente.

Situações de medo global colocam nos eixos as sociedades administradas e contribuem para normalizar as patologias diversas que são necessárias à manutenção heteronômica da vida social.

Individualmente, o medo constrange, adoece, diminui, encolhe, ao mesmo tempo que solicita a fé, a medicina, a vacina, a autoridade, o salvador. E o medo psíquico que pode ser resumido no medo da perda e o medo da falta.

A vida autônoma é inimiga da obediência e precisa ser ciclicamente destruída no coração dos homens.

Erradicar o medo é uma forma substantiva de vida autônoma. Com a diminuição do medo os sistemas intuitivos voltam a funcionar, assim como os instrumentos que o corpo já possui para curar a si mesmo, como a homeostase e a autopoiese. Nosso organismo possui tudo que precisa para manter uma vida boa e saudável, desde que seu principal inimigo seja anulado e o medo é esse inimigo, pois o medo é uma característica individual. A vida coletiva dos animais não precisa do medo, pois sistemas instintivos e intuitivos cumprem sua função conservadora de bem estar.

E viver com medo é uma vida miserável. Mas viver sem medo é viver em plenitude, integrado a tudo que vive, sob a proteção coletiva de tudo que nos cerca e sob a proteção de uma egrégora espiritual que acolhe os seres num biótopo de energias virtuosas. A generosidade da vida no biótopo é suficiente para gestar uma vida inteira de alegria e felicidade.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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