Redação Pragmatismo
Povos indígenas 27/Jan/2022 às 19:29 COMENTÁRIOS
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Josefa Vilhalva fez sua passagem enquanto aguardava Justiça pelo seu filho Nísio

Publicado em 27 Jan, 2022 às 19h29

Guardiã cultural e espiritual de seu povo, Josefa deixou muitos ensinamentos, mas também a herança de sua dolorosa espera. Essa é uma daquelas histórias onde a ordem natural da vida é tristemente invertida. Assassinato de Nísio ganhou dimensão internacional, porém a Justiça nunca chegou

Josefa Vilhalva passagem enquanto aguardava Justiça filho Nísio
Nhandecy Josefa Vilhalva

CIMI

Para uma mãe a porta de casa sempre estará aberta esperando o retorno de um filho. Foi assim para a anciã Nhandecy Josefa Vilhalva, de 84 anos. Para ela, a espera pela chegada de seu filho Nísio Gomes durou mais de uma década. Josefa esperou dia após dia, ano após ano, o fundamental porém pesado retorno de Nísio. Esperou até mesmo adiando, a cada novo nascente e a cada novo poente, o derradeiro momento de sua despedida desta Terra. Mas para Josefa a morte chegou, Nísio não.

Josefa, que partiu no dia 16 de janeiro, deixou preciosos ensinamentos. Educou e aconselhou gerações como guardiã cultural e espiritual de seu povo. Mulher, Guerreira e Rezadora, foi sempre grande referência nos diversos encontros espirituais que seu território ancestral – Tekoha Guayviry – acolheu. Tesouro vivo da comunidade, foi em vida o elo de um passado de liberdade que para os Guarani e Kaiowá um dia será novamente o presente. É relembrada e celebrada por seu neto Genito Gomes como aquela que “sempre olhava com firmeza para o horizonte do território, na esperança de ver sua terra demarcada para que que seus parentes pudessem ter um futuro”.

Em sua partida, para além dos muitos ensinamentos, Josefa também deixou de herança para a comunidade a sua dolorosa espera. Sem a avó, filhos, netos, parentes e amigos de Nísio seguem aguardando o retorno do cacique a seu tekoha Guayviry. Somente assim poderão tirar da garganta um longo e já quase eterno grito que continua clamando por justiça e pela demarcação de seu território tradicional – luta que tinha Nísio como líder e, agora, o tem como símbolo.

Essa é uma daquelas histórias onde a ordem natural da vida – na qual os filhos enterram os pais – é tristemente invertida. Mas se tratando da corajosa e inacreditável saga de resistência Guarani e Kaiowá contra o agro-estado do Mato Grosso do Sul, a história ganha contornos ainda mais dramáticos e mais sombrios.

Josefa carregava consigo algo semelhante à dor das Mães de Maio, que vivem a fustigante dúvida do paradeiro e destinos de seus filhos desaparecidos. Mas, diferente delas, Josefa esperava apenas pelos ossos do seu. Sim, pelos ossos.

Isso porque em 2011 o cacique Nísio foi covardemente assassinado. Em frente à sua família, ele tombou, alvejado por disparos efetuados em ação orquestrada, encomendada e levada a cabo por fazendeiros, sindicalistas rurais, jagunços da Gaspem, vereadores, prefeitos, entre outras figuras públicas e notórias que seguem aparelhando o Estado, tornando-o um aparato paramilitar para manter os permanentes esbulhos territoriais e seus mais espúrios interesses privados.

Cruelmente, o corpo de Nísio foi levado. Arrancado da frente de um de seus filhos – uma criança na época – desapareceu no horizonte e foi sumindo junto aos barulhos da comitiva odiosa dos seus algozes e assassinos.

O caso repercutiu, ganhou dimensão internacional, a mídia nacional repercutiu o assassinato à época, mas até hoje o que sentem os Guarani e Kaiowa é que, assim como os restos de Nísio, a Justiça também nunca chegou. Mesmo com tantas provas, com réus confessos, com assassinos identificados, a justiça nunca chegou. Onze anos já se passaram desde o início do processo que indicia uma verdadeira milícia rural, a qual segue em liberdade. Onze anos sem justiça para Guayviry e sem os ossos de Nísio para Josefa.

Josefa – num desejo que era e continua sendo compartilhado por toda a comunidade – exigia os ossos do cacique para poder lhe conceder o que toda mãe deseja conceder a um filho que parte. Um enterro decente, o fechamento de um ciclo, a possibilidade de garantir o rito e respeitar aquilo que é sagrado para seu povo. Poder tirar a dor da garganta e do coração, deitar seu cacique em seu território para que enfim Nísio possa descansar.

Aos europarlamentares que estiveram em seu território no ano de 2016 – por ocasião de uma diligência para acompanhamento e verificação de dezenas de outros casos de torturas, assassinatos e violações tão absurdos quanto este – Josefa disse: “Eu estou aqui, estou velha, muito cansada, meu tempo sobre esta terra está acabando, eu preciso morrer, mas eu não quero morrer sem receber o retorno dos ossos de meu filho. Eu não sei onde ele estão. Eu vou esperar todos os dias, pedindo para a morte não me levar porque eu quero enterrá-lo nesta terra que ele amava, quero dar este enterro digno a meu filho. É a única coisa que eu quero, depois posso morrer”.

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Nós do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Mato Grosso do Sul, através deste testemunho sobre a vida de Josefa e em especial sobre sua amargurante espera, solidarizamo-nos com todo o povo de Guayviry e com todos os Guarani e Kaiowá. Sabemos que partiu alguém cuja importância era imensurável para este povo. Reforçamos que estaremos juntos redobrando nossos esforços para que o processo seja retomado, para que os assassinos sejam presos e para que seja finalmente alcançada a Justiça para Nisio. Só assim a espera de Josefa e de toda esta comunidade terá valido a pena.

Confira, abaixo, a fala de Josefa sobre o modo de ser das mulheres Guarani e Kaiowá, no documentário Kuña Reko – mulheres Kaiowá e Guarani:

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