Redação Pragmatismo
Justiça 30/Jun/2021 às 23:31 COMENTÁRIOS
Justiça

O caso Lázaro: esquecer para repetir

Publicado em 30 Jun, 2021 às 23h31
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(Imagem: reprodução)

Guilherme Bertassoni da Silva*

Homicida, assaltante, perigoso, doente mental. Já havia sido preso antes, fugiu. Cometeu novos crimes. Cercado por dezenas (centenas?) de policiais, ele oferecia um risco muito baixo: um cerco poderia ser mais efetivo, a paciência seria uma virtude mais técnica daqueles que perseguiam. Uma prisão poderia trazer revelações sobre suas atividades, sobre crimes ainda não descobertos, quiçá.

Mas o corpo estava tombado, sem resistência, sem vida, sem explicações a dar. Crivado de projéteis de armas curtas e longas; pistolas, submetralhadoras, fuzis. Seu corpo lançado à traseira de um veículo, transportado mais tarde como um animal abatido para o necrotério para as burocracias finais. Não era mais uma pessoa, era um troféu.

Estamos no dia 1º de maio de 1962. A polícia militar do Estado da Guanabara acaba de abater com 13 tiros José Rosa de Miranda, 28 anos, de alcunha “Mineirinho”. O Serviço de Diligências Especiais da Secretaria de Segurança Pública está em festa. A caçada acabou. O caso estampou as capas dos jornais pelo país afora, com muito sensacionalismo, fotos do cadáver, comemorações incontidas das autoridades que se responsabilizam pelo feito – Carlos Lacerda, governador da Guanabara, teria chefiado pessoalmente algumas atividades.

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Jornal Última Hora, 1º de maio de 1962 (Imagem: Biblioteca Nacional)

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer” – escreveria Clarice Lispector sobre o incidente.

Voltemos a 2021. Lázaro.

A morte do Lázaro, homicida e praticante de diversos outros crimes deveria ser execrada, entendida como falha da segurança pública. A instituição policial deveria ser capaz de cercar, limitar recursos e então capturar um homem sozinho, por mais que ele estivesse armado. Ele tinha limites de conseguir água, comida, munição. A tática era óbvia: cerco e espera.

Defender a “lei” consiste em defender ela toda. E a pior punição prevista, para o pior tipo dos crimes, é a privação da liberdade. O sujeito que mata outro tem que ser preso. Isolado, destituído de seu bem mais precioso, o direito de ir e vir. Nossa política criminal deveria se basear nisso.

Vale lembrar o texto da Constituição Federal. Vale lembrar o que é um procedimento policial correto e adequado, sem sensacionalismo inútil e promoção política.

Art. 5°
XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

Mas a escolha metodológica sempre parece ser a antítese constitucional: matar para não fazer perguntas. O que esse sujeito tinha a dizer? Quais suas motivações? Quem auxiliou?

A necessidade de investimento em inteligência policial é cada vez maior. É isso que torna a polícia efetiva, resolutiva.

270 policiais, centenas de agentes de mídia sensacionalista, deputados escrotos, malucos, pastores. A caça transmitida ao vivo. Isso é selvageria, sevícia.

No início destas linhas, o leitor teve certeza de que se tratava de mais um texto sobre Lázaro. E a impressão estava correta. Mineirinho e Lázaro são a mesma pessoa aos olhos de um sistema que comemora mortes. Lacerda é Witzel: “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”. A cadela do fascismo está sempre no cio.

Os movimentos que levaram à eleição do atual genocida que ocupa (mas não exerce) a presidência são os mesmos que levaram à assunção da última (?) ditadura no Brasil: de caráter fantasioso, combatendo moinhos de vento e com o lema maquiavélico “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”. O estado de violência, de afastamento de direitos humanos, de governantes que se afastam da humanidade se repete.

Leia também: Lázaro teria sido contratado por fazendeiros para aterrorizar região

Lázaro é Mineirinho. Mas Bolsonaro e sua praga são piores que o lacerdismo. No dia 18 de junho de 2021, no decorrer da caça à Lázaro, um rapaz maranhense postava uma mensagem de apoio ao assassino em uma rede social. Hamilton teve sua casa invadida por três agentes e foi baleado, em frente ao avô de 99 anos, para perder sua vida no caminho do hospital. A família veio a público explicar que a postagem era fruto de transtornos mentais, algo que o jovem sofria desde a infância.

Hamilton é Lázaro?

Isso é o bolsonarismo. Comemorar qualquer uma dessas mortes é comemorar a falha do sistema, a falha da polícia, o descarte da justiça. Não houve justiça, houve assassinato institucional, como tantos outros.

Retomemos Clarice, para finalizar, com a poética que traduz mais que este autor é capaz.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento”.

*Guilherme Bertassoni da Silva é Perito Criminal, Psicólogo (CRP 08/10536), Especialista em Saúde Mental, Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica.

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