Eduardo Bonzatto
Colunista
Política 28/Abr/2021 às 16:20 COMENTÁRIOS
Política

Um fuhrer negro para o Brasil

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 28 Abr, 2021 às 16h20
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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Quando os julgamentos de Nuremberg puseram fim com as cordas enlaçando o pescoço de uns tantos líderes nazistas pode ter parecido que o tempo cumpria uma de suas funções mais enganosas: apagar a história. Mas a memória é uma sala de edição, como já dizia Wally Salomão.
O modo como lidamos com a tecnologia, as formas mais sofisticadas de administração atuais que considera a missão da empresa e o papel do colaborador, o empoderamento de grupos fracos em suas ocupações na Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, França (nesse sentido, foram os primeiros a perceber que se o poder fosse dado a um fraco social ele se tornaria de bom grado um tirano), a educação disciplinar que incluiu a educação física, as finanças pautadas na produção de medicamentos e armamentos, os experimentos na engenharia genética, os negócios como expansões globais, a propaganda, os valores, cada um dos elementos imaginado pelos ideólogos da sociedade alemã nos anos finais da República de Weimar (1919-1933) até que Hitler se matou num bunker intacto enraizaram de tal sorte nas sociedades globais que podemos afirmar que foram na verdade eles quem venceram a guerra.
Se a meteórica ascensão do nazismo encantou o mundo todo no modo como Hitler e seus gestores tiraram a Alemanha da maior crise econômica da história moderna, fruto em grande parte dos acordos desumanos do tratado de Versalhes que imputava uma pesada conta de guerra a um povo orgulhoso que não fora derrotado na batalha, mas no tapete dos tribunais inventados, a admiração cresceu ainda mais quando essa nação se tornou num curtíssimo tempo a maior potencia bélica da terra. De Churchill a Roosevelt, de Vargas a Stalin, de Lebrun a Franco, cada político não poupava elogios àquele que representava o ápice da genialidade alemã em meio ao caos do entre guerras.
Mas Hitler não fez isso sozinho. Tinha em torno de si as mentes mais ousadas da Alemanha. Dentre seus parceiros, uma delas iria sobreviver a esse tempo com uma sobrevida pautada em uma forma de perceber o mundo que contagiava.
Leni Riefenstahl viveu muito, morreu em 2003 com 101 anos de idade. Mulher talentosa, quando ouviu Hitler discursar ainda em 32 ofereceu a ele seus préstimos de cineasta e construiu a forma com que a beleza seria idealizada pelos séculos afora. E essa forma de beleza é eugenista ainda hoje.
Filmes como Olympia e O triunfo da vontade são mais que filmes, são mecanismos de adoração e devoção a uma forma purificada de observação mecânica, como se o que vemos comunicasse ao sangue o aço de sua beleza.
Não se pode negar que sua mensagem ofereceu uma unidade à ideologia nazista que vai muito além da mera contemplação passiva. Há chamas que queimam, fornalhas que forjam, vontades que triunfam.
Por seu poder de agregação, Leni passaria 4 anos num campo de concentração francês depois da guerra e durante toda a sua vida encontraria dificuldades de financiar outros filmes, mas nunca lhe imputaram alguma culpa em relação à sua exaltação dos valores nazistas, que depois do fim da guerra, como é de praxe aos derrotados, foram demonizados. Mas sua verdade ia muito além dos tribunais da guerra ou das bandeiras hipócritas dos vencedores. Os mesmos tribunais que ignoraram os comprometimentos de cientistas, economistas, industriais, inventores, militares, engenheiros, intelectuais, professores, ideólogos, cooptados todos ou quase todos pelos países supostamente vencedores e que levariam os valores nazistas para a posteridade.
A obra que havia inspirado essa gente toda não era, como se pode imaginar, o Mein Kampf de Hitler, mas A decadência do ocidente, de Oswald Spengler. E será justamente na segunda parte da obra de Spengler, “perspectivas da história universal”, que estuda inicialmente os fatos da vida real e, pela análise da prática histórica da humanidade superior, que os ideólogos do nazismo procuraram extrair a quintessência da experiência histórica, à base da qual puderam empreender o trabalho de plasmar as formas do nosso futuro.
Spengler é o criador de uma ideia orgânica e nacionalista de socialismo autoritário não marxista. Em 1920, escreveu Prussianismo e Socialismo que resultaria numa assimilação confusa até os dias de hoje pelos nazistas que nomearam seu partido de nacional-socialista dos trabalhadores alemães.
Já em seu mais importante trabalho, ele prevê a desintegração da civilização europeia e norte americana depois de uma “idade de cesarismo” violento, tão peculiar aos estados totalitários que estavam se cristalizando tanto na Europa quanto nos Estados Unidos no entre guerras.
Mas se essa previsão imaginava uma centralização do poder nas mãos heroicas de um líder carismático, o fim da segunda guerra fez prevalecer a forma da democracia liberal cuja resultante caminhou célere para o mundo neoliberal, em que os valores da civilização de um passado recente são motivo de escárnio e pilhéria.
Northrop Frye, um dos mais célebres críticos literários da segunda metade do século passado, argumenta que, embora todos os elementos da tese de Spengler tenham sido refutados uma dúzia de vezes, é “um dos grandes poemas românticos do mundo” e que suas ideias principais são “tão parte de nossa perspectiva mental hoje como o elétron ou o dinossauro, e nesse sentido somos todos Spenglerianos”.
O exemplo de Von Braun, inventor do míssil Vergeltungswaffe, arma de vingança, que devastou Londres, é apenas um detalhe na miríade de mentes recrutadas às pressas depois da guerra que definiriam esse mundo atual.
Mas se essa gente toda pavimentou as estradas do futuro que chegam a nós no mundo globalizado do neoliberalismo, com seus valores de elites conservadoras e orgulhosas de sua invisibilidade, Leni queria enviar um símbolo também dos valores tão caros que ainda sustém o território das intervenções plásticas, da busca pela beleza imperecível que cada um dos habitantes da classe média da terra deseja com seus adereços coloridos, suas vestimentas tecnológicas, suas exposições midiáticas do interior do quarto de dormir.
Em 1973 ela foi até o Sudão atrás da permanência desses valores. E encontrou a tribo Nuba, cuja beleza parecia evocar exatamente o que ela acreditava como eternidade. O último dos nubas e o povo de Kau foram os filmes que fez nesse mesmo ano e que daria elementos para dois livros de fotografias.
O seu sonho africano em nada se diferenciava de seu sonho nazista quanto aos valores éticos e estéticos anteriores ao resultado enganoso do fim da guerra.
Para entendermos melhor tais valores precisamos realizar uma engenharia social cujo resgate pode confundir ainda mais do que esclarecer. Mas é importante para resgatar o clima de outro ângulo e de outro ponto de vista, pois as permanências, muitas vezes, se ocultam profundamente nas mudanças ou, “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. O título “Il Gattopardo”, em português quer dizer “O Leopardo”, mas a palavra italiana “gattopardo” refere-se tanto ao felino da América quanto ao africano que fora quase extinto no século XIX. Obra de Giuseppe Tomasi di Lampedusa que trata da decadência de uma aristocracia italiana cujos valores precisavam a qualquer custo ser preservados.

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Quando por aqui a escravidão ainda era uma memória fresca na mente do cidadão, a república, como no caso do romance italiano de Lampedusa, era uma ameaça para muitos grupos que haviam sido alijados historicamente dos arranjos políticos sempre efetuados na surdina do poder.
Os recém-libertos estavam atentos ao mundo e sua leitura pode ser resgatada nos muitos jornais que criaram para que suas vozes pudessem ser ouvidas.
E sua atenção estava, como todos na nascente república, nos modos europeus tanto de cultura quanto de governabilidade, mas principalmente na civilização.
Jornais como A voz da raça, A pátria (1889), O alfinete (1918), O clarim da alvorada (1924), O exemplo (1892), A cruzada (1905), O progresso (1899), são alguns que circulavam sem restrições divulgando os valores que os diversos grupos almejavam no novo século de possíveis liberdades.
E nesses jornais a imagem que projetavam para si nesse novo século era aquela que a Europa ditava.
Claro que o que esperavam do mundo livre que encontraram não era o que tinham nem de longe imaginado. No jornal paulista O progresso, o editorial estampa esse desagravo:
“Esperávamos nós, os negros, que, finalmente, ia desaparecer para sempre de nossa pátria o estúpido preconceito e que os brancos, empunhando a bandeira da igualdade e fraternidade, entrassem em franco convívio com os pretos. Qual não foi, porém, a nossa decepção ao vermos que o idiota do preconceito em vez de diminuir cresce, que os filhos dos pretos, que antigamente eram recebidos nas escolas públicas, são hoje recusados nos grupos escolares, que para reuniões de certa importância, muito de propósito não é convidado um só negro, por maiores que sejam seus merecimentos” (Magalhães Pinto, Ana Flávia. A imprensa negra no Brasil – momentos iniciais).
Certamente a piora na percepção do preconceito devia-se aos valores eugenistas e da política do branqueamento eurocêntrico que já há alguns anos vinha sendo divulgado nos mais variados meios.
Daí que o estímulo que os jornais editados pelos mais diversos grupos negros estava voltado para um lugar social que era emulado dos padrões brancos da classe média.
E esses valores condenavam a vida nos botequins, as manifestações culturais como os cultos religiosos de origem africana, a capoeira, a música e tudo que pudesse evocar a África e seu “primitivismo”.
Nada da África selvagem dos sacrifícios, dos grandes feiticeiros negros ostentando as chamas do tempo, nada de poligamia, nada de poliandria, nada das danças em êxtase e nada das complexas religiosidades que hoje fazem o gosto de outra África, também muito diversa dessa que ainda não pode aparecer. Pois também hoje é a uma civilização nilótica que aspiram os movimentos negros. A Frente Negra Brasileira, a primeira organização negra do país, promovia cursos de catecismo e ignorava o candomblé.
Mas também a ocupação dos espaços de trabalho pelos imigrantes era uma constante fonte de contrariedade e sentimento de usurpação que o modelo republicano parecia ser responsável.
Daí que não devemos nos espantar quando os valores antirrepublicanos e de raça pura vindos da Alemanha daquele tempo que prometia um futuro radioso antes da guerra tivesse seduzido integrantes e ativistas frentenegrinos:
“Criam uma milícia negra, para policiar os meeting raciais e agredir pretos dissidentes e a Voz da Raça escreve: ‘Hitler, na Alemanha, anda fazendo uma porção de coisas profundas. Entre elas a defesa da raça alemã. O Brasil deve seguir o exemplo, mas defender a raça brasileira não é defender a arianização do Brasil; é, ao contrário, defender a raça tal qual ela se formou pela mistura dos três sangues. O que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra unicamente que a Alemanha Nova se orgulha da sua raça. Nós também, brasileiros, temos raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e mestiço que nunca traiu nem trairá a Nação. Mas esta defesa não pode fazer-se no quadro da democracia liberal, que levanta os indivíduos uns contra os outros, mas, ao contrário, pela submissão de todos a um Fuhrer, a um super-homem, a um Moisés de ébano’” (Risério, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo, 2007, p.365).
Se as lições aprendidas nas décadas seguintes, com a ação de Abdias Nascimento ou de Milton Santos, ou do comprometimento de Moacir Santos em sua jornada contra o preconceito e o racismo, ou da extraordinária Lélia Gonzales, dentre tantos outros, os valores do frentenegrismo foram resgatados nesse tempo de empoderamento e a raça continua sendo um elemento de distinção para os grupos negros atuais que soterrou o humano.
O ideal racista agora encontrou em patrulheiros dos movimentos negros seus principais entusiastas, algo que nem mesmo os eugenistas imaginavam…
Os ideais que venceram a guerra de Leni:

Essas duas são imagens do filme Olympia que exaltava a pureza da raça ariana.

As seguintes são de sua estada no Sudão

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor

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