Redação Pragmatismo
Economia 21/Abr/2021 às 15:37 COMENTÁRIOS
Economia

Reforma administrativa: mitos, problemas e sugestões

Publicado em 21 Abr, 2021 às 15h37

A proposta não resolve a grande maioria das distorções que se dispõe a eliminar. Ao contrário, a reforma apresentada poderá acentuar os problemas do setor público, até os já superados

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(Imagem: Marcello Casal Jr. | ABr)

Jefferson S. Fraga, Helder Lara Ferreira Filho e José Luis Oreiro, Brasil Debate

Diversos agentes econômicos e parte da grande mídia afirmam que o suposto tamanho e ineficiência do Estado brasileiro é causa da crise e da estagnação econômica vivenciada pelo país nos anos recentes.

Como resultado, para combater as supostas despesas elevadas com funcionalismo e aumentar a eficiência da administração pública, segue a discussão da Reforma Administrativa (sob a Proposta de Emenda Constitucional 32/2020 – PEC 32/2020).

Em linhas gerais, a proposta, segundo o governo, visa a modernizar o setor público, conferindo-lhe maior dinamismo, racionalidade e eficiência, assegurando viabilidade orçamentária e financeira para prestação de serviços de melhor qualidade.

Em resumo, o pressuposto é que haveria desperdícios de recursos públicos e a urgência de ajustes. Como veremos, uma análise mais aprofundada permite relativizar a validade dos argumentos que sustentam a PEC enviada pelo governo, além disso, a proposta não resolve a grande maioria das distorções que se dispõe a eliminar. Pelo contrário, a reforma tal como foi proposta poderá ser grande acentuadora de problemas no setor público, alguns que já tinham sido inclusive superados.

De forma isolada, a proporção dos gastos com funcionalismo em relação ao PIB é a medida tomada como comparação internacional. Isso coloca o Brasil (13,4% do PIB) acima de país de renda média, como México (8%) e Colômbia (7%), e também dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (10%), de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Segundo esse argumento, o serviço público se apoderaria, de forma desproporcional, do orçamento público no Brasil. No entanto, a análise dos dados não pode ser tratada de forma pouco criteriosa. De fato, outras métricas devem ser consideradas.

Esses dados, entretanto, desconsideram que o Brasil possui três níveis federativos, com União, estados e municípios, ao contrário da grande maioria dos países selecionados para essa comparação – dadas suas dimensões continentais. Assim, desagregando essa relação por nível federativo, verifica-se que o Brasil não está entre os que mais gastam com remuneração de servidores em nenhum dos níveis, como se pode verificar na Figura 1 para o governo central, por exemplo (a linha amarela é o Brasil no conjunto dos outros países).

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Além disso, esse argumento desconsidera as escolhas da sociedade da construção de uma oferta maior de serviços públicos, algo ausente em diversos países. É o caso da saúde e da educação públicas universais, além do ensino superior público. Por fim, desconsidera-se que esse indicador tem crescido nos últimos 10 anos apenas em nível municipal e estadual, o que indica a preferência pela sociedade por mais gastos em segurança, saúde e educação.

Outra comparação pode ser realizada em relação ao tamanho da força de trabalho do funcionalismo público. Dados do Banco Mundial apontam uma relação do emprego público no total de emprego ao redor de 12% para o Brasil, número um pouco acima do Chile, e bem atrás da Argentina, Uruguai e entre as últimas colocações em um ranking compostos por mais de 39 economias (Cardomingo et al., 2020).

Outro ponto geralmente levantado, sem o cuidado que a heterogeneidade do funcionalismo público brasileiro necessita, são os salários dos servidores, apontados de forma depreciativa como exageradamente elevados pela mídia, o que também está implícito na PEC 32. A primeira observação é que entre os poderes há uma enorme variação salarial. Os funcionários do Executivo (3,9 mil), em média, ganham menos do que os do Legislativo (6 mil) e os do Judiciário (12 mil).

A partir de dados do Ipea, verifica-se essa enorme distorção em que metade dos funcionários públicos ganhava em 2018 até 3 salários mínimos, R$2,9 mil, enquanto apenas 3% ganhavam acima de 20 salários mínimos, R$19,1 mil.

No entanto, não significa que não exista nenhuma distorção, sendo que há uma parcela de servidores públicos que recebe salários acima do teto constitucional, tais como, procuradores, desembargadores, juízes, deputados, senadores, consultores legislativos, militares, todos, surpreendentemente, fora da proposta de reforma administrativa. Como já apontado por Oreiro e Ferreira Filho (2021) e Cardomingo et al. (2020), qualquer reforma que não leve em consideração essas diferenças será incapaz de corrigir ineficiências.

Avaliando outros aspectos na questão salarial, Costa et al. (2020) consideram que há maior estabilidade ao servidor público durante a recessão, no entanto, durante o boom, os trabalhadores públicos apresentam menos ganhos salariais daqueles verificados no setor privado. Ainda, Cardomingo et al. (2020) apontam que o número de servidores públicos é também uma medida de bens públicos ofertados à população.

Assim, os autores compararam os gastos com funcionalismo per capita medido em PPP, que iguala o poder de compra das diferentes moedas, para um conjunto de países considerado o tamanho da população assistida. Os dados apontaram que o Brasil está dentre os países que menos gastam com funcionalismo para cada habitante.

A análise por serviços específicos mantém o baixo gasto por habitante (ver Cardomingo et al., 2020). Portanto, o argumento de que seria possível cortar gastos porque existe espaço para ganhos de eficiência, propiciando serviços públicos com padrão similar à de países desenvolvidos, não se sustenta.

Os gastos atuais por habitante não passam de 45% da média de gastos dos países da OCDE. De fato, a menor qualidade do serviço público brasileiro está associada ao menor gasto por habitante, quando comparado com economias desenvolvidas, justificado pelo fato de que o país se figura como um país de renda média baixa (Banco Mundial, 2019).

Vale dizer, algumas estatísticas acerca da qualidade dos servidores públicos também não sustentam essa narrativa de ineficiência apresentada pelo governo e pela mídia.

Com base num índice relativo ao grau de profissionalismo – e não politização – do serviço público, o Brasil se encontra no grupo dos países com administração pública mais profissional, à frente de países como Itália, Grécia, China, Chile, Turquia, África do Sul Croácia, Uruguai, dentre outros (The Quality of Government Institute, 2020). Inclusive, cerca de 7% dos servidores brasileiros têm mestrado e quase 10% têm doutorado, em contraste com a população em geral, com 0,8% e 0,2%, respectivamente (Oreiroe Ferreira Filho, 2021).

Portanto, fica evidente que a PEC 32 tem premissas simplistas sob o aspecto fiscal, no entanto, há outros problemas na proposta que podem afetar negativamente a oferta de qualidade de serviços públicos. Vale ressaltar a alteração no acesso ao cargo público, com um período de experiência como parte do processo seletivo, além da diferenciação entre cargos típicos de Estado e cargos com vínculo com prazo indeterminado, que seria regulamentada posteriormente.

Essas medidas tendem a criar dois níveis de funcionalismo, prejudicando as categorias menos relevantes. Ainda, esse processo de experiência pode aprofundar a pressão política e de interesses não republicanos na elaboração de notas técnicas, pareceres e afins, dado que os empregados ainda não são servidores.

Isso para não citar a provável diminuição da atratividade dos concursos públicos, uma vez que a pessoa pode ser dispensada após esse período de experiência (após anos de estudo para ser aprovado num concurso), reduzindo a qualidade dos certames e dos futuros servidores.

Outro ponto a se destacar é a criação de “Cargos de Liderança e Assessoramento”, em detrimento dos cargos existentes no âmbito do setor público atualmente. Isso vai de encontro ao que estava sendo tentado anteriormente, ou seja, profissionalizar o serviço público, retirar o componente político de indicação ou de processos seletivos enviesados, e criar incentivos para que os próprios servidores se qualificassem e se engajassem para assumir cargos de gestão estratégicos de forma isenta.

Também se propõe o fim da estabilidade para a grande maioria de carreiras – excetuando-se carreiras típicas que seriam definidas a posteriori. Para que a lei seja aplicada a todos e para que os servidores possam exercer suas funções com independência, a estabilidade é necessária – também para permitir denúncias de que algo esteja sendo feito fora da legalidade. Esses pontos são essenciais para que o servidor seja de Estado, e não de eventual governo, se tornando um servidor público, e não um servidor político.

A possibilidade de benefícios da experiência e das inovações de pessoas indicadas do setor privado já existe e são aquelas denominadas cargos de confiança – feitos por indicação –, além da possibilidade da contratação de consultorias privadas. Com essa pluralidade, há um sistema que se balanceia entre o servidor público especializado, técnico e mais restrito, e aquele funcionário que propõe mudanças e inovações incrementais para que não haja descontinuidades e grandes modificações de governo a governo, o que se traduz em serviços públicos estáveis.

Finalmente, cabe ressaltar a tentativa de limitar a atuação do governo federal com a delimitação de um número máximo de Ministérios, de órgãos diretamente subordinados ao Presidente da República, de entidades da administração pública federal. Ainda, a vedação para que o Estado institua medidas que gerem reservas de mercado, inviabilizando grande parte de políticas industriais.

Como é feita a arrecadação e como são gastos esses recursos são aspectos mais importantes do que o tamanho do Estado. Isso não significa que não há reformas que devem ser implementadas, inclusive alguma reforma administrativa que aponte para melhores serviços públicos, redução de desigualdade e não se traduza em perseguição de servidores públicos. Nesse contexto, vale destacar que o ideário do Estado do Bem-Estar Social está em grande medida assentado nos princípios do liberalismo (principalmente do chamado liberalismo social).

De fato, o Estado deveria atuar para assegurar a maior equidade horizontal possível em termos do fornecimento de saúde, educação e segurança, tal como proteger os mais vulneráveis em circunstâncias mais desfavoráveis, além de praticar uma política macroeconômica anticíclica, particularmente em momentos de grandes hiatos negativos do produto. Ganhos de produtividade não são contrastantes com a presença, e mesmo com a ampliação, do Estado do Bem-Estar Social (Borges, 2018).

Nesse contexto, a PEC 32 acaba por deixar em segundo plano outras reformas mais relevantes, ainda mais para o atual momento, como a necessária reforma fiscal do país para que sejam restaurados o crescimento e a sustentabilidade da dívida pública (Ferreira Filho e Oreiro, 2020), e da reforma tributária que podem auxiliar na retomada do crescimento. Como apontado por Kupfer (2021), o país tem 14 regras de gasto público redundantes, e mesmo assim o orçamento se mostra inviável.

Enfim, a PEC 32 deveria ser uma reforma administrativa que alcançasse a gestão de pessoas (para incrementar a produtividade e promover a meritocracia); a estrutura organizacional; a transparência e controle (inclusive na relação entre setor público e organizações não estatais) e a redução custo administrativo. Ao contrário, parece focar na questão puramente fiscal. De todo modo, a proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público, quais sejam, militares, juízes e membros do Ministério Público e parlamentares[1].

Por fim, vale salientar algumas propostas para uma reforma administrativa mais coerente. Esta deveria trazer a regulamentação do teto remuneratório para todos os poderes, e para civis e militares; a redução dos limites de despesas com pessoal para estados e municípios ou mesmo aplicação de um teto para o aumento com gastos com pessoal em termos reais, para todos os poderes, e de maneira transparente; a redução de distorções com benefícios exagerados para todos os poderes e entes subnacionais, algo que o Executivo Federal já tem feito há mais tempo; incluir a gestão de processos mais digitalizada nos tópicos da reforma administrativa, dando mais eficiência e diminuindo custos; ainda, algo fora do escopo da reforma administrativa, realizar uma reforma no Poder Judiciário para reduzir a judicialização nas disputas entre os diversos agentes; feito isso, será possível reduzir a estrutura do Judiciário de despesas com pessoal para níveis mais próximos de experiências internacionais.

Sob o aspecto da gestão de pessoal: a criação de mais cargos de liderança direcionados aos servidores, em detrimento daqueles ao pessoal externo, os quais podem servir para premiar os servidores mais eficientes e proativos, funcionando como mecanismo de gestão e de motivação; a regulamentação da avaliação de pessoal, a qual já existe em diversas carreiras, mas que não é algo homogêneo no setor público, entre os poderes, e nem entre os diferentes entes federativos; continuar aprimorando os processos de seleção de cargos de função, balizados por questões técnicas, como capacidade (titulação) e experiência no respectivo assunto; a ampliação no número de anos para o servidor adquirir estabilidade.

Sob o aspecto de transparência e controle: aplicar a transparência na remuneração dos servidores tal como feito no Executivo para todas as carreiras e poderes; harmonizar as regras do que seria considerado despesa com pessoal para serem utilizadas de maneira efetiva e igual por todos os entes da federação, por exemplo, incluindo inativos e terceirizados no limite.

Referências

Borges. B. (2018). Qual deve ser o tamanho do Estado? https://blogdoibre.fgv.br/posts/qual-deve-ser-o-tamanho-do-estado. Acesso em 3 de abril de 2021.

Cardomingo M., Toneto R.; Carvalho L. (2020). De parasitas às palmas na janela: uma análise dos gastos com funcionalismo no Brasil. Nota de Política Econômica nº 004. MADE/USP. https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/de-parasitas-as-palmas-na-janela-uma-analise-do-funcionalismo-publico-brasileiro/.Acesso em 3 de abril de 2021.

Costa, J., Silveira, F., Azevedo, B., Carvalho, S. e Barbosa, A. L. (2020). Heterogeneidades do diferencial salarial público-privado. Mercado de Trabalho: conjuntura e análise 68 – IPEA.

Oreiro J. L. e Ferreira Filho, H. L. (2021). A PEC 32 da Reforma Administrativa: Reformar o Serviço Público para Acabar com o Estado do Bem-Estar Social e Implantar o Estado Neo-Liberal.

Ferreira Filho, H.; L. e Oreiro J.; L. (2020). Entre narrativas e fatos sobre a questão fiscal: por um novo teto de gastos – partes 1 e 2. Brasil Debate. Disponível em: https://brasildebate.com.br/entre-narrativas-e-fatos-sobre-a-questaofiscal-por-um-novo-teto-de-gastos-parte-1. Acesso em 3 de abril de 2021.

Kupfer,J. P. (2021).País tem 14 regras de gasto público redundantes, e Orçamento fica inviável. https://www.bol.uol.com.br/noticias/2021/03/30/pais-tem-14-regras-de-gasto-publico-redundantes-e-orcamento-fica-inviavel.htm. Acesso em 3 de abril de 2021.

Teorell, Jan; Dahlberg, Stefan; Holmberg, Sören; Rothstein, Bo; Pachon, Natalia Alvarado; Axelsson, Sofia. The Quality of Government 62 Standard Dataset, version Jan20. University of Gothenburg: The Quality of Government Institute, http://www.qog.pol.gu.se, 2020.

Citação

[1] Surgiu um argumento de que seria inconstitucional que o Poder Executivo arbitrasse regras para membros de outros Poderes, o que não procede, tendo em vista uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de 2005 em que declarou a inexistência de qualquer “vício formal” na proposta apresentada por outros Poderes que não o Judiciário.

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