Redação Pragmatismo
Racismo não 27/Nov/2020 às 12:39 COMENTÁRIOS
Racismo não

A psicologia do racismo e do antirracismo

Publicado em 27 Nov, 2020 às 12h39

A decisão de acabar com o racismo depende de um posicionamento político

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(Imagem: Jonathan Kirn | Ceert)

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Na gênese de qualquer verdade universal existe sempre um crime e o racismo é inadvertidamente uma dessas verdades. E se a desigualdade não é natural, pela operação da ideologia ela já se naturalizou. O racismo, bem, é um dos elementos atuais mais importantes de desigualdade.

Se aprende a ser racista. Mas não se aprende a não sê-lo. Isso se desaprende, fruto de uma decisão política.
Para isso precisamos compreender a natureza do privilégio. O privilégio se manifesta como uma emoção, um orgulho de se ver num lugar acima dos outros.

Mas o privilégio é sentido primeiro nos outros, naqueles que estão acima de nós. O sentimos com um duplo sentimento de inveja e desprezo. Queremos e não queremos o seu lugar social distinto. Na impossibilidade de ter, odiamos, queremos destruir e essa impotência nos mobiliza. Porque o ódio é uma impotência, é fruto de uma impossibilidade.

Mas então caçamos as oportunidades de também nos sentirmos distintos. E será entre os iguais que o faremos. Seremos implacáveis com os mais fracos que nós.

E quando humilhamos o mais fraco, sentimos aquele olhar familiar dos outros sobre nós, misto de inveja e temor. Ninguém o defende, pois teme que o forte faça o mesmo consigo.

E uma vez no lugar do privilégio, a sensação será tão intensa que queremos isso mais e mais.

É assim que numa sociedade desigual, a desigualdade se torna um valor. Seremos atraídos para situações em que possamos devotar energia ao altar das hierarquias. E assim perdoamos aqueles que são grandiosos, pois entendemos que o sentimento deles é o mesmo que o nosso. São humanos afinal.

As distinções não podem ser infinitas, senão enfrentaríamos uma sociedade opressora sem saída para o vínculo, para a inveja e para a superação. A emulação é uma possibilidade real numa sociedade desse tipo, caso não queiramos que ela desabe.

Então as distinções tem início muito antes de compreendermos a estrutura que a gerou. Adultos, crianças oferecem uma distinção inicial bem fortalecida. O adulto sabe mais que a criança e pode lhe corrigir os erros a tempo.
Também a tempo o menino saberá que é melhor que a menina. Hão de lhe solicitar a masculinidade precoce. Receberá elogios por isso. E símbolos dessa preferência. E entre os meninos irá em busca do lugar do privilégio, da força e da astúcia. Na escola saberá que os valores mudaram. Agora precisa do reconhecimento do professor ou da professora e isso depende de algum esforço que nutra a atenção. Ambicionará a nota e a subserviência. Ali começará a perceber outras distinções. Uma delas a cor da pele determinando o lugar social na geografia da sala de aula. Mesmo sem entender as motivações da exclusão insistente, logo verá aí outro valor da opressão. Por algo inexplicável, vai humilhar o colega baseado na cor da pele e buscará justificar essa nova forma de hierarquia.

Nessa altura ele compreende algumas coisas: que as distinções movimentam inúmeros lugares de poder, a masculinidade, o conhecimento, o preconceito, e tem início nessa fase o julgamento que é o impulsionador do pensamento linear e dicotômico.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Quando entrar no mundo do trabalho essa base será importante tanto para obedecer as desumanas regras sociais quanto para nutrir outras formas de soberba e de privilégios. Terá aprendido a bajular, a puxar o saco do mais forte, que agora é o chefe da seção. Mas também estará aprendendo como fazer isso com os subalternos.

Então vai encontrar o amor. E o amor será parte de uma posse. Ele ou ela é minha, minha mulher, meu marido. Essa situação privatista definirá outro lugar de privilégio. E virão os filhos a reproduzirem a mesma ordem, a mesma hierarquia.

E então vem o poder como uma conquista. Na forma de empoderamento, o poder é uma dádiva do privilégio. Poder oprimir o igual, não tem comparação e poder oprimir legalmente, sem a vergonha da força, oprimir juridicamente. É como se finalmente aquele mundo de inveja tão distante ruísse e agora estamos no lugar social que merecemos.

Se somos negros podemos reparar injustiças históricas fazendo calar aqueles que julgamos opressores da raça; se somos mulheres, finalmente estamos num lugar de superioridade em relação aos infames machistas. Há sempre um lugar acima que cobiçávamos e que agora é nosso.

Então chega o tempo das denuncias. Denunciamos o racismo e divulgamos os eventos de discriminação e preconceito. E cada vez que fazemos a denuncia, fortalecemos nosso lugar de poder. Clamamos pela justiça que embora tardia, não falha e chega para revelar as condições sociais dos negros num país racista.

E aparecem livros que são verdadeiras cartilhas para eliminar o preconceito de raça e são vendidos aos milhões, pois todos querem aprender como deixar de ser racista.

E as denuncias se avolumam e as cartilhas se avolumam e é como se as denuncias revelassem o que estava oculto, daí o aumento de denuncias e de preconceito e discriminação. E todos querem conscientemente deixar de ser racistas, mas o racismo só aumenta.

Há um mecanismo social que explica tal gradiente. Socialmente as mudanças são impossíveis, pois todos temos que mudar juntos. É como se o social fosse o magma onde nos movemos. E o magma deve movimentar a mudança.

Mas o que caracteriza a modernidade é o surgimento do indivíduo, um ser separado do social e que integra o social apenas nas grandiosas nutrições de sua organização. Não está preparado para desorganizar esse social. Por isso a desigualdade não reflui num só grau, embora todos queiram que ela desapareça em sua boa intenção infinita.

Com a avalanche de denuncias de racismos, de discriminação e de preconceito, o racismo mais se fortalece, pois a dicotomia é um sistema de retroalimentação infinito. A expansão do racismo então se prolifera de modo sutil no interior dos antirracistas. O ódio aos racistas é o combustível dessa expansão. Queremos que os racistas desapareçam da face da terra com toda nossa força e convicção. Os antirracistas então se transformam nos racistas contra os racistas. E esse ódio faz avançar também naqueles que não davam tanta importância assim para questões como essas. E novos racistas se levantam nas hostes racistas e antirracistas. É um crescimento exponencial.

Então o que deixa de ficar evidente é que as disputas por lugares de privilégio atingiram o coração do racismo e a defesa e o ataque se confundem em zonas de conflito. Ninguém quer perder seu lugar, garantindo a longevidade do racismo.

O sistema dicotômico é tão eficiente porque faz aumentar aquilo contra o qual se investe, a despeito de acreditarmos na eficiência da luta. Lutar contra o racismo faz aumentar o racismo. É inocente presumir que uma grande energia devotada a derrotar uma ideia não vá fazer crescer essa mesma ideia para muito além do estado atual em que se encontra. Essa é a função da ideologia, criar campos de exclusividade fazendo aumentar os territórios e o número dos combatentes inimigos.

Exemplos desse paradoxo não faltam, seja a guerra fria ou a grande onde de rejeição à eleição de bolsonaro, o elenão, que gerou uma onda ainda maior de aprovação justamente como reação reticular. Seja a relação esquerda direita ou os sistemas jurídicos de proteção à mulher que só fez aumentar a violência contra elas numa sociedade patriarcal tradicional.

Enquanto a disputa pelo lugar do privilégio existir, o racismo prosseguirá num crescendo virtuoso. A pergunta que importa é quem está disposto a abrir mão do privilégio numa sociedade de castas.

Numa sociedade desumana como a nossa a última coisa em que se pensa é em humanização. A coisificação é nosso modus operandi da relação social. Empoderar aparenta ser mais sedutor do que humanizar.

Claro que todos concordamos que o racismo é um malefício e uma indignidade, e claro que todos sabemos que uma pessoa não é inferior a outra por conta da cor da pele, mas esperamos que todo o social se modifica como garantia para também mudarmos nossa concepção do racismo.

Essa espera tem um significado muito específico, pois responde a um desejo íntimo de justiça e correção, pois se todo o social mudar nesse quesito, terá também mudado na desigualdade que alimenta e que alimentamos juntos. Essa justiça implica em que o lugar do privilégio foi erradicado, junto com todos os outros privilégios. Só então teremos a paz de uma convivência respeitosa. Antes disso, somos obrigados a apimentar o social na defesa de um lugar, um ao menos, que garanta a cada um de nós algum privilégio. Privilégio de ser branco, privilégio de ser negro empoderado.

Então a decisão de acabar com o racismo depende de um posicionamento político. Vamos lembrar que política é a nossa capacidade de irradiar em nosso lugar de vivência. Podemos interferir em nossa comunidade de muitas formas. Mas imaginamos que política tem a ver com alguma profissão.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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