Redação Pragmatismo
Saúde 16/Abr/2020 às 12:21 COMENTÁRIOS
Saúde

As consequências da demissão de Mandetta para a luta contra a pandemia

Publicado em 16 Abr, 2020 às 12h21

A substituição do atual ministro da Saúde por um nome mais palatável para as preocupações eleitorais de Jair Bolsonaro vai ocorrer nas próximas horas. Sem Mandetta, surge uma questão crucial: a manipulação do número de vítimas. Mas há um problema ainda maior

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Mandetta deixará o governo nas próximas horas (Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

Leonardo Sakamoto, em seu blog

A substituição do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por um nome mais palatável para as preocupações eleitorais de Jair Bolsonaro traz, além da preocupação sobre o afrouxamento no combate ao coronavírus, uma questão crucial de transparência: a contagem de vítimas. Qual a chance, sob nova gestão, dos números serem manipulados para “caberem” na narrativa do presidente da República?

Temos, hoje, um gigantesco problema de atraso na realização de testes em suspeitos de Covid-19 – tanto os dos pacientes vivos quantos daqueles que vieram a falecer. Por isso, a contagem de corpos feita diariamente pelo Ministério da Saúde é, tal como a luz que nos chega das estrelas, uma fotografia do passado.

Mas uma fotografia imperfeita, pois números referentes a diferentes datas chegam simultaneamente. Assim, não é possível dizer simplesmente que a curva de casos que vemos se refere a uma semana, dez dias, atrás. Com isso, há um descompasso entre a realidade e os dados, o que foi percebido pelo aumento no fluxo de pronto-socorros, UTIs e cemitérios muito antes disso se traduzir em números.

Por exemplo, considerando os números em 5 de abril: a diferença entre as mortes ocorridas até aquela data (747, até agora, pode aumentar quando novos dados chegarem) e o número divulgado naquele momento (486) é de 261. Para ter uma ideia do que é isso representa, nesta terça (14), foram divulgados 204 novos óbitos.

Também temos uma subnotificação monstruosa causada pela baixa capacidade de testagem no Brasil. Hoje, temos 1.736 mortes registradas e 28.320 casos oficiais. Estudos projetam, contudo, que os números reais de casos seriam entre 12 e 15 vezes maiores do que aquilo que é divulgado.

Ao que tudo indica, Mandetta e sua equipe têm sido transparentes quanto a esse problema e alertado para a necessidade de aumentarmos o número de testes na população.

Mesmo assim uma pauta discutida, hoje, em qualquer veículo de comunicação que queira ser considerado sério é a possibilidade de manipulação dos dados – o que aumenta a importância do monitoramento por parte da imprensa. Mesmo que tenhamos uma parte dos Estados preocupada com a transparência, pesquisadores reclamam que os números relatados sobre as vítimas nas unidades da federação também sofrem pressão política. Em outras palavras, o caminho entre o laboratório de testes e a divulgação final pode ser longo e tortuoso.

Não é preciso ser especialista para entender que um país deve fornecer dados confiáveis não apenas sobre sua saúde e economia, mas a respeito de todos os aspectos da vida cotidiana, a fim de que pessoas, organizações e empresas tomem decisões baseadas na realidade. Mesmo, e principalmente, se os dados forem negativos.

O governo Bolsonaro, contudo, tem um histórico de briga com os números quando estes lhe são desfavoráveis. O fato de o país contar com institutos de pesquisa excepcionais vale muito pouco para um presidente que rejeita a ciência e trabalha com a intuição. Consequentemente, para ele, o problema não é a febre, mas o termômetro.

Bolsonaro já afirmou que a metodologia de cálculo de desemprego do IBGE estava errada porque não concordava com ela. O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse que as taxas de desmatamento eram manipuladas e infladas porque não concordava com elas. Osmar Terra, então ministro da Cidadania, disse não confiar em pesquisas da Fiocruz, instituição de renome internacional – que, hoje, é fundamental no combate à pandemia, porque não concordava com elas. O chanceler Ernesto Araújo não acredita em mudanças climáticas e afirmou que o aumento da média da temperatura global ocorreu porque estações de medição de temperatura que estavam no “mato” hoje estariam no “asfalto”. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, menosprezou o questionário do Censo.

Um bom exemplo disso foram as brigas públicas durante o salto no desmatamento ocorrido no ano passado. Após dizer que tinha a “convicção” de que dados de desmatamento da Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais eram “mentirosos”; acusar Ricardo Galvão, então chefe do INPE, de estar “a serviço de alguma ONG”; ouvir resposta do próprio Galvão, afirmando que ele tomou uma atitude “covarde” e que esperava a repetição da acusação olho no olho, Bolsonaro revelou que o objetivo era maquiagem mesmo. Estava preocupado que os dados seriam “propaganda negativa” do país no exterior.

O que mostra, aliás, que Mandetta não foi o primeiro a criticar o chefe por governar com base em suas conveniências políticas.

O que aconteceu na questão dos desmatamentos, todos sabemos: o ano de 2019 representou um salto vergonhoso na perda de cobertura florestal na Amazônia, em meio à necessidade de mitigar os impactos do aquecimento global, fazendo com que fossemos tratados como um pária ambiental internacional. Neste ano, os números do INPE já mostram novo crescimento.

A ação de Bolsonaro até agora, lutando contra a ciência e agindo como negacionista, também fez com que o Brasil se tornasse o mau exemplo entre os países. Quem diz isso não é o Granma, de Cuba, mas a Economist, do Reino Unido, e o Washington Post, dos Estados Unidos.

O problema é que o presidente da República depende de uma baixa letalidade no vírus no Brasil para que sua aposta faça sentido. Ou de baixa notificação dos casos.

Bolsonaro é um motorista que conduz o governo por uma estrada esburacada e, ao invés de usar toda informação possível para uma travessia tranquila, grita que as placas sinalizando “pista escorregadia” são fake news e acelera. Após um esperado acidente, lamenta o ocorrido, culpando as placas por uma suposta falta de clareza – e chama de comunista quem diz que ele não sabia dirigir.

Isso seria engraçado se nós não fossemos passageiros desse carro, que não conta com cinto de segurança e, claro, nem cadeirinha de bebê porque seu governo defende que sua obrigatoriedade é um absurdo.

O que acontece se ele puder indicar alguém ao Ministério da Saúde que fará exatamente o que ele deseja e não o que for necessário para enfrentar a pandemia é a grande questão.

Já não temos números confiáveis sobre o coronavírus. Qual a chance de, em nome da reeleição do presidente, o próximo ocupante dessa pasta dobrar a realidade para caber na pequena caixinha do chefe? Bradar que isso é impossível porque não há formas de burlar isso é desconhecer a inventividade e os recursos do governo, que pode fazer muita coisa, não fazendo absolutamente nada.

Políticos pouco afeitos à democracia, quando colocados contra a parede, tendem a reduzir a transparência de informações às quais a sociedade tem acesso a fim de adaptar a realidade à sua narrativa. Esperemos que Bolsonaro, que ostentava a biografia do coronel Brilhante Ustra em sua cabeceira, não esteja pensando em torturar os números até que eles gritem o que ele deseja ouvir.

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