Redação Pragmatismo
Ciência 04/Mar/2020 às 11:44 COMENTÁRIOS
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Ex-terraplanista brasileiro relata série de ameaças e diz sentir vergonha

Publicado em 04 Mar, 2020 às 11h44

"Gostava de conspirações, e com a Terra Plana não foi diferente". Músico passou a ser ameaçado após se tornar o primeiro terraplanista a confessar arrependimento em público e revelar detalhes do que chama de 'seita'

terraplanistas brasileiros

Mariana Alvim, BBC Brasil

Em menos de cinco anos, o mundo do capixaba Eduardo Dias, de 32 anos, virou de cabeça para baixo. Ou melhor, deixou de ser um disco para virar uma bola, e o canal de YouTube que chegou a difundir terraplanismo passou a combatê-lo.

Hoje, o músico revela uma ponta de vergonha pelo “erro grotesco” em sua vida, diz ser um dos poucos “ex-terraplanistas confessos” e se autodenomina o “maior inimigo da Terra plana no Brasil”.

Levado por sua curiosidade por história e conspirações, há cerca de quatro anos Eduardo se deparou na internet com teorias de que a Terra seria plana e não um globo — um fato comprovado há séculos de inúmeras formas pela ciência.

A conversão de Eduardo, que completou o ensino médio e está com a matrícula trancada em uma faculdade de música, aconteceu rapidamente.

“Eu já não acreditava que o homem tinha ido à Lua, gostava de todas essas conspirações. Com a Terra plana foi muito rápido [o convencimento]. Ao assistir à transmissão desses dois conspiracionistas, comecei a entrar em contato com as pessoas que estavam ali no chat. Também entrei em grupos de terraplanistas no WhatsApp. Foi aí que o bicho começou a pegar: me tornei terraplanista”

O “auge” do terraplanismo do músico capixaba aconteceu em 2016, quando participava de grupos temáticos no WhatsApp, realizava experimentos para refutar a esfericidade do planeta e chegou a produzir vídeos defendendo a conspiração em seu canal no YouTube.

Mas a fase durou pouco, coisa de dois meses. Hoje, em seu canal Sistemático, Eduardo publica vídeos com chamadas e títulos provocativos como “A Lua detona a Terra plana”, “Vamos debater terraplanilsons” e “Mais uma vez provaram o globo”.

“O terraplanismo entrou na minha vida de uma forma meio inusitada. Fui criado em igrejas evangélicas, aos 16 anos comecei a ser chamado por pastores para tocar (música) e depois comecei a fazer um curso de Teologia. A paixão que eu tinha era pela música, não ligava muito para as doutrinas e pregações. Sempre fui um crente rebelde: gostava de entender e debater assuntos como o dízimo e os assuntos mais polêmicos dentro da igreja”, relata Eduardo, que nasceu e mora em Vila Velha, Espírito Santo.

“No curso, comecei a me interessar por alguns assuntos controversos que a própria Teologia abordava. Passei a seguir canais conspiracionistas que falavam contra igrejas católicas, evangélicas… Nesse tempo, eu estava parando de frequentar as igrejas e caí em uma transmissão ao vivo com dois grandes conspiracionistas que abordavam o terraplanismo na época. Achei o assunto interessante e que as questões da Terra plana faziam sentido.”

Foi ao tentar produzir vídeos sobre o assunto para seu canal, aberto inicialmente com a intenção de ter debates entre leigos sobre questões religiosas, que ele percebeu os “furos” do terraplanismo.

“Comecei a fazer alguns vídeos sobre a Terra plana, mas não postava. Tentava fazer algum roteiro, criar imagens, e via que não tinha sustentação alguma.”

“Posso dizer que foi nesse período que eu quis acreditar na Terra plana, ou ignorar a realidade. Mas todo assunto que eu ia levantar para ‘refutar o globo’, eu quebrava a cara. Aí eu levava questionamentos para os grupos e comecei a ver que algumas pessoas ali eram simplesmente desonestas.”

Eduardo conta que chegou a postar um vídeo sobre como a linha do horizonte provaria a ausência de curvatura da Terra — mas o material foi apagado em poucas horas, ao ser contestado por um internauta que logo se tornaria amigo e personagem importante em sua “reconversão” à defesa da Terra como um globo.

Apesar de dizer que já recebeu mais de 200 e-mails de pessoas relatando terem deixado de ser terraplanistas, algumas com a ajuda de seus vídeos, o capixaba diz que é raro uma pessoa com esse passado se revelar — o que no seu caso, acabou “acontecendo naturalmente”.

“É muito difícil reconhecer um erro tão grotesco com esse. Quando você para para pensar, você ignorou tudo o que você aprendeu”, diz o youtuber.

“É raro você ver um ex-terraplanista confesso… Tanto que a maioria dos ex-terraplanistas a gente não sabe que existe. Muitos comentam comigo e somem. As pessoas preferem não falar que acabaram crendo nisso porque vão ser chamadas de burras.”

De acordo com uma pesquisa do Instituto Datafolha publicada em julho do ano passado, 90% dos brasileiros consideram que o formato do planeta Terra é redondo; 7% plano; e o restante diz não saber.

Eduardo afirma que não se sente culpado ou responsável em parte por propagar as ideias equivocadas que hoje abomina.

“Fui ignorante, burro pra caramba, mas não cheguei a enganar ninguém. Acho que me redimi: desde os primórdios dos canais terraplanistas, estou combatendo-os — até com uma dificuldade, porque não sou da área da ciência. Pelo menos eu comprei a briga pro lado certo e hoje sou o maior inimigo deles.”

Mas, como diz em alguns de seus vídeos, “a internet não esquece”. Mesmo nas publicações mais recentes no canal de Eduardo, é comum um ou outro internauta lembrar nos comentários que o youtuber já foi terraplanista — tipo de recordação que ele reconhece incomodar “um pouco”, pois se arrepende de não só ter acreditado nisto como se exposto.

No entanto, o capixaba diz que, ao menos na família, conseguiu na época manter seu terraplanismo bastante “íntimo” — a mãe e a esposa, por exemplo, não acompanharam a breve empreitada do músico na conspiração, que era cultivada por ele sobretudo na internet.

Nesse vasto mundo virtual, Eduardo conta que começou a perceber dois tipos de pessoas entre os terraplanistas.

O primeiro é o de pessoas que ele entende como “honestas”: esbarraram no conteúdo terraplanista, acharam que ele fazia sentido e caíram no conto de outros que acabam faturando com a teoria da conspiração. E, eventualmente, estão abertas a reconhecer que erraram.

Já pessoas do segundo grupo nem mesmo acreditam de verdade na Terra plana mas fazem disto uma fonte de renda, segundo ele — monetizando vídeos e outros tipos de conteúdo em plataformas como YouTube e Patreon. E, diferentemente do primeiro grupo, são pessoas que se mostram irredutíveis diante de provas de que a Terra é um globo.

“Fiz uma pesquisa no Stellarium (um software para visualização do céu) sobre o Cruzeiro do Sul e vi que vários pontos não batiam com o modelo da Terra plana. Levantei isso no grupo e ali vi que eles são desonestos, pois eles não queriam nem debater e já davam uma desculpa.”

“Vendo a reação dos líderes dessa seita, percebi que são pessoas que estão ali porque precisam ter um grupo. Parece que são pessoas que sempre tentaram ter algum status e não conseguiram, são frustradas e encontraram refúgio na Terra plana.”

Uma outra reação dos terraplanistas vivenciada por Eduardo é mais recente, resultado dos vídeos que produz refutando a Terra plana. Ele relata já ter recebido ameaças anônimas pela internet, como emails e mensagens de WhatsApp — “algumas até infantis” e outras mais preocupantes, como comentários identificando lugares em que passou em seus vídeos. O capixaba diz que avalia como proceder sobre as ameaças.

“Por um tempo, cheguei a desligar todos os vídeos sobre Terra plana no meu canal, comecei a fazer outros tipos de vídeo, de gameplay, de música… Mas o pessoal pediu para eu voltar, eu fui relaxando com isso e agora voltei, mas tirando sarro. Hoje faço refutação da Terra plana, mas tirando bastante sarro para… aguentar. É muito complicado você ver que as pessoas não são terraplanistas, não acreditam no assunto, postam vídeos e são aplaudidas. Tudo errado.”

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