Redação Pragmatismo
opinião 26/Nov/2019 às 07:56 COMENTÁRIOS
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"Fui virtualmente atropelado porque critiquei Augusto Liberato"

Publicado em 26 Nov, 2019 às 07h56

"Minhas críticas a Augusto Liberato foram contextuais, jamais destrambelharam para ofensas pessoais. Não ri de sua morte, não fiz piadinhas com o acidente que o matou, não desrespeitei a família enlutada. Meu foco foi exclusivamente destacar seu desserviço ao povo do Brasil. Foi aí então que a avalanche teve início"

banheira do gugu
Banheira do Gugu (reprodução)

por Alexandre De Oliveira Périgo, via Facebook

Ontem me atrevi a caminhar na contramão da rodovia da mídia, o que equivale a pedir para ser virtualmente atropelado (veja aqui).

Só o fiz porque tenho o couro curtido; depois do massacre midiático ao qual eu e a minha amada Paola fomos submetidos por conta de seu ensaio fotográfico durante a gestação do Leozinho — com direito a uma semana de corredor polonês nos comentários do Uol, do Estado de Minas e seus pares — fiquei calejado: desde então relinchos e ameaças virtuais batem em mim e voltam.

Destarte cometi o crime inafiançável de escrever que Augusto Liberato foi um apresentador absolutamente sem talento e sem carisma que dedicou sua vida à alienação do povo brasileiro, foi um dos incubadores do fascismo que hoje nos assola, foi um propagador de fake news como a entrevista mentirosa com falsos líderes do PCC e foi também um dos responsáveis pela impregnação da cultura machista que mata milhares de mulheres todos os anos; escrevi que Liberato recebeu por tais desserviços somas milionárias como prêmio, que culminaram em um patrimônio de cento e cinquenta milhões de reais, comentei também que o cidadão, após ajudar a destruir o Brasil, resolveu covardemente morar no exterior, em uma mansão de quase setecentos metros quadrados, gozando da segurança e dos privilégios que a maioria esmagadora de seus compatriotas não desfruta, em alguma parte, por suas ações calhordas.

Não ri de sua morte, não fiz piadinhas com o acidente que o matou, não desrespeitei a família enlutada. Nada disso. Eu sou o tipo de comunista que acredita na utopia da revolução armada, porém que não se orgulha nem um pouco por ser a violência o único caminho para a derrubada da burguesia e a tomada popular do poder. A vida merece respeito. Toda vida merece. Mesmo a dos maiores canalhas.

Minhas críticas a Augusto Liberato foram contextuais, jamais destrambelharam para ofensas pessoais, mesmo porque não o conheci; pode ter sido um bom pai, um ótimo filho, não sei – e isso pouco importa. Meu foco foi exclusivamente destacar seu desserviço ao povo de meu país.

Foi aí então que a avalanche teve início.

Quando uma postagem atinge certo número de curtidas e de compartilhamentos no Facebook, a bolha estoura. E o que vem após esse estouro cheira mal, muito mal.

Fui xingado de tudo que era possível e imaginável. Disseram que eu era um “monstro que não respeitava a dor alheia”, um “oportunista que queria somente aparecer”, um “urubu que não respeitava o morto” e um “recalcado com inveja do sucesso do apresentador falecido”. Chamaram minha mulher de puta, minha mãe de vaca, meus filhos de animais. Daí para baixo.

Entretanto minha motivação para escrever essa reflexão não foi as ofensas; já mencionei que tenho o couro curtido. O que mais me chamou a atenção com os comentários despropositadamente agressivos que recebi às centenas dividi a seguir em quatro aspectos conjunturais.

O primeiro é o luto e a moralidade seletivos da parcela mais conservadora do país. Para essa gente, rir e fazer piadas das mortes da esposa e do neto de Lula são práticas aceitáveis e até estimuladas. No entanto, essas mesmas gentes de bem, ao lerem uma mera crítica contextualizada às ações em vida de um apresentador de TV alguns dias após seu passamento, tomam para si as dores da família do morto com uma fidelidade perdigueira, passando a taxar de “monstruoso” e de “insensível” qualquer um que ouse fazer referências que não sejam loas ao defunto. Adicionalmente, aqueles que atualmente qualificam como “fim dos tempos” qualquer performance artística com algum grau de sensualização, em especial se assistida por crianças, passaram com a morte de Liberato a relativizar moralmente os quadros televisivos altamente erotizados promovidos pelo apresentador no passado, como eram os concursos de beleza com meninas de menos de dez anos e as banheiras com mulheres seminuas a serem bulinadas por homens de sunga na procura de sabonetes submersos. A moral e os bons costumes dessa gente conservadora proveram hipócritas concessões travestidas com ares de “nostalgia” às putarias televisivas de Liberato nas tardes de domingo; tudo era “divertido”, “engraçado” e aceitável, afinal de contas, “isso faz muito tempo” – como se houvesse anacronismo nas críticas ao machismo recente dos programas do SBT.

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O segundo é a sacralização do morto. Criticar o comportamento de alguém que morreu recentemente é, para boa parte dos brasileiros em geral, indesculpável. Partir desta para melhor veste inexoravelmente de qualidades os maiores crápulas. Se os canalhas envelhecem, como disse Nelson Rodrigues, é ao morrerem que se tornam santos.

O terceiro é o despreparo teórico e conceitual do brasileiro médio para o debate; no imaginário coletivo de boa parte dos nossos, debater equivale a uma competição, uma verdadeira rinha de galo retórica. Não há troca de ideias nem provocações que levem a reflexões de todas as partes envolvidas, nada disso; há tão somente uma briga, onde o vencedor, orgulhoso de suas capacidades superiores de gritar e de ofender, veste os louros da vitória enquanto o perdedor, humilhado publicamente, retira-se com o rabo entre as pernas. Também não é necessário arcabouço algum para a construção de argumentação; opiniões, por mais despreparadas e pueris que sejam, devem ser religiosamente respeitadas. É assim que um simples “eu acho que” derruba anos e anos de dedicação e de estudo sobre um tema – e sem nenhum constrangimento.

O quarto e último é sobre a força da televisão na formação do inconsciente coletivo nacional. Isso não pode ser subestimado. O Brasil inteiro vem sofrendo uma verdadeira lobotomia midiática nos últimos cinquenta anos que cobra um alto preço, inclusive dentro do dito campo progressista. Seguramente por conta disso tomei porrada de centenas de pessoas sedizentes de esquerda que se mostraram defensores aguerridos das práticas de Liberato. Cheguei, não sem tristeza, a ler uma pessoa filiada ao PSOL chamando-me de “elitista” por criticar Liberato, pois o apresentador “fazia parte da sua infância” e “promovia a divulgação da cultura popular”. Bloqueei, sem exageros, mais de duzentas pessoas que foram desproporcionalmente agressivas em minha postagem; o desalento é que seguramente mais da metade delas usava “Ciro 2022” ou “Lula Livre” como fotos de capa.

O texto é grande, mas a conclusão é simples: somos ainda reféns da hipocrisia comportamental e dos ditames televisivos. E uma realidade maturada por décadas não muda de um dia para o outro. O importante é seguirmos em frente, ainda que a passos curtos e sem parar durante a caminhada. Temos problemas para muito além dos milicianos que estão no poder. Será preciso reeducar os brasileiros sem a presença da metástase midiática burguesa. E não podemos nunca nos esquecer: nadar contra a maré traz gosto de água salgada na boca.

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