Luis Gustavo Reis
Colunista
Racismo não 10/Mar/2019 às 15:06 COMENTÁRIOS
Racismo não

De Marighella a Marielle: o Estado brasileiro no banco dos réus

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 10 Mar, 2019 às 15h06

Há centenas de anos, recursos estatais são gastos com pobres, miseráveis, velhos, jovens e crianças para que tenham o que merecem: a interrupção da vida como prêmio.

Marighella Marielle Estado brasileiro no banco dos réus Negros
Carlos Marighella e Marielle Franco

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” (Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro)

O incansável Darcy Ribeiro dizia que o Brasil é um “moinho de gastar gentes”. A linguagem figurada do antropólogo contemplava a violência cometida contra indígenas, negros e mestiços desde a época colonial até o período republicano. São incontáveis os corpos dilapidados nos quase 500 anos a que Darcy se refere, muito deles abatidos por aquele que, em tese, deveria zelar em primeira instância pela vida dos seus nacionais: o Estado.

É sabido por vários brasileiros que o país vive uma guerra civil não declarada, com índices de morte que fazem os conflitos do Oriente Médio parecerem amadores. O polêmico médico e historiador, Luís Mir, já havia sinalizado tempos atrás que os números da violência brasileira são atordoantes. Segundo ele, cerca de 150 mil pessoas morrem violentamente no Brasil por ano e, desses óbitos, cerca de 70 mil são vítimas de assassinatos. Com apenas 3% da população do globo, abrigamos cerca de 13% dos homicídios do planeta. Ocupamos o desonroso 13° lugar no ranking mundial de homicídios, deixando para trás países como México, Colômbia e Namíbia. Morrem 30 vezes mais pessoas em terras tupiniquins do que em toda a Europa.

Os custos dessa tragédia não são apenas vidas: o atendimento aos assassinados consome cerca de R$ 21 bilhões anuais do tesouro nacional, ou seja, 40% de tudo o que se gasta com saúde (em torno R$ de 52 bilhões anuais). Nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, os dados são ainda mais alarmantes: os Governos Estaduais usam cerca de 60 % do seu mirrado orçamento com saúde apenas para dar conta do atendimento com as vítimas dessa cotidiana violência. E aqui, caro leitor, estamos nos referindo apenas às mortes causadas pelo Estado, mas é preciso lembrar que na Era dos empoderamentos, na qual criou-se uma sociedade de pequenos tiranos onde todos têm poder contra todos, a maioria dos homicídios em São Paulo, por exemplo, são promovidos por marinheiros de primeira viagem, ou seja, gente que nunca havia tocado em armas antes e que mata por motivos fúteis: vingança, desavença, impulso entre outros.

Mas voltemos ao Estado e a sua máquina de morte que permanece ativa, moendo os mesmos seres humanos que Darcy Ribeiro sinalizou há duas décadas. Segundo o Atlas da Violência 2018, relatório publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), foram cometidos 62.517 assassinatos em 2016. Desse total, 71,5% das pessoas mortas eram pretas ou pardas. O Atlas de 2019 ainda está em elaboração, mas não é preciso ser especialista para intuir o perfil dos executados que encabeçará a lista do macabro relatório.

Nenhum desses dados, ou pelo menos o perfil desses mortos, é novidade. Os litros de sangue derramado e que mancham a história deste país são registrados todos os dias nos jornais, gerando algumas cínicas indignações dos administradores públicos, mas nenhuma ação concreta para frear as trágicas estatísticas.

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Esse ano completam-se 50 anos de um assassinato emblemático cometido pelo Estado. Trata-se da execução de Carlos Marighella, guerrilheiro comunista morto, em 1969, pela ditadura civil-militar brasileira.

Nascido em Salvador em 1911, Marighella era um dos oito filhos de Augusto Marighella, operário e imigrante italiano, e de Maria Rita do Nascimento, negra e filha de escravizados. Muito se especulou, com a preconceituosa característica de certas parcelas da população brasileira, sobre a negritude do militante comunista. Como pontou Mário Magalhães, seu principal biógrafo, “inimigos do Marighella sabiam que ele não era branco”.

O militante comunista esteve no olho do furacão de dois regimes autoritários: o Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, e a ditadura civil-militar iniciada em 1964. Na década de 1930, abandonou o curso de engenharia civil para se filiar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Anos depois, foi eleito deputado federal constituinte pela Bahia, mas teve o mandato cassado em 1946 por ordem do então presidente Eurico Gaspar Dutra. Após o golpe civil-militar, escreveu textos de apologia à guerrilha e extremou divergências com membros do PCB, discordâncias que culminaram em sua expulsão após longos 33 anos de militância. Em meados dos anos 1960, viajou para estudar guerrilha em Cuba e, depois para China, onde viu de perto a Revolução Cultural Chinesa. Ao voltar, fundou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), responsável, entre outras ações, pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. O objetivo da organização era derrubar o regime de exceção instaurado no país.

Com o recrudescimento do regime militar, os órgãos de repressão concentraram esforços na captura do guerrilheiro. Na noite de 4 de novembro de 1969, Marighella foi surpreendido por uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Foi morto a tiros por agentes do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS), em uma ação colossal organizada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. A morte de Marighella marcou a história da resistência armada urbana à ditadura civil-militar no Brasil.

Morre o homem, mas seu legado permanece. Marighella virou tema de músicas, filmes, livros, seminários, marchinhas de Carnaval, logradouros e estabelecimentos públicos. À despeito das tentativas de escamotear seus feitos, a memória do guerrilheiro atravessa décadas. Assentado em narrativas com querelas de toda ordem, graças ao potencial explosivo que desperta, Marighella é repudiado por detratores e ovacionado por prosélitos, demonstrando como o passado é um elemento vivo, disputado permanentemente por agentes sociais do presente. A História está sempre em construção, segundo Mário Magalhães, “Marighella é mais amado e odiado hoje que na sua época”.

Recentemente, o ator Wagner Moura estreou como diretor de cinema e lançou o filme Marighella, no Festival de Berlim. Alvo de críticas de alguns jornalistas da imprensa nacional e internacional, bem como das milícias virtuais brasileiras, cujos membros se quer assistiram ao filme, Moura já estava ciente da repercussão do longa-metragem num país atolado no pântano ideológico: “Vamos enfrentar muita merda no Brasil”, disse o diretor.

O modus operandi estatal, quando quer calar aqueles que não se curvam aos seus desmandos, é atroz. A mesma brutalidade que ceifou a vida de Marighella foi usada cerca de meio século depois para silenciar Marielle Franco.

Como apontou Wagner Moura, “Marighella, negro, revolucionário, foi assassinado por forças do Estado em 1969 em seu carro e, 50 anos (sic) mais tarde, uma vereadora negra morreu da mesma forma nas mãos, provavelmente, de agentes do Estado“.

As engrenagens do moinho citado por Darcy Ribeiro são azeitadas diariamente com o sangue dos descartáveis sociais. Pela moenda, passaram Carlos Marighella, Osvaldão, Soledad Barrett Viedma, os supliciados da Favela Naval, os 111 presos do Massacre do Carandiru, o dentista Flávio Ferreira Sant´Anna, o ajudante de pedreiro Amarildo, a vereadora Marielle Franco e os 14 chacinados do Morro do Fallet. Há milhares de outros destroçados pelo moinho, numa guerra civil silenciosa e altamente letal.

Não bastasse o sofrimento causado pela morte, familiares e amigos ainda convivem com o desrespeito sistemático à memória de seus parentes. Como sadismo não tem limites e, inclusive, é aplaudido por expectadores alvoroçados, o deputado Rodrigo Amorim (PSC) não apenas destruiu uma placa em homenagem à Marielle Franco, como usa parte da peça para “decorar” seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Em um país minimamente decente, a atitude do deputado geraria revolta social. No Brasil, porém, rendeu 140 mil votos e o título de deputado mais votado do estado carioca.

O Estado brasileiro já foi gestado por imperador, advogado, general, médico, sociólogo, metalúrgico, economista, professor e agora por um ex-capitão do exército. Todos esses protagonistas de nossa história –à direita ou à esquerda, no centro ou nos extremos– sempre foram tão autoritários e arrogantes quanto os seus piores adversários.

Na verdade, nunca foram adversários. Sempre estiveram em busca do mesmo objetivo, do mesmo poder, da mesma máquina que opera desigualdades. Em um sistema intrinsecamente desigual, quem assume o poder reproduz desigualdades, ainda que o discurso esteja travestido do verniz social e progressista.

As palavras têm uma capacidade imensa de encobrir o real. Assim elas operam no país que transformou homofobia em frescura, feminismo em vitimismo, racismo em “mimimi” e jogou na lata do lixo iniciativas básicas para garantia da dignidade humana. Num exercício imaginativo, tal qual uma alegoria, ao ocupar o banco dos réus para responder sobre os crimes cometidos, o Estado brasileiro seria condenado à pena capital.

Por aqui, cidadanias são mutiladas à luz do dia, sem freios ou constrangimentos. Há centenas de anos, recursos estatais são gastos com pobres, miseráveis, velhos, jovens e crianças para que tenham o que merecem: a interrupção da vida como prêmio.

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*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos

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