Redação Pragmatismo
Economia 27/Fev/2019 às 16:42 COMENTÁRIOS
Economia

Os servidores públicos são mesmo "privilegiados"?

Publicado em 27 Fev, 2019 às 16h42

Desde a volta do neoliberalismo ao Poder Executivo, mais precisamente a partir de Michel Temer em 2016, os servidores públicos têm sido tratados como se fossem “privilegiados”

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Manifestação de servidores (Imagem: Tomaz Silva | ABr)

Fernando Nogueira da Costa*, Jornal GGN

Desde a volta dos neoliberais ao Poder Executivo, devido ao golpe de 2016, os servidores públicos têm sido tratados como fossem “privilegiados”. Atacam as carreiras de Estado. A perseguição política, apelidada de “despetização” por um ex-deputado do baixo clero e ministro no governo do capitão, visa em última análise levar todos ao regime de capitalização. Desestimulará o futuro ingresso de talentos, via concursos públicos, para uma carreira antes promissora em termos de mobilidade social e de estabilidade no emprego, justamente, para evitar demissões motivadas por alternâncias de poder.

Aliás, graças a esses servidores a máquina pública continua a funcionar, apesar dos incompetentes eleitos ou nomeados para cargos políticos de representação. Eles têm know-how (“sabem como”), isto é, um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos por formação qualificada e experiência profissional. Mas possuem também o “know-why” (“sabem o porquê”), isto é, conhecem o motivo porque as ações públicas, inclusive fiscais e diplomáticas, são feitas de determinada maneira. Não à toa a ESAF (Escola de Administração Fazendária) e o Instituto Rio Branco se destacam na formação de quadros de excelência, no Brasil, embora o atual ministro de Relações Exteriores seja um “cisne negro” para falsear essa impressão. Ou ele é uma “ovelha negra”?

Na França, uma “grande école” é um estabelecimento de ensino superior, cujo recrutamento de seus alunos é realizado por concurso seletivo disputadíssimo por assegurar a formação de alto nível para quadros do Estado francês. A qualidade da formação dessas instituições confere a seus alunos grande prestígio. Nelas é preparada a maior parte da elite política e científica francesa. Entre seus ex-alunos incluem-se políticos de primeiro escalão e altos executivos de instituições públicas e privadas. As primeiras faculdades desse tipo foram criadas pelo Estado em meados do século XVIII, com o objetivo de fornecer as capacitações técnicas e militares para os altos cargos.

Entre as preocupações do confucionismo estão o saber, a moral, a política e a pedagogia. Conhecida pelos chineses como “ensinamentos dos sábios”, o confucionismo também tem uma continuidade histórica. É considerado uma filosofia, ética social, ideologia política, tradição literária e um modo de vida. Confúcio compila e organiza antigas tradições da sabedoria chinesa e elabora uma doutrina assumida como oficial na China por mais de 25 séculos. Combatido como reacionário durante a Revolução Cultural chinesa (1966-1976), o confucionismo, cuja peça-básica é o amor ao conhecimento, retomou seu papel-chave após as mudanças políticas realizadas por Deng Xiaoping no país. Dá caráter moral a funcionários de Estado, submetidos a rigoroso exame de méritos, para assessorar o governo e os representantes populares.

Aqui, em contraste, o Messias se formou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1977. Tornou-se conhecido do público em 1986, quando escreveu um artigo para a revista Veja no qual reclamava dos baixos salários de oficiais militares. Por causa disso, foi preso por quinze dias. Absolvido dois anos depois, ingressou na reserva em 1988 com o posto de capitão, para concorrer à Câmara Municipal do Rio de Janeiro naquele ano. Com votos dos soldados rasos e policiais militares, foi reeleito por seis vezes durante seus 27 anos na Câmara dos Deputados. Ficou conhecido por sua postura corporativista e de extrema-direita ao expressar simpatia pela ditadura militar e a defesa das práticas de tortura. Criou um clã político e virou presidente com discurso de ódio em WhatsApp.

Em lugar da luta de classes, entende-se melhor o atual quadro político analisando-o como conflito de interesses entre castas de natureza ocupacional. A casta dos negociantes se alia, oportunisticamente, à casta dos militares e à casta dos sabidos-pastores, alijando a casta dos oligarcas governantes e atacando a casta dos sábios-tecnocratas e a casta dos trabalhadores. A reforma trabalhista já tinha atentado contra os sindicatos ao retirar-lhes a principal fonte de receita e “pejotizado” a nova geração de trabalhadores.

Agora, na mesma sanha, o rancor, a fúria, a ira e o desejo de vingança contra “os petistas”, latu sensu, caricaturados como quadros socialistas a dominarem o país desde os governos do Partido da Social Democracia Brasileira (o neoliberal PSDB), se dirigem contra seus supostos quadros incrustrados no Estado. É risível, porque um quarto de século depois, os economistas tucanos são sim servidores privados dos bancos. Assustados, eles cuidam da imagem pública ao propagar um revisionismo histórico: “confessam” a ambição do Plano Real ter ido além da estabilização do poder de compra da moeda, pois pretendia consolidar um novo modelo de desenvolvimento no país com características claramente liberais. O programa de desestatização (“privataria tucana”) quer se apropriar daquela marca bem-sucedida.

Curiosamente, quem vociferou no discurso de posse contra “o socialismo instalado no Brasil” [risos] está acabando com as chances do capitalismo tardio no Brasil tirar seu atraso histórico!

De um lado, o papel do Estado e servidores públicos foi chave para saltar etapas em direção a se tornar um país emergente. Os ultraliberais não provam ele ser dispensável ao dizerem não existir mais uma “indústria nascente brasileira” a ser protegida.

De outro lado, neoliberais têm a ambição de transformar toda nova geração de trabalhadores de CPFs em CNPJs, ou seja, em microempreendedores de si só – ou trabalhadores sem direitos trabalhistas. Inovarão com um capitalismo sem empregados a serem explorados?! Existem 4,5 milhões de “empregadores”?! Trabalhadores por conta própria cresceram de 20,4 milhões em 2012 para 23,3 milhões em 2018!

O último lance, colocando o futuro das carreiras dos servidores públicos em xeque, está na proposta de reforma da Previdência Social de forçar a troca de um regime de repartição coletiva ou geracional (“trabalhadores ativos cobrem aposentadoria dos inativos”) para um regime de capitalização individualista (“cada trabalhador opta, no início da carreira, por uma carteira de ativos”). Mas a proposta vai além disso, ao obrigar a cobertura de um suposto déficit atuarial do pagamento de suas aposentadorias por parte de servidores públicos contratados para uma carreira dentro do regime de repartição. Não só a proposta aumenta a alíquota, de forma abusiva, como quebra o federalismo e impõe aos governos estaduais e municipais a mesma fórmula. Abre também a possibilidade de cobrar contribuição extraordinária para equilibrar fundos de pensão recém-criados com déficits imputados.

Vamos aos números referentes a 11,6 milhões empregados no setor público, sendo 1,2 milhão com carteira, 2,4 milhões sem carteira e 7,9 milhões de militares e funcionários públicos estatutários. Hoje, no RPPS (Regime Próprio), quem ingressou até 2013 sem adesão ao FUNPRESP (fundo de pensão federal) paga alíquota efetiva de 11% sobre todo o vencimento e quem fez adesão paga 11% até o teto do RGPS (R$ 5.839,45). Quem ingressou a partir de 2013, automaticamente, fica nesta última situação.

A proposta de alíquotas progressivas para o RGPS (Regime Geral) vai apenas até o teto do INSS, atingindo 11,68% de alíquota efetiva. Já para o RPPS atinge até 22% de alíquota ou 16,79% de efetiva, quando calculada sobre cada faixa de salário.

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Um exemplo numérico torna mais inteligível. Hoje, um salário de R$ 30 mil com a alíquota de 11% tem descontada a contribuição de R$ 3.300. Pela proposta passará à contribuição de R$ 4.835,83, ou seja, R$ 1.535 a menos em rendimentos líquidos, desconsiderando a alíquota de imposto de renda (27,5%) incidir sobre esse menor líquido, ou 5,11% a mais de desconto.

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Mas essa visão do presente não apresenta tudo “o que está em jogo”. O sistema de capitalização alternativo ao regime de repartição atual será com contribuição definida, ou seja, o benefício não estará definido, exceto a garantia de um salário mínimo como piso, pago por um Fundo Solidário do Tesouro Nacional. Isso será para tentar evitar os suicídios em massa como os idosos aposentados no Chile. Eles recebem em média US$ 115, valor similar (R$ 400) à proposta de BPC para os miseráveis brasileiros com 60 anos.

A proposta permite “livre escolha” pelo trabalhador da EAPC (Entidade Aberta de Previdência Complementar) ou modalidade de gestão das reservas com portabilidade entre as instituições financeiras privadas administradoras de PGBL/VGBL e as entidades de previdência públicas. Todas as regras de benefício para o RPPS valem para Estados, Municípios e o Distrito Federal. Caso registrem déficit financeiro e atuarial, deverão ampliar suas alíquotas de maneira extraordinária.

Detalhe” não muito divulgado pela imprensa: a reforma propõe uma limitação de incorporações de gratificações aos benefícios de aposentadorias e pensões. Estas chegam a representar 64% do vencimento-base no fim da carreira de um Professor Titular de uma Universidade estadual paulista. O padrão de vida cairá drasticamente!

Visando receber o abono de permanência, compensatório do maior desconto, os servidores tentarão trabalhar até a aposentadoria compulsória de 75 anos. Isto caso o PSL não consiga derrubar a “PEC da Bengala”, em outro casuísmo, este para o capitão nomear seus ministros para o STF.

Fiz abaixo uma simulação da carreira acadêmica de professores em RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa), desconsiderando adicional por tempo de serviço, sexta-parte e outras gratificações. Capitalizando a contribuição com juros mensais de 0,5% e alongando a carreira por quarenta anos, desde a graduação com 25 anos até atingir a idade mínima de 65 anos, só conseguirão manter o padrão de vida do último salário (sem as gratificações) por mais vinte anos. Sem levá-las para a aposentadoria, será incorreto descontar contribuição para SPPREV sobre as gratificações. Elas terão de ser aplicadas para a manutenção do bem-estar familiar.

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Sem esses incentivos os melhores alunos não se interessarão mais pela carreira acadêmica. Poderão ganhar muito mais transformando seu CPF em CNPJ, pagando um mínimo de INSS sobre seu pro-labore e sendo isentos de pagar imposto de renda sobre lucros e dividendos.

E assim o governo do capitão terá conseguido desqualificar também o Ensino Superior, tal como já é de qualidade inferior o Ensino Básico brasileiro. E destruirá não “o socialismo”, mas sim o próprio capitalismo com todos os trabalhadores de formação universitária virando empresas sem sócios e empregados!

*Fernando Nogueira da Costa é professor Titular do IE-UNICAMP. Autor de “Métodos de Análise Econômica” (Editora Contexto; 2018).

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