João Miranda
Colunista
Racismo não 27/Out/2018 às 18:21 COMENTÁRIOS
Racismo não

Num dia qualquer

João Miranda João Miranda
Publicado em 27 Out, 2018 às 18h21

Breve história da sociedade brasileira

João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político

Era fim de tarde e o vento gelado agitava as árvores da Praça do Ponto Azul. Alguns aposentados conversavam calmamente perto da fonte desativada, enquanto observavam com um olhar distraído as pessoas que andavam a passos rápidos. Muitas delas voltavam para casa depois de um longo dia de trabalho, ansiosas por descansarem em frente à TV ou computador no tempinho que lhe restaram. Dois jovens sentados no banco próximo a fonte se esquentavam com beijos ansiosos.

Reizinho caminhava em passos descalços na calçada paralela ao Edifício Princesa, que fica de frente para a praça. A sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, o moletom encardido a braços mais curtos. Segurava com a mão esquerda uma embalagem amassada com comida. A mão direita se mantinha no bolso, os braços firmes contra o corpo num movimento intuitivo para se esquentar. Por causa da polícia que sempre o enxota com chutes e pancadas de cassetete, Reizinho precisava ficar se deslocando com frequência. Naquela noite montou pouso na praça da universidade, a alguns quarteirões dali, para onde caminhava com os olhos no chão, o capuz escondendo parte do seu rosto.

Era só mais um fim de tarde como qualquer outro. Várias dezenas, várias centenas de ações simultâneas, de microacontecimentos, cada um dos quais implicando posturas rotineiras, atos motores, pequenos dispêndios de energia, seguiam afrouxando de acordo que o dia chegava ao fim e a noite mergulhava a cidade numa melancolia fria. Até que de repente veio o estrondo. Num primeiro momento, ninguém entendeu o que aconteceu. As pombas da praça se assustaram com o barulho, e levantaram voo. O jovem casal parou de se beijar. E a conversa entre os aposentados foi interrompida. As pessoas que seguiam apressadas para casa perambulando pelas interrogações do dia, estancaram na calçada, subitamente presentes. Com as orelhas em pé e a respiração presa, todos pararam o que faziam para identificar a origem do barulho. A camada gelo fino que envolve a individualidade de cada um foi rompida e, por um instante, a praça ficou imóvel, mergulhada em silêncio, como uma fotografia antiga; sequer as folhas das árvores ousavam qualquer movimento.

Finalmente entenderam. Viram a alguns centímetros de Reizinho o corpo estendido de uma mulher morta. O sangue dela começava a formar uma poça na calçada. Atônitas, as pessoas com os olhos arregalados começaram a andar a passos cada vez mais largos em direção à Reizinho e à mulher morta. A cada passo a raiva tomava conta do olhar das pessoas. Reizinho percebeu na feição deles o olhar crescentemente incriminador que lançavam. Ele se sentia petrificado na calçada. Tinha que sair dali, mas só existia o tempo de uma respiração antes de todos chegarem até ele. Sentindo o seu corpo relutar como uma locomotiva saindo da estação, puxando atrás de si as toneladas de vagões, Reizinho não conseguia fazer nada além de pequenos movimentos hesitantes. Uma das pessoas percebeu a intenção do garoto e gritou: “Segura o neguinho”.

Dois homens o alcançaram e o seguram com força. Logo uma multidão se forma em volta do garoto e da mulher morta. Reizinho resistia, mas cada vez mais pessoas o seguravam. “Olha o que você fez!”, gritavam para ele. Enquanto alguns o condenavam com palavras, outros cuspiam. Alguns forçavam os braços do garoto para trás, apertavam a sua nuca e logo já lhe davam tapas na cabeça. A cada segundo a raiva dos lixadores aumentava, e a força das batidas também.

Decidem amarrá-lo no poste próximo ao corpo da mulher até que a polícia chegue. Prendem-no pelo pescoço com um fio de energia velho encontrado numa lixeira. A fúria reluzia nos dentes e no olhar das pessoas. Um homem na faixa dos quarenta anos cospe e xinga incessantemente no garoto, enquanto outro chuta as pernas magras dele, também o xingando com fúria. O terceiro lhe dá uma bofetada no rosto. Uma mulher grita: “Parem com isso!”. Mas ninguém ouve, e o linchamento continua. A mulher insiste, desesperada: “Parem, por favor!”. Sem dar atenção a mulher, o jovem que há alguns minutos beijava uma garota joga em Reizinho uma pedra e o acerta na cabeça, que desmaia com o golpe, o sangue escorre pelo seu rosto sujo de saliva. Mesmo estando desacordado, as pessoas continuam a linchá-lo. A cada soco, xingamento, chute, a fúria da patrulha de linchamento contra o rapaz aumentava ainda mais. Um deles encontra um pedaço de pau e o acerta com força na cabeça. O golpe fatal. Reizinho não resiste e morre.

A polícia chega. Os mesmos policiais que um dia no passado acordaram Reizinho no meio da noite por ele estar dormindo na frente de uma loja, com os braços afastam as pessoas que continuam a bater no corpo imóvel do garoto. Quando a polícia finalmente consegue afasta-los, a mulher que antes gritava desesperada para as pessoas pararem se coloca diante do corpo do garoto, mira todos com os olhos mergulhados em lágrimas e diz apontando com o dedo a janela aberta cinco andares acima deles: “Foi suicídio! Ele não tem culpa de nada. Foi suicídio!”. Todos olham para cima. Incrédulos, percebem a janela do quinto andar escancarada e uma família nela olhando para baixo, boquiaberta. Com a constatação, o silêncio se instala, e algumas pessoas abaixam a cabeça com o peso da culpa, outros escondem as mãos por trás das costas, sujas com o sangue de Reizinho.

*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, trabalha na rede pública do Estado do Paraná e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical. Email: [email protected]

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