Injustiça

O depoimento da última pessoa a falar com o reitor Cancellier

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A última pessoa a falar com o reitor Cau Cancellier foi um ex-aluno dele, o jovem advogado Rafael Melo. Eram 10 da manhã da segunda-feira, apenas 38 minutos antes do dramático suicídio que o transformaria num mártir para quem não aceita os desmandos da Justiça

Renan Antunes de Oliveira, Diário do Centro do Mundo

A última pessoa a falar com o reitor Cau Cancellier foi um ex-aluno dele, o jovem advogado Rafael Melo.

Eram 10 da manhã da segunda-feira 2 de outubro, apenas 38 minutos antes do dramático suicídio que o transformaria num mártir para quem não gosta dos desmandos da Lava Jato.

Os dois se encontraram por acaso na pracinha do Beiramar Shopping, o cenário mauricinho escolhido por Cau para tirar a própria vida, aos 59 anos.

Melo ia apressado quando viu num banco o magnífico reitor professor doutor Luis Carlos Cancellier de Olivo solitário, murmurando pra si mesmo, fumando muito.

O advogado logo notou que “ele estava com o torso curvado como se sentisse dor, meio alheio a tudo ao seu redor”, conforme contou no velório do antigo mestre, no saguão da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na noite da mesma segunda-feira.

Melo já sabia que o até então ficha limpa Cancellier tinha virado um pária na comunidade universitária.

Respingou no reitor o maior escândalo de Floripa em décadas: a Operação Ouvidos Moucos (deflagrada pela PF em 14 de setembro para apurar o possível desvio de grana no programa EAD (Educação à Distância), tocado pela UFSC entre 2008 e 2016. Teto do caso, 80 milhões de reais).

O jovem advogado lembra que ele vestia uma blusa esportiva bege de magas compridas, mas não percebeu a tragédia em andamento: “Tentei confortá-lo dizendo ‘sei o que o senhor está passando, tenho certeza que vai provar sua inocência’, mas ele não me deu muito papo”.

Os dois trocaram um aperto de mão. O advogado seguiu para a Livraria Saraiva, no piso Sambaqui (cada andar do shopping leva o nome de uma praia local). Pelo recibo da compra ele sabe que saiu da loja 10h17 em ponto.

Já o reitor Cancellier, proibido de entrar na UFSC desde que fora afastado do cargo 18 dias antes, por decisão da 1ª Vara Federal de Floripa, entrou no shopping para morrer.

Uma testemunha cruzou com ele no elevador panorâmico e o viu subindo para o andar mais alto, o L4, chamado piso Campeche.

Dona Dinete Sardá também o viu. Ela subiu alguns andares ao lado dele. Tudo que sentiu foi o cheiro desagradável de cigarro que ele exalava. Os dois nada se disseram.

E lá de cima, às 10h38, Cau se jogou de cabeça pra baixo, da altura de sete andares.

Na queda, passou por três pisos de garagens e pelos andares Jurerê e Joaquina, até se estatelar ao lado da escada rolante, no Sambaqui.

Eu vinha chegando para fazer compras quando vi uma barraca escondendo o cadáver”, contou no velório o ex-deputado Murilo Canto, 80 anos, amigo do reitor.

Não dava para reconhecer o corpo porque ele teve o rosto destruído”, disse, horrorizado com a visão. Pior é o que Canto não viu: na terça o corpo foi enterrado nu, porque estava muito deformado para ser vestido.

Ainda no shopping, os peritos identificaram o corpo pela impressão digital da habilitação dele.

Na carteira havia um bilhete suicida. Foi entregue à família. Seu inteiro teor ainda não foi divulgado – só a parte que o transforma em “mártir de um estado policialesco”.

Antes do meio-dia a notícia chegou aos quatro cantos da ilha de quase 500 mil habitantes, como se Cau fosse um popstar.

Reitor pop não é exagero. Responda depressa: como se chama o reitor da federal da sua cidade? Difícil lembrar, né?

Mas, em Floripa, é possível. O reitor sempre é imensamente popular porque um em cada 10 habitantes da ilha trabalha ou estuda na UFSC. As gerações de profissionais saídos da instituição comandam a economia local – só a incubadora de tecnologia gerou empresas que hoje respondem por 45 % do PIB da cidade.

Vira e mexe Cau estava na TV falando da instituição, cujo orçamento era de 1,5 bi e ranqueada em sexto entre as melhores do país.

Ele parecia ter muitos amigos. Quase mil deles passaram pelo velório na primeira noite, desfiando um rosário de lágrimas.

Na hora de maior dor, uma estudante do curso de Letras fez um protesto tipo eu sozinha. Foi o maior bafão. A moça exibiu um cartaz: “Cadê os 80 milhões?” (valor mencionado pela PF que induz as pessoas a pensar num rombo maior do que as malas de Geddel, mas que na verdade é apenas a verba dos últimos 10 anos do programa sob suspeita).

Em seguida, num supremo desrespeito, a jovem bateu com o cartaz no caixão. Acabou escorraçada por um grupo de veladores.

Dava para sentir no ar, além do perfume das coroas fúnebres, a grande dúvida: Cau se matou porque seria culpado ou porque foi um inocente colhido numa tempestade perfeita midiático-policial ?

Preso sem processo

Ora, gente, que pergunta boba: ele não era réu de coisa nenhuma!

Nem processado. No caso dele tudo começou de pernas para o ar, direto na cadeia – o crime a Polícia Federal ia tentar encontrar.

O certo é que alguém na PF achou que ele tinha que sair da UFSC pra poder fazer seu trabalho. O MPF e a Justiça concordaram com a tese e paft, cadeia nele.

Para os amigos, familiares e muitos colegas, Cau não fez nada do que disseram.

Ele começou a carreira como jornalista. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro aos 27, em 1985, trabalhou nos 15 anos seguintes entre a Câmara Federal e o Senado, como assessor parlamentar do ex-senador Nelson Wedekin (então no PMDB) – um dos poucos a defendê-lo desde a primeira hora, até o discurso final durante as pompas fúnebres.

Um dirigente histórico dos comunistas foi ao enterro, mas era de uma corrente adversária. Fez questão de dizer que ele abandonou a militância de esquerda e deu uma guinada pro outro lado – segundo vários relatos, Cau nunca escondeu que votou em Aécio, apoiou o impeachment, alinhou com Temer e se dizia fã de Sérgio Moro.

A estrela do show

Ser atropelado por desmandos conduzidos pela delegada PF Érika Marena, uma das queridinhas de Moro e do procurador Deltan Dallagnol – foi ela quem batizou a Lava Jata – é uma das ironias do drama.

No filme “Polícia Federal” o papel da delegada Érika cabe à atriz Flávia Alessandra. Ela esteve cotada para ser diretora da PF até novembro do ano passado, quando foi removida da força-tarefa de Curitiba. Promovida para baixo, acabou em Floripa, longe dos holofotes.

O caso da UFSC é o primeiro degrau notável da nova etapa da carreira dela. Cau, seu primeiro peixe graúdo desta fase – e ela já brilha de novo no livro de feitos da PF.

Érika pediu a prisão de Cau num vapt, baseada apenas na delação de dois colegas dele, como adiante veremos. No dia do anúncio ela segurava o microfone e enfrentava as câmeras com orgulho, como se tivesse prendido Bin Laden redivivo e acabado com a Al Qaeda.

Hoje, da parte que se sabe do bilhete suicida, Cau escreveu “minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”, como se lê na foto. A doutora Érika não tá nem aí. Já mandou avisar que a investigação continuará.

E que prisão espetacular: 105 agentes foram mobilizados para prender o reitor e seis professores no campus universitário, numa das cidades mais pacatas do Brasil.

Cau foi levado de casa por agentes originalmente lotados em São Luiz do Maranhão.

Em nome da PEC da economia, não tinha ninguém mais de perto pra tarefa??? A turma da terra de Sarney foi trazida a Floripa só para a perigosa missão de meter o reitor num uniforme laranja de presidiário? Ele foi algemado nos pés e mãos por agentes mascarados.

Pior: nu, Cau foi submetido a uma revista anal. A conferir se Geddel, Sérgio Cabral ou Eduardo Cunha passaram por tamanha humilhação.

Uma explicação plausível é que o pessoal não ia vir de tão longe para pouco. Como a PF estava proibida de apresentá-lo à imprensa, como muitas vezes faz, descontaram nele com a revista.

Pouca gente defendeu Cau nos 18 dias entre a prisão e a morte – a maioria esperando para ver as cartas na manga da Polícia Federal.

Lula deu o maior apoio

Com ele suicidado, choveram manifestações de apoio e passou de vítima a mártir.

O procurador-geral do Estado, João dos Passos Martins, divulgou uma nota de confronto, exigindo investigação. A posição foi entendida por muitos como pessoal, embora assinada pela instituição, já que os dois eram amigos desde a juventude, focas no mesmo jornal. Ela foi encampada pelo governador do estado.

Em menos de 12 horas a morte ecoou pelo Brasil. Até o ex-presidente Lula saiu em defesa de Cau, aproveitando para cravar que vivemos os tempos difíceis da Lava Jato – ele sabe bem.

Logo que se estabeleceu o link com a Lava Jato pela presença da delegada Érika, e ela usando os mesmos métodos de Dallagnol, os defensores de Cau partiram para o ataque, como se o caso dele fosse o primeiro.

Outra ironia do caso: ele não tinha o perfil preferido das vítimas dos procuradores e delegados da cruzada nacional contra corrupção. Era um homem limpo, discreto, manso e, acima de tudo, bem mais à direita do que os alvos do pessoal.

Com sua imagem de conciliador e de fazer acordos com todo mundo, era muito criticado pela estudantada vermelha. Só chegou a reitor com o voto de funcionários e professores, cujo peso foi maior do que o dos alunos.

Cau fez carreira meteórica na UFSC, em 12 anos chegou a reitor. Ele formou sua chapa à reitoria em 2015, com o apoio da direita, para varrer a influência de PT, PSOL e PSTU no comando da universidade – decisão certa, já que eram os últimos dias do governo Dilma.

Ele foi nomeado ainda pelo ministro de Educação dilmista, Aloysio Mercadante, mas tomou uma baita vaia dos jovens. Paciente, aguentou calado e até garantiu voz aos adversários na cerimônia.

Cau ficou em cima do muro nos últimos dias de Dilma, à espera de Temer. Logo começou a se entender com o atual ministro, Mendonça Filho, alinhando-se aos novos tempos. Era pró parcerias com a iniciativa privada – mesma coisa que chamar o capeta no ambiente radicalizado do ensino público.

Para dizer a que lado do planeta Cau parecia agradar mais, aqui vai um indicador: quando estudantes picharam o muro da facu com alusões aos 80 milhões, quem saiu em defesa do reitor foram os saradões do MBL.

No fim, perderam todos: o desmonte do programa EAD pelo governo Temer se dá pelo corte de verbas. Ocorre que mesmo com bons resultados (só a UFSC formou 3 mil desde 2008), o programa está condenado por ter nascido no hoje amaldiçoado governo Lula.

“Provas robustas” e fajutas

A paulada da PF no reitor deve deixar o EAD mais raquítico ainda – impossível saber se a busca de um problema policial no programa educacional veio antes ou depois da raquitização, ou se é sua pá de cal.

O que já se sabe com certeza é que a PF nunca teve e não tem contra o reitor as “robustas provas nos autos”, como fez acreditar de início.

Se elas não existem, muito menos podem ter como base “gravações e documentos” implicando Cau na suposta tentativa de impedir investigações da corregedoria da UFSC, depois ampliadas pela CGU e pelo TCU.

A menção a estes dois órgãos na denúncia da PF deixa mais confiantes os repórteres que vão reproduzir as acusações. Dá mais credibilidade, afinal, os dois são reconhecidos bastiões da moralidade pública.

O truque da PF para ralar um alvo como Cau é simples.

O pessoal que acusa convoca a imprensa e anuncia os nomes dos suspeitos, oferecendo alguns números. Em seguida, mostra que o MPF concordou com as investigações iniciais e promete desvendar o caso – em geral, ainda não sabe direito o que aconteceu. A Justiça fornece um juiz que concorda em prender os suspeitos e deixá-los à mercê dos delegados e procuradores.

Aula de fofocas

Quando foi a vez de Cau, tudo o que a PF tinha como prova contra ele eram duas delações – ou, no popular, deduragem.

Uma foi do corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado.

Para justificar a sua, ele se queixou à delegada que o reitor lhe retirou uma gratificação de mil reais mensais. Seria represália por ele, corregedor, não revelar dados da investigação que fazia no EAD ao reitor.

A outra foi da professora Taisa Dias. É pífia. Não passa de dois parágrafos curtos. Ela teve um bate boca com Cau e se sentiu ameaçada – quem conhecia bem o homem jura que ela ficou falando sozinha já no primeiro parágrafo.

Mas, seja como for, as duas fofocas tiveram o condão de jogar Cau na cadeia e do alto do shopping.

O depoimento da professora vale tanto como a lufada de ar que acaba de passar pela janela.

O depoimento do corregedor vale no máximo os mil reais que ele resmunga ter direito.

O crime de obstaculização parece ser a pedalada fiscal de Cau.

Vejamos: a demissão do corregedor e sua imediata recontratação, numa reclassificação que incluiu quase 100 servidores no pacote, é que resultou na perda de gratificação, para todos.

Frete para lugar nenhum

No fim, Cau foi para a tribunal da opinião pública como chefe de um desvio de 80 milhões. Na verdade, investigava-se se alguns professores ou servidores, e não o reitor, dividiram uns caraminguás por fora, ou se o frete de um ônibus foi o mais caro do que o de uma van.

Não há nada nos autos que justifique sequer o custo da operação policial contra a “orcrim” (os delegados adoram esta abreviação para organização criminosa).

Só para trazer agentes de todo canto do país, metodologia da PF, gastou-se mais do que com os fretes supostamente superfaturados dos estudantes do EAD.

Numa frase: a PF usou um tiro de canhão para matar uma formiga.

Vapt vupt os 80 milhões (lembre-se, mais do que as malas e caixas do Geddel) encheram os olhos e as manchetes da mídia. Um reitor em algemas e a história virou um must, todo dia realimentada.

Nos 18 dias de seu calvário, Cau parecia o gaiteiro de bailão que durante uma briga generalizada leva uma cadeirada na cabeça: veio desabando, enquanto tentava assimilar o cadeiraço.

Tirado de casa e jogado na prisão, tirado da UFSC e jogado às feras no ringue da opinião pública, ele desabou de vez: se refugiou num psiquiatra e nos remédios de tarja preta.

O lado Cau jornalista tentou se defender na mídia amiga. Deu entrevistas para ex-colegas do jornalismo e até escreveu para o jornal O Globo. Mas era só seu “jus sperneandi”, como os advogados dizem daqueles que esperneiam até morrer.

O fogo da mídia foi incessante e ele sabia que jamais reverteria o estrago.

Na quarta-feira da última semana de sua vida, ele almoçou com dois de seus melhores amigos, Wedekin e o médico Ricardo Baratieri.

Os amigos perceberam que ele oscilava entre a confiança em reverter as acusações de que fizera ouvidos moucos às denúncias de corrupção, e o mais completo desânimo.

Na quinta, teve uma pequena vitória na Justiça. Obteve o direito de entrar na UFSC por três horas, para participar de trabalhos com estudantes – nada pior do que sentir o gostinho e ter que sair escorraçado.

Na sexta ainda foi ao advogado pagar a primeira de quatro prestações de sua defesa.

No mesmo recebeu ligação de um fotógrafo, amigo dos tempos do jornalismo. Queixou-se: “Nunca senti tanta dor na vida”. O amigo conta que chorou ao ouvir o tom de voz do reitor.

Para outro amigo, queixava-se da vergonha que sentia. Da humilhação de “ser inocente” e o dramático “não poder provar”.

Sandálias da humildade

Reclamou das delações, mas não falou em revanche.

Lembrou que ele mesmo tinha votado no corregedor para aquele cargo. Pedia pro pessoal esquecer e aguardar sua defesa.

Estóico, recusava-se a criticar os colegas que o imolaram, ficando no limite de negar as acusações, dando uma lição de humildade.

Para um professor de engenharia que foi ao enterro ele dissera que “doeu” e que “não adiantava lutar”.

O certo é que Cau ia ficar sangrando em praça pública enquanto a PF cozinhasse a orcrim em banho maria – lembremos que a última grande operação federal em Floripa, um baita crime ambiental, levou mais de 10 anos pra dar em pizza.

Qualquer um desanimaria, né?

Seu último gesto parece ter sido decisão só dele, a ninguém comunicada.

Na segunda, sozinho, caminhou até a praça pra esperar o shopping abrir.

Uma vez com a decisão tomada, o fim foi rápido.

Cau pulou do piso Campeche, para entrar de vez na história de Floripa.

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