José Isaías Venera
Contra o Preconceito 04/Jul/2017 às 14:02 COMENTÁRIOS
Contra o Preconceito

Da fantasia de “favelados do Rio de Janeiro” ao cinismo nas escolas

José Isaías Venera José Isaías Venera
Publicado em 04 Jul, 2017 às 14h02

A racionalidade cínica já faz parte do currículo escolar. Professor universitário faz análise social sobre o caso da fantasia de favelados do Rio de Janeiro, de uma escola de Itajaí, Santa Catarina

fantasia de favelado rio de janeiro

por José Isaías Venera*

A racionalidade cínica já faz parte do currículo escolar. O evento mais recente, mas não o primeiro: um comunicado de um colégio particular aos pais convocando alunos da 4ª série a se fantasiarem de favelados do Rio de Janeiro para a Festa da Integração. Mais um evento do sul do país, desta vez em Itajaí (SC), do Colégio Cenecista Pedro Antônio Fayal, que pertence a uma rede de ensino em âmbito nacional – a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC). O caso ganhou visibilidade na última quarta-feira, 28, no Facebook de Willian Domingues, pai de um dos alunos.

A poucos dias de completar um ano da polêmica festa “Se nada der certo” – em duas escolas confessionais do Rio Grande do Sul, uma de Novo Hamburgo e outra de Porto Alegre, quando alunos do 3º ano se fantasiaram de garis, faxineiras, vendedores, presidiários -, não teríamos a repetição desse mesmo gesto? Se nada der certo, iremos para a favela, sairemos de nossas escolas particulares, dos apartamentos confortáveis, deixaremos de ir aos shoppings e de andar de carros com os vidros fechados para não sentir o cheiro do lado de fora. É certo que, no caso mais recente, temos somente uma intenção materializada em um bilhete, podendo, aqui em esforço imaginativo, os professores surpreenderem seus alunos em uma suposta desconstrução de estereótipos.

Dessa vez, a polêmica em torno de uma postura cínica – pela naturalização do estereótipo de favelado – atingiu um colégio que tem sua origem, em 1962, ligada a líderes sindicais, com passagem por movimentos comunistas, resistência, posteriormente à fundação, à ditadura militar e de combate à perversidade do capitalismo. Localizado na Vila Operária, o Colégio divulgou nota de desculpas pelo bilhete equivocado, no qual reconhece a “inadequação de uma frase descontextualizada”, afirmando que não tinham intensão de “criar estereótipos”. A contextualização foi apresentada pela proposta baseada na “canção ‘Alagados’ do grupo Paralamas do Sucesso, onde é citada a Favela da Maré”.

O acontecimento realça a tese do psicanalista Christian Dunker sobre o Brasil contemporâneo, que cada vez mais se fecha entre muros, estruturando o imaginário social, no qual o sujeito, ao sentir-se seguro no seu mundo privado, apenas espia as mazelas econômicas e a ausência do Estado sem se implicar com a sociedade. Não foi exatamente isso a proposta do colégio, a partir de uma canção, espiar o que está fora da realidade de seus alunos justificando como contextualização?

Do lado de fora dos muros, surge, no imaginário enquadrado pelos dispositivos de saber- poder, o bárbaro, aquele que não aceita a lei, a justiça e as práticas de um Estado que fomenta a desigualdade social. Contudo, como o “bárbaro”, que compõe o país, se integra no imaginário dos integrados, destes que se fecham entre muros de escolas privadas tradicionais (é claro que Willian nos mostra que se pode ocupar estes espaços de forma crítica)? Até então, o mais conhecido era fantasiar as crianças de índios, mas, agora, também, de favelado, de gari, de atendente do McDonald’s.

O comunicado destaca a indumentária que deverá compor a representação do parque de estereótipos que a escola se transformará no dia da Festa da Integração. “O figurino para a nossa apresentação na Festa da Integração será: (…) FAVELADO DO RIO DE JANEIRO”. Como diz o ditado, o diabo está nos detalhes. O nome da festa funciona como um enunciado que regula toda fantasia da sociedade cínica. Integrar significa que alguma coisa de fora passará a fazer parte do grupo. No entanto, em tempo que se vende café descafeinado, leite de soja, tic tac sabor pipoca etc., o que passará a integrar será somente uma fantasia distorcida, nunca o que de fato está no lado de lá. É como nas fotos que circularam na época da festa “Se nada der certo”, quando adolescentes se vestiam de faxineiras sex alimentando o fetiche de jovens fantasiados de garis másculos.

A fantasia de quem espia o mundo por cima dos muros de seus condomínios ou da tela de seus smartphones não é apenas, nesse caso, de simular um favelado a partir de seu imaginário, mas, bem ao contrário, efetivar uma espécie de limpeza do que permanece como incômodo em sua moral simplista e maniqueísta, algo que podemos ver colocada em prática na prefeitura de São Paulo, no movimento de criminalizar dependentes químicos e moradores da Cracolândia, eliminando os “estorvos” para abrir caminho para o mercado em áreas valorizadas.

Sociedade cínica

Não é de hoje a interpretação de que vivemos em uma sociedade cínica (tese de Vladimir Safatle), na qual as pessoas viveriam uma estranha posição subjetiva de ironizar todas asrelações sociais como sendo fonte perpétua de seu gozo. Quando estereótipos são reproduzidos de forma naturalizada, o cinismo adquire uma dimensão estrutural, não podendo recair à crítica ao indivíduo – este, ao contrário, apenas expressa o que está imanente na sociedade. Alia-se a esse traço predominante das relações sociais a retirada do núcleo interno das mercadorias em nome da saúde, mas muito bem fetichizada pela lógica do mercado, como no já citado café descafeinado. Temos com este par – cinismo (relações sociais) e simulação (simulacros de produtos) – o culto à desumanização que desancora a energia do sujeito de todas as referências, deixando à deriva qualquer projeto de sociedade. O imperativo na sociedade cínica é, sempre, o mercado, tornando-se excluído aqueles que não tem capital para consumir. Estes passam a ser os “bárbaros”. Por outro lado, a convocação do mercado para os sujeitos é que gozem ininterruptamente, como na convocação do colégio Fayal, ou por meio da notícia sobre a operação policial feita na favela tal que resultou em um número X de mortos, ou, ainda, na satisfação de ver a capa da Veja que traz uma foto chocante etc.

Se o mercado é que dita as regras do jogo, não é de estranhar que muitos estereótipos sejam reproduzidos sem uma ação docente reflexiva, muitas vezes por falta de formação continuado em uma perspectiva crítica. Ao contrário, o que parece se mais recorrente são palestras de coaching pensadas para empresas com intuito motivacional, o que constitui a própria reprodução do cinismo em ambientes escolares.

As mazelas funcionam como o resto não simbolizado de uma sociedade que não consegue realizar suas fantasias, mas os integrados gozam imaginando que os favelados, garis, faxineiras etc. sonham em ter seu status.

O real atravessa a realidade

Fora dos muros, a favela é real. Não há dúvida. Quando Willian questiona “desde quando favela é fantasia?”, sobre a pobre dicotomia feita pelo colégio de que, de um lado, teriam os médicos, advogados e empresários, e, de outro, os favelados, ele expõe o mal-estar dessa sociedade cínica. Entretanto, o real que precisamos operar aqui nos afeta por outros caminhos. O real como aquilo que nunca se integra à fantasia daqueles enquadrados entre muros, mas, ao mesmo tempo, é o motor dos estereótipos. A favela assim é o motor do desejo de uma sociedade conservadora e reacionária, incapaz de simbolizar outras formas de vida, por isso mesmo são repetidos sempre os mesmos estereótipos para que, assim, possam encontrar sentido às suas vidas pobres de experiência e subjugadas aos ditames do mercado.

O estereótipo tem esta função de criar uma caricatura de uma realidade que diz mais respeito ao caricaturista do que ao caricaturado. Nos conglomerados da mídia, essa lógica tem uma importante função: servir de reconhecimento imediato. O reconhecimento dá-se pela pobreza de informações e pela repetição. Não é de hoje que telenovelas, filmes e jornais repetem sempre as mesmas estruturas narrativas sobre as favelas. Contudo, como questiona Willian: “Desde quando favelado é fantasia?”.

*José Isaías Venera é Jornalista e professor universitário

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