Episódio histórico: O dia em que Graciliano Ramos reprovou um livro de Guimarães Rosa
Publicado em 30 Out, 2011 às 15h16
Por Urariano Mota
Abaixo, Graciliano explica o seu julgamento em linhas jamais contestadas por Guimarães Rosa

O fato é que, em 1937, Rosa escreveu a primeira versão de Sagarana, que então possuía o nome simples de Contos, e o inscreveu sob pseudônimo de Viator (que nome!) no prêmio Humberto de Campos.
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Em 1938, na última sessão de julgamento, o corpo de jurados se dividiu entre dois concorrentes. Um finalista era Maria Perigosa, de Luis Jardim, outro, o Contos, de Guimarães Rosa. Graciliano Ramos, presidente do júri, deu o voto de desempate, em favor de Maria Perigosa, por razões que veremos a seguir.
Antes que os fervorosos de Rosa apedrejem Graciliano, é bom saber que o Sagarana apresentado ao concurso de contos não era o mesmo livro publicado muitos anos depois. Transcrevo as palavras do mestre de todos os escritores brasileiros, que explica o seu julgamento em linhas jamais contestadas por Guimarães Rosa:
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“Aborrecendo-me assim, abri um cartapácio de quinhentas páginas grandes: uma dúzia de contos enormes, assinados por certo Viator, que ninguém presumia quem fosse. Em tais casos rogamos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir ao fim. Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: montanhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente feitiço, a patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável, dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho Bembém. Por outro lado enjoei um doutor impossível, feito cavador de enxada, o namoro de um engenheiro com uma professorinha e passagens que me sugeriam propaganda de soro antiofídico…
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Em fim de 1944, Ildefonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa. –
— O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
— Como era o seu pseudônimo?
— Viator.
— Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.
Ildefonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada.
— Sabe que votei contra o seu livro?
— Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica. […]
Vejo agora, relendo Sagarana, que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance”.
(Conversa de Bastidores)
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E concluo rápido, para situar o mestre e julgador Graciliano Ramos.
Erros de avaliação possuem casos que fizeram história na literatura. Podemos lembrar precedentes mais graves e ilustres que a rejeição a Sagarana. Como, por exemplo, a de André Gide aos originais de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Ou mesmo a miopia de Lukács em ver o gênio fundamental de Kafka. Mas nem por isso devemos crer que todas as recusas a obras-primas do mundo se reuniram para coroar a recusa de Graciliano Ramos a Guimarães Rosa. Nisso haveria um pouco de excesso, digamos. Sagarana deve ser um pouco menor que A Metamorfose, A Colônia Penal, ou Sodoma e Gomorra.
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Nos limites de nossa experiência, no gancho do nascimento de Graciliano Ramos, preferimos chamar a atenção para um livro e autor que cresceram anos depois da leitura honesta do seu julgador. O juiz, autor clássico de Memórias do Cárcere, se achava em posição impossível de melhor avaliação. Seria como, se nos permitem uma comparação plebeia, julgar Pelé o maior jogador do mundo quando ele possuía apenas 13 anos. Antes, portanto, que ele pudesse escrever obras mais belas que Sagarana. Ele, Pelé, queremos dizer. Com o devido respeito à glória de Guimarães Rosa.
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