UM PROJETO DE PODER COM PRAZO DE VALIDADE

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
A partir da constituição de 1988, uma nova formulação de nação foi entronizada nos projetos diversos que buscavam por um mundo depurado dos perigos anti democráticos que a experiência militar havia proporcionado.
A constituição cidadã haveria de ser frutifica e longeva em sua determinação democrática.
Afinal, essa nova perspectiva do futuro cobria todo um espectro naquele presente. Desde os modelos de família até a construção de uma personalidade de poder híbrida o suficiente para não gerar dúvidas quanto ao objetivo. Mas tudo deveria se acomodar de modo a permitir que diferentes correntes de pensamento tivessem acesso aos estatutos do novo poder, pois que seria esse um novo poder, em tudo diverso das velhas fórmulas duras que o passado recente demonstrou.
Metaforicamente, como a república velha foi superada pelo estado novo, a nova democracia seria uma barragem contra a ditadura. E da mesma forma que se construia o passado nos anos 30, nos anos 90 também o passado foi revigorado para poder sustentar aquele presente auspicioso.
República velha – estado novo, ditadura – democracia, o binômio da antinomia marcando a história derrotada e a história vencedora.
Pouco importava que os militares tenham construído as bases da urbanização e do desenvolvimentismo, que tenham investido no parque industrial de empresas de TV e de empresas jornalísticas e culturais, dentre muitos outros movimentos, como a formação de uma classe média consistente, o que importava a esse novo momento era o catálogo estampado de ditadura. Existem discursos que bem alinhavados se tornam verdades, pois à frente, só democracia inquestionável. A palavra mágica que tudo resolve.
O que essas elites têm em comum é um senso moral ilibado, consistente com seu conhecimento de um cânone vertebral que se estende ao século XV e vêm se desdobrando em princípios genéticos, conquista de legitimidade, de atributos jurídicos e portadores de um direito positivo, tudo isso aliado a uma forma cultural superior, vinculada a aspectos elitistas muito superficiais.
O termo ‘elite’ começou a ser empregado no século XVII (especificamente na França) designando produtos de qualidade excepcional, a ‘nata’ das mercadorias oferecidas à venda.
Max Weber teceu um conceito de elite que correspondia a esse fundamento, defendendo que a partir do uso das ações sociais, os indivíduos poderiam modificar a sociedade, a política, as relações sociais e as organizações institucionais e governamentais.
Podemos dizer que o projeto de nação que as elites culturais implementaram a partir da constituição cidadã tinha fundamento nesse princípio weberiano.
Dessa forma, expropriavam o significado de luta de classes, tão caro às esquerdas tradicionais, superando as dicotomias típicas da guerra fria.
Claro está que essa visão de mundo aplicada por aqui considerava que o povo não tinha como exercer diretamente sua vontade, carecendo dos interlocutores da elite cultural.
Em Max Weber, o conceito de “povo” não é definido de forma fixa, mas sim como um grupo social com características comuns, como identidade cultural, língua, território, e, principalmente, uma comunidade de ação política. Weber diferencia o “povo” de outras categorias como “nação” ou “população”, enfatizando a dimensão da ação coletiva e da organização em direção a objetivos comuns como elementos centrais.
Mas essa característica conceitual existia considerando a peculiar inércia do povo, incapaz de gerar força política além daquela reservada às elites culturais, que inclusive incluía certos elementos populares.
Essa posição anulava, aparentemente, tanto a força motriz dos adeptos da revolução quanto a força sempre presente de golpes de estado dos fardados garantidores da nação cuja experiência recente demonstrava exatamente a incapacidade de gerir políticas conciliatórias, o que estava longe de ver um fato. Mas importa mais do controle das narrativas do que fatos.
As elites culturais dominaram então todo espectro da nova realidade como se fora uma nova república, alimentando a coisa pública com coerência e normalidade. Era um pacto pelo futuro. Mas nesse pacto havia muito do inapropriado conceito de massa de manobra.
“Massa de manobra” refere-se a um grupo de pessoas que são facilmente influenciadas ou manipuladas por líderes ou organizações para atingir determinados objetivos, geralmente com interesses próprios. Essas pessoas podem perder sua individualidade e autonomia, agindo como um bloco uniforme, sem discernimento crítico sobre as ações que estão realizando. Em outras palavras, a expressão descreve uma situação em que um grupo de indivíduos é usado como ferramenta ou instrumento por outras pessoas ou entidades para alcançar seus propósitos, muitas vezes sem que essas pessoas tenham plena consciência ou controle sobre suas ações.
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Ao popular estava reservado atividades culturais diversas, num aparente aumento da importância de sua participação.
Até que essa condição de reserva de segunda categoria para a maior parte da população explodiu em revolta.
O que começou com um protesto em São Paulo da partir de um grupo em oposição ao aumento da passagem de ônibus transformou-se em um movimento nacional de protesto contra as prioridades do governo em face da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.
O país foi inundado por manifestações com centenas de milhares de pessoas participando da que está sendo chamada de Revolta do Vinagre, devido ao fato de que os manifestantes começaram a usar roupas encharcadas de vinagre como proteção contra as bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia para dispersar a multidão em 13 de junho de 2013.
Na maior concentração do movimento até ao momento, mais de um milhão de pessoas tomaram as ruas de grandes e pequenas cidades de todo o Brasil a 21 de junho de 2013. Durante os protestos um jovem morreu depois de ter sido atropelado por um carro em Ribeirão Preto e dezenas de pessoas ficaram feridas em confrontos com a polícia em Brasília, no Rio de Janeiro e em Salvador.
Desde o início do ano que têm tomado lugar vários protestos contra a inflação da tarifa de ônibus e a desadequação do transporte público no país, mas as últimas manifestações alcançaram uma maior força e coordenação. Com o início da Taça das Confederações, um evento que acontece antes da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, os manifestantes saem às ruas para demonstrarem o seu descontentamento com a infraestrutura do país e a imensa quantia de dinheiros públicos gasta em mega-eventos desportivos.
Algumas pessoas temem que o movimento de massas seja tomado por partidos políticos ou pela extrema direita no país. Outros identificam indícios de nacionalismo no movimento e temem que isso desencoraje o debate político. Mas o fato é que os brasileiros estão a ocupar as ruas com revolta contra o governo e uma desconfiança profunda face ao sistema político atual.
Notícia retirada do jornal Global Voices e que revela o momento em que o popular se insurge contra as elites culturais ainda de modo difuso, mas determinado.
Embora o controle do evento tenha sido bem sucedido, a onda popular se estenderia até a eleição de Bolsonaro. Todas as instâncias das elites se uniram então contra a insurgência popular numas convergências entre todos os poderes para reverter a onda.
A volta de Lula não foi suficiente para essa correção e estamos vendo as elites culturais expressando explicitamente seu horror ao estatuto popular, com termos como extrema direita, bancada da bala, fascistas, força evangélica dentre outros.
No exato momento em que escrevo essa crônica, a primeira dama do governo se insurge contra o sertanejo avisando que o Brasil mudou definitivamente e essas velhas manifestações da cultura já não deveriam mais existir. Outros artistas também ressurgem, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, atentos defensores pertencentes à elite cultural. Mas também o cientista mais renomado do país, Miguel Nicolelis se junta às vozes bem pensantes para condenar o atraso, o negacionismo, a ignorância.
Os novos valores da cultura woke invadem as emissoras do pacto, mas não atingem a população que se voltam para as redes que sofrem ameaças dos poderes estabelecidos de censura e obliteração.
É impossível fazer qualquer exercício de futurologia aos moldes de Alvim Toffler e sua terceira onda, mas um fato já podemos perceber: o pacto das elites culturais está severamente ameaçado e novos pactos precisarão de entronização.
Viver nesse tempo é um grande feito para a inteligência investigativa, pois são muitas as camadas que se sobrepõem alterando a cada dia a imagem fragmentária.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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