Delmar Bertuol
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Colunistas 14/Nov/2025 às 14:21 COMENTÁRIOS
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APELO DE UM PIVETE

Delmar Bertuol Delmar Bertuol
Publicado em 14 Nov, 2025 às 14h21

<span style=”color: #808080;”>Delmar Bertuol*, <a style=”color: #808080;” href=”https://www.pragmatismopolitico.com.br/” target=”_blank” rel=”noopener noreferrer”>Pragmatismo Político</a></span>

Báti em nóis não, seu Sargento. Tamu só brincando. Se divertindo na imundice da sarjeta, caçando rato e bituca de cigarro. A gente compete. Quem mata mais rato, quem ajunta mais bituca que ainda tenha tragada e quem consegue mais moeda. O senhor tem uma moedinha? Não é pra bebê, não, senhor.

Escola não fumo não, senhor. Só o Zé Sujo é que foi até o quarto ano.

-Ô, Zé Sujo, vem lê alguma coisa aqui pro moço. É só que tu sabe, diabo.

O Zé Sujo fugiu de casa. Apanhava da mãe e do padrasto. Quando não era dum, era d’outro. Veio aqui pra rua, onde continua apanhando, mas pelo menos tem liberdade. Pena que garrô o vício do crack. Mas lê que é um bacharel.

-Ô, Zé Sujo, mostre ao homi que tu lê placa, demônio.

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Bati em nóis não, senhor. Nóis robamu, mas foi coisa poca. Não machuquemo nem mesmo ameaçemo ninguém não, senhor. Não criemo caso. Nóis devolvemo o furto.

Já que o senhor insiste e é sabido, falemo a verdade. Ia comprá uma barrigudinha com o dinheiro. Mas nóis não é cachaceiro porque qué. Primeiro a gente toma pra enganá o estômago. É, pois eu não sei se o senhor sabe. Acho que não deve sabê, pois tá bem gordinho, sem querê lh’ofende. Mas a fome dói aqui na barriga da gente. Eu, quando tô de fome, tenho até vontade de chorá, mas não consigo, tão fraco que fico. Além do quê, chorá exige esforço, o que me daria mais fome ainda. O senhor chora? Eu choro, vez em quando. Chorá é bom. Parece que ajuda a aliviá a outra dor, a da tristeza. O senhor fica triste, vez em quando?

Mas como eu ia lha falando. A gente começa tomando um golinho de pinga pra burlá a barriga roncadeira. Mas daí é inevitável: garra vício num dali a pouquinho. O senhor não toma nada de álcool? Pela barriga, deve tomá cerveja, nénão?

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Ah, eu me criei foi na rua mesmo, obrigado por perguntá. Meu pai eu desconheço. E minha mãe já é falecida. Mataram ela num tiro a queima roupa. Ela não me botô na escola, como eu já lha relatei. Nem me ensinou muita coisa, não, senhor. Só me ensinô o obrigado, qué pra não perdê próxima oportunidade. A cada moedinha ganhada, tem que dizê o obrigado, módi ganhar de novo. E lhe dô um obrigado bem forte se o senhor não nos levá preso, viu? Ah, e mais outra vez, obrigado por perguntá de mim.

Aqui é todo mundo meio assim, largado. O único deus que nos protege é o ao deus-dará, que é como a gente vive. Eu até queria tê ido na escola. O Zé Sujo falô que lá, na escola, às veiz vai doutor de corpo e doutor de dente. Eu tô com um dente doído aqui que chego a vê estrela. Acho que o certo era eu í no médico que cuida de dente, prêle rancá fora essa desgraça. Mas fedido assim como tô, que banho a gente só toma no chafariz da praça – e, mesmo assim, bem ligero, pois se o guarda vê, é cassetada -, pois então, malcheiroso assim, ninguém não deixa eu entrá lá no postinho. E qual é o remédio pra dor? É pinga. Tomo uns trêis ou quatro talagaço e já nem sinto nada. Aí dô risada à toa. Crack eu não uso não, senhor. Tem uns aqui que usa. Às veiz usam tanto, ficam tão mal, que vem a ambulância ou a polícia e larga o infeliz lá no postinho. Mas daí, como chega de viatura, as moça de jaleco tem que atendê eles, fedidos e tudo o mais.

O Zé Sujo fuma crack. Tem dia que usa tanto, que nem consegue lê, o desinfeliz. Que o Zé Sujo sabe lê, eu lha falei já. Qué vê, só?

-Ô, Zé Sujo, venha logo, animal. O seu polícia qué vê tu dizê leitura.

Não tem como o senhor dá mais uma chance pra nóis? Nóis devolve o dinheiro, que nem foi tanto assim que peguemo. Leva nóis preso não, senhor. Dexa nóis aqui que nóis sêmo diferenciado. Nóis sêmo um grupo de selecionados. O seleto grupo dos não seletos.

 

Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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