APELO DE UM PIVETE
Báti em nóis não, seu Sargento. Tamu só brincando. Se divertindo na imundice da sarjeta, caçando rato e bituca de cigarro. A gente compete. Quem mata mais rato, quem ajunta mais bituca que ainda tenha tragada e quem consegue mais moeda. O senhor tem uma moedinha? Não é pra bebê, não, senhor.
Escola não fumo não, senhor. Só o Zé Sujo é que foi até o quarto ano.
-Ô, Zé Sujo, vem lê alguma coisa aqui pro moço. É só que tu sabe, diabo.
O Zé Sujo fugiu de casa. Apanhava da mãe e do padrasto. Quando não era dum, era d’outro. Veio aqui pra rua, onde continua apanhando, mas pelo menos tem liberdade. Pena que garrô o vício do crack. Mas lê que é um bacharel.
-Ô, Zé Sujo, mostre ao homi que tu lê placa, demônio.
Bati em nóis não, senhor. Nóis robamu, mas foi coisa poca. Não machuquemo nem mesmo ameaçemo ninguém não, senhor. Não criemo caso. Nóis devolvemo o furto.
Já que o senhor insiste e é sabido, falemo a verdade. Ia comprá uma barrigudinha com o dinheiro. Mas nóis não é cachaceiro porque qué. Primeiro a gente toma pra enganá o estômago. É, pois eu não sei se o senhor sabe. Acho que não deve sabê, pois tá bem gordinho, sem querê lh’ofende. Mas a fome dói aqui na barriga da gente. Eu, quando tô de fome, tenho até vontade de chorá, mas não consigo, tão fraco que fico. Além do quê, chorá exige esforço, o que me daria mais fome ainda. O senhor chora? Eu choro, vez em quando. Chorá é bom. Parece que ajuda a aliviá a outra dor, a da tristeza. O senhor fica triste, vez em quando?
Mas como eu ia lha falando. A gente começa tomando um golinho de pinga pra burlá a barriga roncadeira. Mas daí é inevitável: garra vício num dali a pouquinho. O senhor não toma nada de álcool? Pela barriga, deve tomá cerveja, nénão?

Ah, eu me criei foi na rua mesmo, obrigado por perguntá. Meu pai eu desconheço. E minha mãe já é falecida. Mataram ela num tiro a queima roupa. Ela não me botô na escola, como eu já lha relatei. Nem me ensinou muita coisa, não, senhor. Só me ensinô o obrigado, qué pra não perdê próxima oportunidade. A cada moedinha ganhada, tem que dizê o obrigado, módi ganhar de novo. E lhe dô um obrigado bem forte se o senhor não nos levá preso, viu? Ah, e mais outra vez, obrigado por perguntá de mim.
Aqui é todo mundo meio assim, largado. O único deus que nos protege é o ao deus-dará, que é como a gente vive. Eu até queria tê ido na escola. O Zé Sujo falô que lá, na escola, às veiz vai doutor de corpo e doutor de dente. Eu tô com um dente doído aqui que chego a vê estrela. Acho que o certo era eu í no médico que cuida de dente, prêle rancá fora essa desgraça. Mas fedido assim como tô, que banho a gente só toma no chafariz da praça – e, mesmo assim, bem ligero, pois se o guarda vê, é cassetada -, pois então, malcheiroso assim, ninguém não deixa eu entrá lá no postinho. E qual é o remédio pra dor? É pinga. Tomo uns trêis ou quatro talagaço e já nem sinto nada. Aí dô risada à toa. Crack eu não uso não, senhor. Tem uns aqui que usa. Às veiz usam tanto, ficam tão mal, que vem a ambulância ou a polícia e larga o infeliz lá no postinho. Mas daí, como chega de viatura, as moça de jaleco tem que atendê eles, fedidos e tudo o mais.
O Zé Sujo fuma crack. Tem dia que usa tanto, que nem consegue lê, o desinfeliz. Que o Zé Sujo sabe lê, eu lha falei já. Qué vê, só?
-Ô, Zé Sujo, venha logo, animal. O seu polícia qué vê tu dizê leitura.
Não tem como o senhor dá mais uma chance pra nóis? Nóis devolve o dinheiro, que nem foi tanto assim que peguemo. Leva nóis preso não, senhor. Dexa nóis aqui que nóis sêmo diferenciado. Nóis sêmo um grupo de selecionados. O seleto grupo dos não seletos.
Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”