Delmar Bertuol
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Ditadura Militar 19/Mar/2024 às 08:25 COMENTÁRIOS
Ditadura Militar

Eu Ditador

Delmar Bertuol Delmar Bertuol
Publicado em 19 Mar, 2024 às 08h25

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Sou contra todo e qualquer tipo de tirania, absolutismo e até mesmo monarquia. Quero ter o direito de escolher. Entre um ditador de esquerda e um democrata de direita, fico com o último. Já me mandaram diversas vezes, depois de uma acusação de comunista, voltar pra Cuba. Não posso voltar. Nunca fui pra lá. E outra, por premissa, não defendo o regime cubano. Cobrem de quem o faz. Por melhor que seja um sistema, ele não pode cercear a liberdade de sair dele.

Na verdade, devo corrigir o parágrafo acima. Não sou contra toda a forma de ditadura. Eu aceitaria ser ditador do Brasil, se os meus seguidores assim o desejassem. Talvez o “aceitaria” seja sonso de minha parte. Acho mesmo que carrego um egocêntrico desejo de ditar as regras e ações do País. De pôr em prática aquilo que eu julgo o melhor para todos. Esse, afinal, é o pensamento de todos os ditadores. Eles realmente acreditam que estão fazendo o melhor pra seu povo. Sempre se equivocaram. Mas eu sou diferente.

Eu iria contar com o apoio de generais e outros membros do alto oficialato das Forças Armadas. Eu só precisaria arrebatar seguidores e fazer amizades com altos oficiais das Forças Armadas brasileiras.

Vencida a primeira etapa, era marcar as reuniões. Como todo golpista, eu estaria desprovido de noção e, num misto de burrice com certeza de impunidade, mandaria meu Ajudante de Ordens gravar as reuniões.

É que eu sou um absolutista da época do Absolutismo, sou um iluminista. Sou um déspota esclarecido. Os ditadores (ou candidatos a) de hoje em dia são muito medíocres e, paradoxo, antiquados. Os golpistas de esquerda querem acabar com a opressão capitalista impondo uma opressão de estado; já os golpistas de direita não conseguiram ainda melhor discurso e prometem defender a população que tem carro financiado dos horrores do comunismo, que eles não sabem bem o que é, mas envolve tirar a casa da praia das pessoas. Aqueles que não têm casa na praia se sentem ameaçados.

Embora eu seja de esquerda, não compro o pacote completo da ideologia (aliás, uma das minhas medidas vai ser proibir as vendas casadas, sobretudo em instituições financeiras. Sei que já é proibido, mas os bancos burlam a lei maquiando as taxas de juros). Não esperem de mim, camaradas, que eu ataque o sistema financeiro; nem muito menos defenda o comunismo. O pretenso comunismo implantado em alguns lugares do mundo não é o utópico e é injusto; e o comunismo utópico é igualmente injusto. Injusto por injusto, fico com o capitalismo, que pelo menos se assume como desigual, não carregando a pecha de hipócrita.

Sim, eis um ditador de esquerda defendendo o capitalismo. Mas se acalmem. Sou um ditador. Como todo o ditador, vos digo novamente: todas as minhas decisões serão pelo bem da maioria (a minoria que se curve a nós) e visam, no final, à democracia plena, à verdadeira justiça social. Então, sim, meus fieis seguidores, acredito que possamos viver num capitalismo mais humanitário, menos desigual, com amplo acesso aos bens urgentes e de primeira necessidade como ao lazer. É como diz aquela música d’Os Titãs: “a gente não quer só comida / a gente quer comida / diversão / e arte”. E por falar em música, vou proibir os fânquis apelativos nas rádios abertas. Ah, também proibirei o excesso de estrangeirismos. Não sei como o pessoal da Administração ira nomear as suas ações a partir disso. Terão que ser mais criativos e consultar as possibilidades do nosso vernáculo, em decisões tomadas em encontros de netiuorqui.

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Eu ainda não tenho uma minuta do golpe porque, como disse, falta-me os seguidores e uns amigos do alto escalão das armas, mas já fiz uns rascunhos de decreto, cujas cópias se encontram sabiamente espalhadas em alguns lugares.

No Decreto 01, estabelecerei que o tamanho médio do pênis dos brasileiros vai diminuir. Tamanho não é documento, como eu espero que as mulheres acreditem. Mas, em sendo, que o meu esteja pelo menos um centímetro acima da média.

Por falar em tamanho de pênis, vou diminuir os impostos das Hilux 4X4 para a população masculina urbana. Aqueles que, mesmo com o Decreto 01 ainda não alcançarem o mínimo doravante normatizado terão descontos especiais.

Também será proibido rebaixar os autos. Donos de carros apreendidos em desacordo com a norma ganharão um CD do Djavan e uma coleção de Hot Wheels, pra aprenderem que existe música além do tâtis-tâtis e que trânsito é para se deslocar e aumentar a sensação de virilidade com os sedãs dois-ponto-zero, não para brincar de carrinho.

Embora cês já tenham percebido que é possível que eu tenha problemas com minha masculinidade, vou proibir a licença de posse de armas para colecionadores. Apesar de minha ditadura não querer se envolver nos costumes pessoais, colecionar armas é literalmente uma aberração. Eles que vão colecionar selos, moedas ou Tazos da Elma Chips. Até carteira de cigarros é mais saudável do que armas.

Ainda sobre esse assunto, é proibido questionar a masculinidade deste Líder. Sou imbrochavel!

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(Imagem: Manifestação contra a ditadura militar | Wikimedia)

Pra provar o caráter democrático da minha ditadura, não fecharei o Congresso Nacional. Mais do que isso, vou incentivar que os legisladores discutam (com seriedade) alguns temas. O aborto será amplamente discutido. Mas só poderão discursar nas tribunas das comissões e do Plenário mulheres e membros da comunidade científica. Fica garantido, no entanto, desde já, que, em aprovado, o aborto será opcional, nunca obrigatório. Prometo isso para tranquilizar parte dos religiosos, que não participará das discussões.

Sim, no meu governo, está garantida a liberdade religiosa, cujas crenças também terão caráter opcional.

E, por falar em religião, vou falar de ciência: obrigarei os pesquisadores brasileiros a deixarem de lado a cura ou remédio de doenças e se debrucem na elaboração de uma fórmula de cerveja que não dê ressaca.

Como citei, sou um iluminista moderno deslocado neste medieval século XXI. Defendo a ampla liberdade individual até o limite da liberdade do outro. Não vai interessar pro estado a orientação sexual do cidadão. Não importa a ninguém com quem o indivíduo faz sexo. Contudo, aqueles que não fazem sexo e comprovadamente enchem o saco dos outros por causa disso serão obrigados a baixar o Tinder.

Pelo bom andamento do nosso estado democrático de direito, terei que intervir no STF. Um professor da faculdade, ao explicar a função desse Tribunal, defendeu que acima dos onze ministros só Deus. Não posso permitir isso. Doravante, quando brigarem em Plenário, não poderão utilizar pronome de tratamento com o colega ofendido. Eles realmente se acham superiores a todos ao chamar o colega de Vossa Excelência antes de insultá-lo com um impublicável xingamento não por ser de baixo calão, mas por ter linguagem rebuscada e ninguém entender o significado da ofensa. Se é pra ter barraco, que tirem as togas e baixem o nível do palavreado. Se até nas melhores literaturas têm palavrão, por que os juízes do alto escalão têm o pedantismo de se xingarem em latim, porra?

Por falar em linguagem inadequada, minha biografia será leitura obrigatória no Ensino Médio. O Ministério da Cultura (sim, ele existirá) obrigará o Tenório a escrevê-la. E ele que cuide com as palavras. Não vou aceitar que meu livro tenha menos palavrões do que O Avesso da Pele. A boa literatura tem que ser reflexiva, sem melindre e até transgressora. E não é para agradar as professoras saudosas da Educação Moral e Cívica. Aliás, ditaduras são mais facilmente implementadas em nações que não consomem bons livros.

Por falar em Literatura, até que se prove o contrário, embora aquele paspalho merecesse, Capitu não traiu Bentinho.

Para desespero histérico dos lojistas, está garantido que todos os meses tenha pelo menos um feriado que caia num dia útil. Também o carnaval vai durar uma semana (e está extinta a discussão “gosto X não gosto de carnaval”). Ainda sobre isso, as férias dos trabalhadores será de trinta dias úteis.

No mesmo assunto de direitos trabalhistas: as mães da iniciativa privada também terão seis meses de licença gestante (tempo mínimo do aleitamento materno). A pedido da mãe, poderá a licença paternidade ser estendida por mais trinta dias. Exatamente, a requerimento da mãe. De nada adianta o pai estar em casa, mas não ajudar e ainda postar foto nos stories como se fizesse muita coisa, quando na verdade passa o dia em sites de apostas de esportes.

No meu governo, militares não poderão se candidatar. Jovem, o cara já tem que se decidir. Se quer prestar concurso pra AMAN, saiba que, quando chegar ao coronelato, não poderá tentar vaga na Câmara. Se gosta da tribuna, no entanto, que se filie ao PMDB e tente desde cedo a vereança. P.S. Este artigo não inclui o suporte e participação no meu golpe.

Se por acaso eu for traído por algum dos meus, depois de frustrado o golpe por causa dalgum cagão, numa delação premiada ou o que o valha, alegarei perseguição política. E conclamarei meus seguidores a cantar hino pra pneu, pedir ajuda a ETs, se pendurar em caminhão ou lotar uma avenida no domingo.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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