Eduardo Bonzatto
Colunista
Política 27/Fev/2023 às 19:30 COMENTÁRIOS
Política

DOGMA

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 27 Fev, 2023 às 19h30

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Dogma é princípio que se convenciona não discutir e, muitas vezes, que não se aceita discussão. Uma doutrina dogmática é um sistema oficial de princípios que devem ser aceitos tais como são, sem discussão.
Embora se imagine que o dogma é basicamente religioso, sua propagação atingiu todos os aspectos da percepção e avança com passos largos para regulações que acometem a sociabilidade em níveis cada vez mais profundos.
Nesse sentido, o formato da terra, a teoria da evolução, a gravidade, a desigualdade social, as hierarquias sociais, cada um dos elementos que orientam nossa percepção da realidade é um dogma, portanto indiscutível.
Qualquer um que ouse discordar dessas verdades universais será cancelado, ridicularizado, exilado e seu nome será riscado da aceitação que os grupos definem como adequados a participar da vida comum.
O meio acadêmico, certamente, é o mais dogmático e emite seus sinais de adequações e pertencimentos rotineiramente. Como reproduz as mesmas cátedras, independente da área a que pertence, é um mundo restrito em suas bases, mas que influencia muito amplamente.
Todas as disciplinas acadêmicas são dogmáticas em seus princípios e desdobramentos. São ensinadas como verdades e cobradas como avaliações.
As mídias reproduzem as condenações e destroem antecipadamente qualquer tentativa de contrapor idéias dogmáticas gerais e específicas.
Vivemos um momento histórico em que o dogma pode ser conferido a cada novo ataque da consolidação de novas verdades que modificam o passado e se impõem a todos.
As questões de gênero, de raça, de sexualidade, a nomenclatura que passa a regrar o falar das gentes, as denúncias e a vigilância contra defecções podem nos dar uma idéia do poder dogmático como norma social emergente.
No princípio o dogma é parte de uma regra intolerante, mas baseada num sentimento de justiça ou correção histórica. Parece sempre razoável alterar os mecanismos de relação, pois avançamos para um tempo positivo, de melhora e evoluções diversas. Depois ele se naturaliza e as gerações que perderam sua origem, acreditam na eternidade de sua manifestação.
O dogma exige concordância absoluta, pois todas as teorias científicas, baseadas nas verificações fazedoras de verdades são dogmáticas. Todos os livros também o são, pois se apresentam como fruto da concordância geral das verdades fundamentais ali inscritas.
A história é a mais dogmática ciência, pois naturaliza a desigualdade na biologia humana e impõe sua soberania como dada. Daí que a racionalidade é o lócus onde se alojam todos os dogmas.
A racionalidade dogmática sobressai por imaginar ser o dispositivo que distingue o homem das outras espécies, cuja classificação foi ele mesmo quem concebeu.
Não deixa de ser irônico que o homem investigue a vida, propõe uma classificação hierárquica e se coloca no topo da cadeia alimentar da inteligência, negando a todas as outras formas de vida qualquer vestígio de inteligência.
Esse pensamento unívoco, capaz de determinar como são as coisas, os seres, os entes e até mesmo os vastos multiversos espirituais está ancorado num princípio dogmático fundamental.
O adjetivo unívoco diz do que só tem uma explicação ou interpretação; que não é ambíguo; evidente; inequívoco, que é do mesmo gênero e possui a mesma explicação ou sentido, mas pode ser aplicável a coisas diferentes, da função que associa a cada ponto do domínio somente um ponto do contradomínio e que designa com o mesmo som coisas diferentes, que é homônimo.
Essa forma ubíqua de entender a vida, o mundo e os seres é o que chamo primordialmente de dogma, pois não pode ser contestado de princípio, pois o princípio é o verbo e seu suporte, a linguagem, comanda tudo, penso, logo existo.
Desse modo inaugural, a dúvida será erradicada em seu conjunto de possibilidades e as certezas assumirão a forma fascista de verificar a realidade. Globalmente se imagina saber de tudo e cada indivíduo, considerando ser único, pode compor uma célula da verdade universal.
Os que destoam, por sua vez, se ancoram em outros conjuntos de verdades universais igualmente válidos e a discordância é parte do jogo mental binário que confirma fundamentalmente o conceito. Então se concorda ou discorda, amparados pelo mesmo dogma, apenas colocado no extremo oposto da ferradura.

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A teoria da ferradura demonstra como o dogma se consolida na prática política por uma ideologia que se mostra sempre em oposição e dualidade, mas que, em todo percurso de seus discursos, aproximam-se mutuamente.
O primeiro uso do termo na ciência política parece ter sido colocado por Jean-Pierre Faye, em seu livro de 2002, Le Siècle des idéologies. Outros atribuem a criação da teoria aos sociólogos americanos Seymour Martin Lipset e Daniel Bell e à escola pluralista. A teoria às vezes tem sido denominada como “Les extrêmes se touchent” (“Os extremos se tocam”).
Não são apenas os extremos que se tocam, mas a forma da ferradura realça o caminho comum, desde os centros até as pontas. E nada parece sair desse constrangimento, já que a democracia, afinal, é considerada como o último baluarte onde esses discursos se organizam. Nada parece existir além da democracia, apenas retrocesso diante dos determinismos positivos do pensamento dogmático.
O dogmatismo carrega essa característica dual, pois parece que ou é isto ou aquilo e que assim está realizado o divisionismo, o reformismo, o oportunismo e o controle das narrativas.
Embora tenha sido concebida como uma teoria para explicar os extremismos políticos, a teoria da ferradura está presente em todas as teorias cientificamente propostas, senão vejamos o caso da teoria da evolução de Darwin.
Uma vez concebida, surge uma oposição extrema, o criacionismo, como alternativa ao pensamento pretensamente científico. Essa oposição tola só surge para reforçar que o fundamento da ciência é válido contra o fundamento da religião. E como é uma oposição que zera qualquer possibilidade, o jogo da ferradura parece autorizar sua veracidade aos dogmáticos de ambos os lados do extremo.
Pouco importa que o biólogo russo Kropotkin tenha concebido uma teoria da importância da colaboração para o surgimento e prosseguimento da vida, confrontando a competição que a teoria hegemônica apontou para justificar o liberalismo como uma decorrência da vida no planeta.
O mesmo pode ser aplicado ao conceito de gravidade newtoniano. É irrecusável, embora a física quântica e o relativismo einsteiniano tenham oferecido aberturas que ainda são fonte de dúvidas e a dúvida não é aceitável como base do dogma científico. Só quando uma teoria tiver superado a outra saberemos da nova verdade inquestionável, do novo dogma inquestionável.
Qualquer um que ouse duvidar dessas verdades será ridicularizado como alguém fora do lugar e fora do tempo.
Esses exemplos poderiam se reproduzir aqui em diversos modelos de verdades absolutas e da mesma forma seriam aceitos de modo inquestionável, pois se imagina que são partes do método científico e que a oposição, a dúvida, a ousadia colocará o sujeito na zona do exilado.
Numa sociedade heteronômica deseja-se fazer parte da maioria, já que a minoria que não recebe os benefícios dos empoderamentos será considerada como a parte maldita, que une todos no extremo oposto.
É inaceitável que a Grécia não seja o berço da civilização ou que o trabalho não seja natural biológico. É inaceitável que se questione a ordem geográfica do mundo ou a teoria em que Freud apontou a estrutura da psique humana.
Duvidar da forma do planeta então, pura heresia e rematada tolice.
Basta a autenticidade de um discurso científico ou religioso para que a coerência da ordem eurocêntrica e de seu império cognitivo seja reforçada. Contrarie esse determinismo e seja condenado ao ostracismo e à execração pública.
O dogma é tão poderoso que ao escrever tais sandices sei que já faço parte dos incautos, dos malucos, dos perdidos cuja direção é o abismo do isolamento.
Mas, como dizem os sadhus e nagababas, os homens desgarrados das castas hindus, ora como loucos ora como gênios, assim caminham os homens livres pela terra.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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