Anderson Pires
Colunista
Racismo não 20/Out/2022 às 23:35 COMENTÁRIOS
Racismo não

Seu Jorge é a prova que consumo não compra inclusão social

Anderson Pires Anderson Pires
Publicado em 20 Out, 2022 às 23h35

Qual seria a relação entre Cuba, consumo, liberdade e o racismo que Seu Jorge sofreu recentemente naquele show em Porto Alegre?

Seu Jorge prova consumo não compra inclusão social
Seu Jorge

Anderson Pires*

O Seu Jorge é um artista conhecido em todo Brasil, com trabalhos internacionais, inclusive. Até conseguir fama teve uma vida de muita pobreza e chegou a morar na rua. Conseguiu conquistar espaço importante como cantor, com músicas de muito sucesso. Como ator teve destaque em filmes como Cidade de Deus e Marighella.

A fama lhe proporcionou dinheiro e condições de morar em locais nobres, de custo elevado, como em Los Angeles. Seu Jorge, apesar da origem pobre, de ser negro e sofrer racismo ao longo da vida, flertou com seus algozes por muito tempo. Na época da Copa de 2014, aquela em que os coxinhas fizeram questão de vaiar a presidente Dilma e mandá-la tomar no cu, ganhou notoriedade a participação de Seu Jorge, junto com sua então esposa, em festas VIP promovidas para a elite brasileira assistir jogos do Brasil. Na ocasião, Seu Jorge cantava para figurinhas carimbadas dessa elite que, por conveniência, tratavam-no como se fosse um deles.

É óbvio que ninguém pode ser criticado por vender o seu trabalho à elite brasileira. A venda da força de trabalho não significa perda da consciência de classe ou negação dos conflitos sociais. Mas nesse caso, chamou atenção a inserção do cantor, sem que o distinguissem dos participantes da festa, principalmente, pela sua esposa. Parecia serem todos iguais. Seria?

Seu Jorge também ganhou destaque por ostentar carrões, a exemplo da sua Lamborghini branca e outros modelos cobiçados pelos admiradores de veículos. As conquistas como artista lhe proporcionaram uma capacidade de consumo mais que justa. Afinal, é um cara muito talentoso, com uma voz marcante que lhe diferencia da média em qualquer lugar no mundo.

Durante um bom tempo, Seu Jorge cedeu ao processo de cooptação, que é gerada pela falsa sensação de que o consumo proporciona inclusão e liberdade. Essa, talvez, seja a grande armadilha do capitalismo, a crença de que consumir é libertador.

A sociedade de consumo é algo tão sedutor, que cria em nós a percepção de que o mercado é o grande instrumento de libertação da humanidade. Vamos tomar como exemplo um país que é sempre referido pelo cerceamento de liberdade: Cuba. É comum escutarmos críticas sobre a impossibilidade que os cubanos têm de acesso a bens de consumo. Imagine você não ter à disposição todas as possibilidades tecnológicas que existem no mundo.

Clique aqui para ler todos os textos de Anderson Pires

Mas, enquanto os cubanos não dispõem desse mundo de gadgets, desfrutam de moradia, educação, saúde, segurança e alimentação para todos. Não seriam esses bens e serviços uma forma mais genuína de liberdade? Vale lembrar, que a maioria do povo Cubano é formada por negros e negras, mas vivem num país onde a desigualdade é mínima e a possibilidade de manifestações de racismo é zero.

Qual seria a relação entre Cuba, consumo, liberdade e o racismo que Seu Jorge sofreu recentemente naquele show em Porto Alegre? A meu ver, está tudo entrelaçado, mas para o capitalismo, portanto para os que defendem o consumismo como ação libertadora, não os interessa que essas contradições sejam explicitadas e que seus elos sejam conectados.

Notem que a ideia de que consumir, mesmo aquilo que pode ser nocivo, é libertadora, faz parte da estratégia capitalista desde sempre. Num passado não muito distante, as propagandas de cigarro eram exemplos destacados de afirmação de liberdade, embora propagassem o consumo de uma droga. Da mesma forma, com todos os produtos, principalmente aqueles de maior valor eram apresentados como símbolos de inclusão e confirmação de que se você pode comprar, você é livre.

Qual modelo de sociedade é mais livre, aquela que proporciona a todos o acesso a alimentação e aos serviços essenciais ou essa em que se pode consumir tudo que o dinheiro puder comprar? Observe-se que na segunda, apesar da abundância, comprar é um privilégio de poucos, a maioria da população vive à margem do que é oferecido pelo mercado.

Não sei se Seu Jorge, em algum momento, acreditou que consumir à semelhança da elite o tornaria aceito pela mesma, não sei se teve a ilusão de que parecer-se com eles o livraria do peso do racismo. Não é pecado sonhar com um mundo melhor. Contudo, se sonhou, não passou disso. A violência que ele sofreu em Porto Alegre é um exemplo da barbaridade que a elite é capaz de produzir. O racismo é um componente da desigualdade que os ricos cultivam. E, mesmo quando o negro, ou o pobre conseguem ascensão econômica e capacidade de consumo, não se tornam imunes ao preconceito. Às vezes, a depender do quanto o sujeito consuma, a rejeição não é manifesta em vaias, mas há outras formas de chacotas.

O exemplo de Seu Jorge ilustra bem a inversão de valores de que se nutre o capitalismo, à qual, nós que vivemos do trabalho, deveríamos estar atentos, porque não demora muito, a realidade se encarrega de mostrá-la. Nessa luta capitalista por mais e mais consumo, justo seria que nos distinguíssimos, porque o imprescindível é disputar uma vida digna, de modo a garantir o essencial para toda a humanidade. Enquanto não nos apercebermos disso, o capitalismo continuará acumulando e, por sua vez, alimentando a desigualdade e todas as formas de segregação, inclusive a racial.

*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.

→ SE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI… considere ajudar o Pragmatismo a continuar com o trabalho que realiza há 13 anos, alcançando milhões de pessoas. O nosso jornalismo sempre incomodou muita gente, mas as tentativas de silenciamento se tornaram maiores a partir da chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Por isso, nunca fez tanto sentido pedir o seu apoio. Qualquer contribuição é importante e ajuda a manter a equipe, a estrutura e a liberdade de expressão. Clique aqui e apoie!

Recomendações

COMENTÁRIOS