Redação Pragmatismo
Jair Bolsonaro 01/Set/2022 às 11:27 COMENTÁRIOS
Jair Bolsonaro

Que tipo de 'homem do povo' anda com milhões em dinheiro vivo para comprar imóveis?

Publicado em 01 Set, 2022 às 11h27

Bolsonaro se elegeu presidente declarando guerra contra quem come camarão e arrota peru. Fez isso vendendo-se como o próprio tio do churrasco, aquele parente que fala absurdos enquanto pica a cebola e no minuto seguinte ri sozinho da própria piada com a boca cheia de farofa. Mas os tiozões da vida real não têm mala para carregar tanto dinheiro. Não têm mala sequer para carregar as roupas compradas a prestações

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Bolsonaro comendo pão com leite condensado

Matheus Pichonelli, Uol

Quando se cansou da vida de deputado do baixo clero, onde dormia tranquilo e só saía a cada quatro anos para pedir votos de militares aposentados e viúvos da Guerra Fria, Jair Bolsonaro tomou um banho de loja para vencer a fama de político de nicho e falar direto ao coração do brasileiro comum.

A fantasia, construída à base de camisa “pirata” de time, pão com leite condensado e iogurte servido para doutor, era tão autêntica quanto uma nota de R$ 200, inexistente na época, mas tinha como objetivo estabelecer pontes e prospectar votos em trincheiros onde o monólogo em defesa de torturadores e dos bons tempos da ditadura não alcançava.

Foi assim que o parlamentar, há décadas na vida política, se transformou em um candidato “antipolítica”. A metamorfose fez o morador de um condomínio de luxo em área nobre do Rio virar “capitão do povo”.
A fantasia vinha a calhar em 2018, quando os concorrentes de terno bem cortado e fala polida entraram na mira dos eleitores cansados de velhas fórmulas para resolução dos problemas de sempre.

Antes de ser preso, o favorito naquela disputa ainda era o ex-presidente Lula, líder popular que costumava trocar os discursos decorados pela espontaneidade e povoava o imaginário dos eleitores deixando-se fotografar na praia, sem camisa, equilibrando a caixa térmica de cerveja na cabeça.

Lula atravessou dois mandatos presidenciais sem deixar de polir as raízes de líder operário. Fazia isso sob escrutínio permanente. De vez em quando, e antes de o WhatsApp virar modinha, era acusado de trair o movimento com a difusão de correntes falsas a respeito de uma suposta vida suntuosa dos filhos, acusados de andar por aí em carros de luxo e frequentar bons restaurantes.

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Em seu mandato, não teve tio de churrasco que não jurasse ter passado em algum latifúndio rural nas férias de fim de ano sem ter ouvido de um interlocutor confiável, e jamais nomeado, de que tudo ali pertencia ao petista.

No dia seguinte ao seu casamento com a socióloga Rosângela da Silva, houve quem fosse até o local da cerimônia chafurdar o lixo da festa para flagrar possíveis excessos dos comensais. As garrafas de vinho descartadas viraram assunto em colunas de bastidores e fofocas. Causou ódio e escândalo a revelação de que o pessoal da limpeza havia recolhido as carcaças de um vinho português Pêra-Manca, safra 2014.

Bolsonaro se elegeu presidente declarando guerra contra quem come camarão e arrota peru. Fez isso vendendo-se como o próprio tio do churrasco, aquele parente que fala absurdos enquanto pica a cebola e no minuto seguinte ri sozinho da própria piada com a boca cheia de farofa.

As cenas, corriqueiras nas casas das melhores e piores famílias, eram registradas pelos filhos metidos a consultores de imagem e que corriam para lançar a farofada nas redes com uma mensagem: “Olha como é humilde e simplão o nosso presidente”.

Deu trabalho, mas deu certo, e talvez seja só ironia que justamente em seu mandato o conceito de churrasco, com cerveja e picanha, tenha virado objeto de luxo e ostentação.

O fascínio do personagem pode ser resumido por uma declaração da atriz Regina Duarte ainda em 2018. Para ela, o então candidato a presidente (e seu futuro ex-chefe) tinha “um humor brincalhão típico dos anos 1950, que faz brincadeiras homofóbicas, mas que são da boca pra fora, coisas de uma cultura envelhecida, ultrapassada”.

O estereótipo ganhava fãs via identificação. No caso da futura ex-secretária de Cultura, Bolsonaro representava uma espécie de figura de autoridade, simplória e paternalista, mas que não fazia mal a ninguém, a não ser ao próprio fígado embebido de revolta e piadas ruins.

A menção à semelhança com o pai deixava subentendida a preferência no momento em que ela e uma multidão de eleitores buscavam preencher o desamparo criado pela lacuna da crise política.

Bolsonaro era quase uma escolha estética, e soube como poucos se comunicar com esse público espalhando e protagonizando memes no zap com a mesma identidade visual que já habitava a caixa de mensagens instantâneas de nossos parentes assustados com um mundo em transformação.

Aquele “homem comum”, que nunca fez nada de extraordinário na vida, como definiu certa vez a jornalista Eliane Brum, chegou à Presidência com a bandeira das pequenas causas transformadas em prioridade política.

Entrava em cena o sujeito médio e tão preparado para o posto quando qualquer parente igualmente obcecado pela tomada de três pontas, o cinto de segurança, o carrinho das crianças no banco de trás, os pardais das rodovias, as multas por pescar em área proibida e outras legislações defenestradas em causa própria.

Em outras palavras: o parente sem noção do churrasco foi empoderado e finalmente encontrou um presidente para chamar de seu.

Essa fantasia só durou até a segunda página. Os capítulos seguintes traziam notícias estranhas sobre “rachadinhas”, viagens em primeira classe, imóveis de luxo, lobbies milionários e gastos em segredo do cartão corporativo.

Nesta semana, um levantamento feito pelos repórteres Thiago Herdy e Juliana Dal Piva publicado no Uol mostrou que quase metade do patrimônio em imóveis de Jair Bolsonaro e de seus familiares mais próximos foi adquirida em dinheiro em espécie. Ele, os filhos e os irmãos negociaram ao menos 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos, o montante equivale a R$ 25,6 milhões.

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Essa montanha em espécie parece não arranhar só o “mito” de candidato honesto e acima de qualquer suspeita. Ela já andava arranhada desde o surgimento em cena do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz. Mas tem o potencial de instalar uma barreira nos canais de identificação entre aquele parente simplão e o homem do povo que chegou à Presidência.

Nosso cunhado tiozão da vida real não tem mala para carregar tanto dinheiro. Não tem mala sequer para carregar as roupas compradas a prestações. Vai seguir gritando “mito” enquanto o cunhado do presidente compra mansão em cash para montar clube de tiro?

A aquisição de alguns desses imóveis suspeitos da família presidencial já chamou a atenção e foi alvo de apuração do Ministério Público. Mas o clã tem costas largas e, graças ao voto dos brasileiros identificados e apaixonados, tem o poder de trocar o comando da polícia, indicar procurador fora da lista tríplice, abrir a carteira do orçamento secreto e mandar para longe o olho gordo.

O parente militante do zap segue endividado, não tem advogado e não anda com nota de R$ 200 na carteira. Menos ainda na mala. Quanto mais grita “mito”, mais os homens por trás do mito enriquecem.

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