Redação Pragmatismo
Polícia Militar 01/Set/2022 às 19:26 COMENTÁRIOS
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Justiça Militar diz que PM pisar em pescoço de mulher negra "foi necessário"

Publicado em 01 Set, 2022 às 19h26

"Lembro do meu rosto ralando no asfalto". Justiça Militar justifica que "foi necessário" PM pisar no rosto de trabalhadora negra. A mulher desmaiou várias vezes durante a agressão

Justiça Militar PM pisar pescoço mulher negra necessário
Mulher negra foi pisoteada por PM-SP

Para a Justiça Militar do Estado de São Paulo (TJM SP), foi “necessário” que o soldado João Paulo Servato, da Polícia Militar (PM-SP), pisasse no pescoço de uma mulher negra, de 53 anos, para imobilizá-la em 30 de maio de 2020 em Parelheiros, periferia da zona sul da capital paulista. Ele e o cabo Ricardo de Morais Lopes, que também atuou na ocorrência, foram absolvidos na semana passada. A sentença foi publicada na terça (30) pela Justiça Militar.

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Na decisão, que teve três votos a dois a favor da absolvição, a Justiça disse pisar no pescoço da mulher não causou “qualquer lesão”. Os PMs foram absolvidos das acusações de abuso de autoridade, falsidade ideológica e inobservância de regulamento.

Como são os julgamentos na Justiça Militar?

As decisões militares são feitas por conselhos especiais. Sempre há a presença de um auditor (juiz de direito) e juízes militares (oficiais de carreira com patentes superiores aos acusados), que são definidos por sorteio. Eles votam pela ordem de tempo na Polícia Militar, considerando a patente.

No caso dessa decisão, a ordem foi: o juiz de direito José Alvaro Machado Marques, seguido dos oficiais capitão Marcelo Adriano Brandão, o capitão PM Alisson Bordwell Silva, o capitão PM Marcelo Medina e, por fim, o tenente-coronel PM Alexandre Leão Lucchesi.

Estes três últimos —Silva, Medina e Lucchesi— votaram a favor da absolvição dos policiais militares.

O que diz a sentença?

Na sentença, os três oficiais que votaram pela absolvição dos policiais militares alegaram que as imagens que foram anexadas no processo “mostraram menos de 10% de tudo o que ocorreu” e que, por isso, não podem “comprovar o que ali aconteceu e a verdadeira dinâmica do evento”.

Os oficiais pontuaram que os civis que “resistiram à abordagem policial” estavam alcoolizados e sob efeito de drogas, desrespeitaram os policiais —os civis negam que tivessem usado drogas na ocasião.

Segundo eles, a mulher, por ter ameaçado os PMs com um rodo, levou “o golpe que fez com que ela caísse ao chão”.

E, considerando a dinâmica dos fatos, “a fratura na perna [da mulher] não foi algo pretendido pelo policial, a não ser para fazer cessar as agressões que experimentava”.

“No calor dos acontecimentos, não há como se exigir um golpe um pouco mais fraco ou forte de quem está envolvido em evento daquela natureza, mesmo se tratando de uma pessoa que deve arrostar o perigo e foi preparada para tanto” – Sentença da Justiça Militar de São Paulo.

Por que as agressões?

Em relação ao abuso de autoridade, “pela postura dos civis”, para os oficiais que votaram a favor da absolvição, “havia necessidade do uso de força” para que PMs não fossem mais agredidos.

Sobre o pisão no pescoço da vítima, eles apontam que “embora tecnicamente incorreta”, a postura do PM Servato em colocar o pé sobre o pescoço da vítima “não produziu qualquer lesão”, “nem mesmo um edema ou eritema”.

Por isso, apesar de tal “procedimento” ser “indesejável”, “foi avaliado como não criminoso e necessário em razão de tudo o que ali ainda estava ocorrendo e que não foi filmado”.

Quem discordou no conselho?

O juiz de direito José Alvaro Machado Marques e o capitão Marcelo Adriano Brandão discordaram da decisão do conselho especial da Justiça Militar.

Para eles, os PMs deveriam ser condenados, com pena de um ano de reclusão, mais três meses de suspensão do exercício de funções, para o PM Ricardo, e um ano e seis meses de reclusão, mais três meses de suspensão, para o PM Servato.

Para os votos divergentes, embora os vídeos não contenham a integralidade dos fatos, “o que eles mostraram não encontra respaldo na lei no sentido de justificar ou afastar a ilegalidade da conduta adotada pelos réus”.

Eles lembram que o procedimento padrão para abordagens, principalmente com mulheres, é com a pessoa sempre de pé. O descumprimento disso, apontaram, configura infração administrativa.

Sobre a agressão à vítima, o juiz e o primeiro oficial apontaram que “a lesão corporal está comprovada pelo laudo de exame de corpo de delito” e que a autoria do ferimento “é incontestável e foi provocada pela ação do acusado Servato”.

Eles também destacam que não foi comprovada nenhuma lesão nos policiais militares e que “não há prova de que a vítima tenha usado barra de ferro para agredir os policiais”. Os policiais deveriam ter “pedido, e aguardado reforço para agirem”.

Por isso, apontam, houve abuso de autoridade. Para eles, é possível afirmar que a vítima, nas imagens dos vídeos já estava com a perna quebrada e tinha “sua capacidade de resistência reduzida”, “sendo totalmente desnecessário que Servato colocasse os pés sobre suas costas ou pescoço”. Para eles, “sequer encontramos justificativa” para que a vítima “fosse mantida deitada no asfalto”.

“Pior que isto, ao tirar um dos pés do solo, Servato ‘despejou’ seus 84 quilos de peso sobre a cinquentenária e franzina mulher. Por sorte, ela não sofreu lesões que pudessem tornar os fatos aqui tratados uma verdadeira tragédia” – Trecho da sentença da Justiça Militar de São Paulo.

Lembrança do caso George Floyd

Por fim, eles lembram que a agressão à mulher negra aconteceu quando o mundo inteiro “já tinha visto um policial americano causar a morte de um homem bastante forte, quando se ajoelhou sobre o pescoço dele durante procedimento de imobilização” e que isso “deveria ensejar ainda mais cuidado do réu com o seu proceder”. A referência é ao caso George Floyd, ocorrido em 25 de maio, cinco dias depois do caso de Parelheiros.

O que diz a defesa da vítima?

Em nota, o advogado Felipe Morandini, que cuida da defesa da vítima, disse a sentença “explana de forma bastante completa os fundamentos, a maioria completamente fora da realidade, pelos quais os policiais militares foram absolvidos”.

“A fundamentação da absolvição causa revolta, e merece reforma. Trabalharei lado a lado com o Ministério Público para a reforma desta absurda e revoltante absolvição”, disse.

Vítima tem medo de sair de casa. A comerciante negra ficou dois anos e um mês sem sair de casa depois da agressão. Ela voltou a trabalhar e a sair de casa há pouco mais de um mês. Mas tem sido um desafio diário. “É assustador porque a gente encontra várias viaturas no caminho e sempre recordo de tudo”, disse.

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A mulher e a família vivem com medo de represálias. “A gente fica preocupado porque nunca sabe de onde vem o mal”, desabafou.

Leia abaixo depoimento da vítima que pediu para não ser identificada:

Vivi para contar: ‘Lembro do meu rosto ralando no asfalto’

Lembro daquele dia como se fosse hoje. Era 30 de maio de 2020, por volta de 12h, quando o carro da polícia parou em frente ao meu antigo bar. Estava arrumando alguns vasilhames e me preparava para lavar o salão quando ouvi gritos vindos da rua. Pela porta entreaberta espiei o que estava acontecendo. Vi um PM dando socos na boca do meu afilhado. A minha primeira reação foi sair com o rodo na mão e tentar segurar os braços do policial. Em vão. Voltei para o bar desesperada. Pouco tempo depois ele veio atrás de mim. Na minha cabeça, iria conversar. Mas não. Ele me deu um soco no peito, me xingou, deu um chute na minha canela, me puxou pelo cabelo e me jogou no chão. Depois aconteceu a cena mais agonizante: ele pisou no meu pescoço como se quisesse flutuar.

Tudo isso porque eu me recusei a ser algemada. Eu não sou uma criminosa, mas não adiantava repetir. Depois de ser agredida, não conseguia dizer mais nada porque o chute quebrou a tíbia da minha perna esquerda e comecei a sentir uma dor surreal. Lembro vagamente do meu rosto ralando no asfalto e dos meus olhos se fechando. Tudo o que eu sei dos momentos seguintes foi contado pelos vizinhos. Eles se aglomeraram ao meu redor implorando para o PM me soltar porque eu era uma mulher trabalhadora. Uma amiga me disse que ele repetiu mais de uma vez “vou matar essa negra”.

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Enquanto estava desacordada, testemunhas contaram que o PM me puxou pelo cabelo novamente e me jogou na calçada. Ele apoiou um joelho nas minhas costas e o outro no meu pescoço. Tudo isso está nos vídeos. A pergunta que ecoa todos os dias na minha cabeça é: se eu já estava imobilizada, por que ele fez isso? Eu sou uma senhora de 53 anos, mãe de cinco filhos e humilde. Na época, estava apenas com 50 quilos — peso baixo para a minha altura, de 1,63 metro.

Que perigo eu oferecia àquele homem?

Confesso que não sei quanto tempo fiquei desacordada. Mas quando me dei conta, estava com o rosto todo ensanguentado, sendo levada pelo carro da PM para o pronto-socorro. Lá, soube que os policiais foram até o local devido a uma ocorrência de barulho. Um rapaz, amigo do meu afilhado, estava com o rádio do carro ligado, ouvindo sertanejo. Mas era dia e o volume não estava tão alto. Os dois também apanharam porque não quiseram ceder a chave do carro. O segundo PM ajudou a algemá-los e não fez nada para impedir a tortura que eu sofri.

Confesso que não sei quanto tempo fiquei desacordada. Mas quando me dei conta, estava com o rosto todo ensanguentado, sendo levada pelo carro da PM para o pronto-socorro. Lá, soube que os policiais foram até o local devido a uma ocorrência de barulho. Um rapaz, amigo do meu afilhado, estava com o rádio do carro ligado, ouvindo sertanejo. Mas era dia e o volume não estava tão alto. Os dois também apanharam porque não quiseram ceder a chave do carro. O segundo PM ajudou a algemá-los e não fez nada para impedir a tortura que eu sofri.

A minha vida era normal. Trabalhava das 19h às 7h no bar, porque era um horário com bom movimento em Parelheiros (na Zona Sul de São Paulo). Dormia na parte do dia e aproveitava da maneira que dava com os meus pais, filhos e netos. Vendia lanches, bebidas e tinha uma pequena mercearia. Não me rendia luxo, mas uma vida tranquila bem diferente do cárcere privado que vivo hoje.

Tenho esse sentimento de prisão mesmo após dois anos, pois fecho os olhos e lembro ainda do quanto foi doloroso ter sido levada presa depois de ser torturada.

Cárcere privado

No mesmo dia, depois que deixei o hospital com a perna engessada, fui direto para a 101º Delegacia de Polícia, no Jardim das Imbuias. As autoridades alegaram que eu desacatei os policiais e estava com o comércio aberto em horário proibido, segundo as normas da pandemia. Era mentira. Respeitei as regras e só estava limpando o bar. Em momento algum eu xinguei os PMs. Nenhum morador tentou agredi-los, como eles alegaram. Eles foram, sim, rodeados e intimidados com câmeras. Se não fosse isso, não estaria agora contando essa história.

Fiquei 24 horas presa. A meu ver, porque eles precisavam de uma tese para me culpar. Me puseram sozinha em uma cela escura, com cheiro de fezes, comida azeda e urina. Era um cubículo. A minha perna latejava. A minha salvação foi a bondade de um carcereiro, que me deu uma caixa de isopor e uma cadeira de escritório para sentar e apoiar o pé. Caso contrário, eu teria passado a noite no chão. Naquele dia, também senti muita dor no pescoço. A ponto de não conseguir engolir água, de tanto inchaço.

‘Perna ficando preta’

Só tive um resquício de paz quando meu advogado conseguiu a custódia. Assim que fui solta, precisei ser hospitalizada porque a minha perna estava ficando preta. A médica temia que desse trombose e o gesso não estava dando conta de reverter a fratura. Mas tive que continuar com ele por quase um mês, até conseguir uma vaga para operar. O chute daquele PM me rendeu uma haste de platina na perna, além de quatro pinos. Dois no joelho e dois no tornozelo.

Sem mobilidade, eu passei a depender da minha filha até para ir ao banheiro. Tive que entregar meu bar, que era o sonho da minha vida há oito anos, porque não tinha condições de trabalhar. O meu tempo passou a ser consumido em 150 sessões de fisioterapia, alarmes para tomar os cerca de dez remédios diários, e em traumas que martelavam na cabeça. Gastei todas as economias que tinha feito durante anos com curativos, remédios que não eram fornecidas pelo Sistema Único de Saúde, alimentos mais saudáveis, mas que são mais caros, necessários para não correr o risco de ter sobrepeso e prejudicar a cicatrização. Hoje, dependo da ajuda do meu pai, de 77 anos, de outros parentes de e amigos que se importam comigo.

Ainda não arrumei emprego e só consigo dormir cerca de três horas por noite. Fiquei dois meses trabalhando como cozinheira este ano, mas não me efetivaram. Estou pagando um preço caro demais por ter sido vítima, o que me deixa indignada com a Justiça, envergonhada de ser brasileira. No momento que recebi a ligação do meu advogado para explicar toda a situação, só conseguia pensar o quanto essa situação me revitimiza ainda mais. São dois anos sendo torturada todos os dias. Dois anos sem conseguir dizer meu nome para as pessoas, por medo de fazerem algo contra mim. Começo a tremer se vejo um carro de polícia.

Sou leiga, mas acredito que os policiais não poderiam ser julgados pela Justiça Militar. Sinto como se eles fossem amigos e estivessem acobertando o caso. Nós vamos recorrer da decisão e eu espero que os juízes que tenham filhas, mulheres e irmãs pensem na situação e tenham empatia.

Apesar do fardo, eu não quis passar por psicólogos, pois eu acho que nada vai me ajudar a superar o que aconteceu. Eu depositei todas as minhas fichas na Justiça. Estou segura de que Deus proverá e eles vão pagar pelo o que fizeram. Sou uma mulher negra que sempre batalhou e não vou perder essa luta.

com UOL e O Globo

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