Redação Pragmatismo
América Latina 06/Set/2022 às 07:43 COMENTÁRIOS
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Em derrota para a esquerda, população rejeita nova Constituição no Chile

Publicado em 06 Set, 2022 às 07h43

"Não” à Constituição chilena foi motivado por "incerteza" e "desilusão", dizem cientistas políticos: 61,8% dos eleitores optaram pelo “rejeito” e 38,1% votaram na opção “aprovo”

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(Imagem: Cristobal Escobar | AP)

Camilla Viegas, RFI

Por volta das 21h deste domingo (4), o Serviço Eleitoral do Chile confirmou a derrota da proposta da nova Constituição para o país. O número de eleitores que participou da votação superou as expectativas das pesquisas: 61,8% dos eleitores optaram pelo “rejeito” e 38,1% votaram na opção “aprovo”.

Pela primeira vez, em dez anos, o voto foi obrigatório para os eleitores que vivem no Chile e maiores de 18 anos. Os chilenos com domicílio eleitoral fora do país puderam votar, mas a participação era facultativa. Ao contrário do que aconteceu dentro do país, a opção “aprovo” venceu no exterior com 61,5% dos votos e 38,4% dos eleitores votaram no “rejeito”, ou “rechaço.”

Quando a derrota da proposta da nova carta magna se tornou evidente, o presidente chileno, Gabriel Boric, falou em cadeia nacional de Rádio e Televisão e assegurou que o povo “não estava satisfeito com a proposta de Constituição oferecida ao Chile”. “Essa decisão exige que nossas instituições trabalhem com mais esforço, diálogo, respeito e carinho até chegarmos a uma proposta que nos represente. Aceito esta mensagem com muita humildade: devemos ouvir a voz do povo”, disse Boric.

As causas do “rejeito”

As pesquisas previam o resultado, mas não a ampla diferença entre as duas opções possíveis, e poucos analistas esperavam uma vitória de rejeição tão grande. “A vitória da rejeição se deve principalmente a uma percepção de desilusão dos cidadãos que aprovaram com ampla maioria a possibilidade de fazer uma nova Constituição. No entanto, grande parte dos constituintes orientou-se para determinadas áreas que não eram as mais importantes para o povo”, disse Miguel Ángel López, doutor em Ciência Política e acadêmico do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile.

“Os principais elementos dos protestos [de 2019] estavam ligados a reformas do sistema previdenciário, melhor saúde, educação e fim das injustiças sociais. Grande parte da [proposta] de nova Constituição se concentrou muito em fazer uma série de reformas de cunho político, muitas delas de execução complexa, no multinacionalismo etc. Havia uma percepção de grande parte da população de que os constituintes convencionais erraram o alvo”, explica o acadêmico.

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A campanha eleitoral oficial terminou na quinta-feira, 1, com festejos nas ruas de adeptos de ambos os lados. Houve muitas manifestações do lado do “aprovo” e, nas redes sociais, era amplo o debate sobre uma possível vitória, fato que não se concretizou.

“Um dos aspectos que marca a vitória do “rejeito” tem a ver com o fato que as pessoas, ou os votantes, achavam que a Constituição planejava fazer mudanças radicais do ponto de vista político”, disse Viviana Cuevas Salazar, mestre em Governo e Gestão pública, professora da Universidade de Santiago, à RFI . A acadêmica também explica que o “contexto de incertezas” no país pode ter levado “os eleitores a preferirem ficar com uma Constituição e com as regras do jogo já estabelecidas”.

A queda de popularidade da assembleia constituinte

Com uma formação inédita no mundo, a assembleia constituinte do Chile teve seus membros escolhidos nas eleições de maio de 2021 e foi um órgão composto originalmente por 155 membros eleitos, que poderiam ou não ser políticos de carreira, formada com garantia de paridade de gênero e vagas destinadas aos povos indígenas do país.

Os trabalhos da assembleia começaram de fato em junho de 2021, tendo como presidenta da assembleia uma constituinte Mapuche, que é a principal etnia indígena do Chile. Pode-se dizer que a esquerda e os independentes somaram pouco mais de 75% da assembleia constituinte. Em 4 de junho deste ano, os constituintes fizeram a entrega oficial do texto em uma cerimônia onde esteve presente o presidente Gabriel Boric.

A campanha

O texto da assembleia constituinte, feito em um ano de trabalho, esteve presente em bancas de revistas, livros de constituição e camelôs pelo país. Diferentes estratégias, de ambos os lados da campanha, foram realizadas para promover a divulgação do texto e o combate às notícias falsas.

Personagens políticos, incluindo ex-presidentes como Eduardo Frei Ruiz-Tagle e Michelle Bachelet, fizeram públicas seus votos: o primeiro pelo “não” e a segunda pelo “sim” à proposta de carta magna. Inclusive, Bachelet participou da propaganda eleitoral na televisão pela campanha do “aprovo”.

O que acontece a partir de agora

Antes que os números finais fossem divulgados, o presidente chileno, Gabriel Boric, entrou em contato com os líderes dos partidos no poder e os convidou para uma reunião hoje, 5, no Palácio La Moneda, para analisar as opções sobre a mesa.

Durante a noite, o presidente confirmou que faria uma mudança de gabinete, embora não tenha especificado os nomes dos ministros que vão sair.

“Faço um apelo honesto a todas as forças políticas para que coloquem o Chile à frente de qualquer diferença natural e concordem o quanto antes com os prazos e limites de um novo processo constitucional. Eles vão contar perfeitamente comigo para a tarefa de facilitar esse entendimento. […] Enfrentar esses desafios importantes e urgentes exigirá ajustes imediatos em nossas equipes de governo para enfrentar este novo período com vigor renovado”, disse o presidente Boric.

Tanto o governo quanto os partidos da oposição afirmaram semanas atrás que havia vontade de continuar com o processo para que o Chile tivesse uma nova Carta Magna, mesmo que vencesse a rejeição, como aconteceu.

A coalizão de oposição Chile Vamos, de direita, chegou a um acordo contendo dez pontos que comprometeu a apoiar em um novo projeto de Constituição, caso vencesse a rejeição. Para os analistas ouvidos pela RFI Brasil, o que vai acontecer agora tem relação com o papel da direita chilena.

“O presidente já manifestou a vontade do Executivo de gerar um acordo com o Parlamento. […] Temos que ver o que acontece com a direita, considerando que ela ocupa 50% do Parlamento e que antes das votações [dos plebiscitos] não havia apresentado a vontade de gerar um acordo para iniciar um novo processo constitucional. Como o “rejeito” ganhou com grande maioria, o poder de negociação que a direita vai ter vai ser muito maior”, disse Viviana Cuevas Salazar, mestre em Governo e Gestão pública, professora da Universidade de Santiago.

Ela também destacou que o governo poderia ter dificuldades “para começar a implantar políticas públicas e reformas na Constituição” porque “muitas das mudanças que o atual governo esperava [promover] dependiam da nova carta magna”.

Breve resumo do processo constituinte chileno

O processo de criação de uma nova carta magna no Chile começou em novembro de 2019, quando, ainda no calor dos protestos sociais de outubro daquele mesmo ano, políticos de diversos partidos, incluindo o atual presidente Gabriel Boric, que na época era deputado, assinaram um acordo que resultou no processo de redação da nova Constituição. O acordo ficou conhecido por “Acordo pela Paz Social e Nova Constituição”.

De lá para cá, o país viveu três processos eleitorais, como o plebiscito de outubro de 2020, quando os chilenos decidiram que queriam uma nova Constituição e que esta seria escrita por uma assembleia constituinte; as eleições de maio de 2021, para escolher os membros desta assembleia e as eleições para presidente, que teve seu segundo turno em dezembro de 2021 e como vencedor o agora presidente Boric.

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