Luis Gustavo Reis
Colunista
Racismo não 30/Jul/2022 às 14:19 COMENTÁRIOS
Racismo não

Cabelos da discórdia: a Lei dos Turbantes e a resistência afro-feminina

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 30 Jul, 2022 às 14h19

Passados mais de 200 anos que a Lei do Tignon foi abolida na Louisiana e que os turbantes se propagaram no Suriname, resquícios desse tempo de obstrução permanecem no mundo contemporâneo: penteados afro tradicionais, como dreadlocks, ainda são vistos com preconceito e proibidos em determinados locais de trabalho; algumas mulheres que os usam, inclusive, estão sujeitas a discriminação. Reeditada no século XXI, a Lei do Tignon permanece ativa em todos aqueles empenhados em policiar cabelos alheios

Tignon, 2016. Pintura de Ayana V Jackson.
Tignon, 2016. Foto de Ayana V Jackson.

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

Nova Orleans, Estados Unidos, século XVIII. É nessa cidade agitada que tem início a primeira parte da nossa história.

Na primeira metade do século XVIII, Nova Orleans era um lugar que congregava pessoas de diferentes regiões do mundo. Pelas ruas de terra circulavam europeus, africanos, caribenhos e colonos nascidos nos Estados Unidos. Cada grupo carregava no corpo traços de suas culturas: franceses ostentavam elaborados vestuários barrocos, africanos desfiavam requintadas tranças, miçangas e pedras preciosas em colares opulentos, ao passo que colonos exibiam chapéus, botas e casacos portentosos.

Embora a diversidade cultural tenha sido elemento característico daqueles tempos, as relações sociais estavam atadas a âncora da desigualdade. A escravidão enquadrou homens, mulheres, crianças e velhos numa moldura difusa e complexa. Apesar de rigidamente organizada, havia brechas que os cativos souberam explorar em benefício próprio. Nas últimas décadas do século XVIII, quando os franceses já haviam perdido o domínio da Louisiana para os espanhóis, a cidade de Nova Orleans passou por mudanças administrativas políticas, econômicas e arquitetônicas significativas. Esse processo desencadeou uma dinamização econômica que impactou a vida da maioria da população, incluindo os escravizados.

Aproveitando as oportunidades trazidas pelos novos ventos, os cativos negociavam com seus senhores a possibilidade de trabalhar esporadicamente para terceiros em troca da divisão do valor adquirido nos serviços prestados. E foi justamente essa característica, ou seja, a modalidade conhecida como “escravizado de ganho” que ampliou o número de trabalhadores que conseguiram comprar a alforria. Outro passaporte para liberdade foi o serviço militar, que possibilitou o alistamento de negros nas milícias locais para lutarem contra os povos indígenas e atuarem na captura de escravizados fugitivos. Os membros das milícias, inclusive, foram empregados para combater incêndios, consertar equipamentos públicos, policiar a cidade e marchar em desfiles religiosos e seculares.

Durante as quatro décadas de domínio espanhol na Louisiana, a população livre dobrou, o número de escravizados aumentou 250% enquanto a quantidade de libertos cresceu dezesseis vezes. De acordo com a historiadora estadunidense Kimberly Hanger, “a Coroa [espanhola] promoveu o crescimento da população negra livre para preencher os papéis econômicos do setor médio na sociedade, defender a colônia de inimigos externos e internos e dar aos escravos africanos uma válvula de segurança” (HANGER, 1994, p. 147-148).

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O aumento da população livre engendrou novas relações sociais, inclusive a ampliação do casamento entre negros e brancos. Temendo o efeito desses enlaces, o rei “Carlos III da Espanha exigiu que o governador colonial da Louisiana ‘estabeleça ordem pública e padrões adequados de moralidade’, com referência específica a uma ‘grande classe de mulatos’ e particularmente mulheres ‘mulatas’” (WINTERS, 2016, p. 77). O monarca ibérico tinha como principal alvo as mulheres negras por quem os colonos brancos estavam interessados: conquistando-as pela força ou pelo desejo mútuo.

Durante o período colonial, as mulheres negras da Louisiana eram conhecidas por suas vestimentas requintadas, mas sobretudo pelos cabelos elegantemente ornamentados com penas e joias. Arregimentados com cuidado e delicadeza, os cabelos despertavam ciúmes e atraíam a atenção de homens e mulheres, de autoridades e aprendizes, de leigos e religiosos, de escravizados e livres.

Atendendo às exigências de Carlos III, em 1786, o governador de Nova Orleans Esteban Rodriguez Miró promulgou o Édito de Bom Governo, também conhecido como Lei Tignon, que “proibia as mulheres crioulas de exibir excessiva atenção ao se vestir” pelas ruas de Nova Orleans, desfilando com suas edulcoradas e vastas cabeleiras. Em vez disso, as mulheres eram obrigadas a usar um tignon (lenço ou turbante) sobre os cabelos, tanto para esconder os fios quanto para selar o estigma da escravidão: o lenço associaria as usuárias aos escravizados, à despeito de serem cativas ou não. Segundo o alcaide, a medida era necessária devido ao comportamento “prejudicial” das mulheres negras, que levavam uma “vida licenciosa sem se abster dos prazeres carnais” (MCNEILL, 2004.).

Em um primeiro momento, a medida causou impacto positivo para as autoridades coloniais, mas mostrou-se inócua com o passar do tempo: em vez de constrangimento, as mulheres ressignificaram a proibição e a transformou em moda. Passaram a usar turbante com cores chamativas, joias, fitas e estilos de embrulho que acentuaram ainda mais suas belezas. Envolvendo os cabelos em tecidos suntuosos, desenvolveram diferentes formas de amarração e transformaram os lenços em marca de orgulho e afirmação cultural.

Durante cerca de quatorze anos, a Lei dos Tignons tentou escamotear a vitalidade e a beleza dos cabelos das mulheres negras – não conseguiu. Em meados de 1800, o policiamento capilar ficou à deriva e a lei foi abolida na Louisiana. Apesar disso, as mulheres continuaram a usar lenços que mais lembravam atributos de realeza: princesas, rainhas, imperatrizes. O tecido na cabeleira virou símbolo de elegância, vaidade, solidariedade e resistência.

Tignons no Suriname

A segunda parte da nossa história é no Suriname, território encravado a noroeste da América do Sul, local onde os tignons aportaram nos idos do século XIX. Antes de chegar ao Suriname, no entanto, os tignons desembarcaram e fizeram, literalmente, a cabeça de centenas de mulheres em diferentes ilhas caribenhas: Martinica, Guadalupe e Dominica são algumas delas.

Quando chegou em território surinamês, o lenço ganhou um novo nome: Angisa. Não foi apenas o nome que mudou, o tecido também ganhou novas texturas e passou a ser confeccionado com fécula de mandioca. Essa técnica oferecia maior resistência e durabilidade ao produto.

Havia outro elemento, porém, que transcendia a questão nominal e estética: as mulheres afro-surinamesas usavam o tecido no cabelo como meio de comunicação, elaborando distintos padrões que transmitiam mensagens codificadas entre as usuárias. Em grande medida, era uma linguagem dominada quase que exclusivamente por mulheres negras, acossadas pela escravidão, versadas no ofício hermético de expressar ideias por sinais ocultos de difícil decodificação aos desentendidos. Por isso, os símbolos em cada curva desenhada nas túnicas postas na cabeça era sistema comunicativo valioso naqueles tempos bicudos de cativeiro.

Os significados eram variados e transmitiam todo tipo de prédica. Vejamos algumas: “O caminhão de lixo coleta detritos, mas não recolhe vergonha”; “Sou uma mulher adulta, independente, feliz e posso fazer o que bem entender”. Uma dobra no tecido, na parte de trás da cabeça, poderia significar “Segure a língua” ou “Deixe-os falar”. Outros padrões poderiam até indicar encontros: “espere por mim na esquina”, era a mensagem de um deles.

A maneira como o tecido era amarrado e as coloração utilizada também comunicavam certas mensagens. Determinadas tecituras eram usadas particularmente por mulheres casadas, ao passo que outras cabiam às solteiras. Havia, ainda, aquelas que usavam os lenços denunciando infidelidade de certos maridos, pontuando intrigas entre comadres, anunciando elances matrimoniais. Os lenços brancos costumeiramente designavam luto, enquanto os vermelhos cabiam aos noivos ou recém-matrimoniados. Além disso, os tecidos eram adotados em cerimônias religiosas, festividades, bem como definiam a condição social de suas portadoras: quanto mais elaborado o lenço, mais dinheiro a pessoa tinha.

Atrás de cada pedaço de pano, de cada padrão de amarração, de cada dobra havia um significado oculto decodificado por mulheres atentas aos códigos secretos dos tignons. No vai e vêm de cada curva muito bem atada ao cabelo, os turbantes estabeleciam limites a um vizinho intrometido, desmascaravam amantes fortuitos, marcavam encontros proibidos, compartilhavam tristezas e alegrias cotidianas. Em suma, símbolos de uma linguagem exclusiva que misturava inteligência, elegância e afirmação.

No final do século XIX, tanto na Louisiana quanto no Suriname, muitas mulheres negras começaram a mudar a relação com os cabelos: abandonaram os pentes e ferros quentes que alisavam os fios capilares e adotaram um produto que, eufemisticamente, os “relaxava”. Os produtos de alisamento capilar caíram no gosto de milhares de negros, convencidos em adotar os padrões eurocêntricos de beleza. Alisar o cabelo significava uma aparência europeia, portanto, aceitável aos olhos da sociedade racista.

Nas décadas de 1960 – 1970, sobretudo com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, o cabelo afro ganhou símbolos de liberdade, protesto e beleza. Com potência e simbologia poderosa, os penteados afro eram tão encorajadores quanto um punho erguido. Mulheres como Nina Simone, Angela Davis, Maya Angelou e Kathleen Cleaver abraçaram o visual – uma representação estética-política de seus compromissos com a negritude.

Passados mais de 200 anos que a Lei do Tignon foi abolida na Louisiana e que os turbantes se propagaram no Suriname, resquícios desse tempo de obstrução permanecem no mundo contemporâneo: penteados afro tradicionais, como dreadlocks, ainda são vistos com preconceito e proibidos em determinados locais de trabalho; algumas mulheres que os usam, inclusive, estão sujeitas a discriminação – vide o caso envolvendo a atriz norte-americana Zendaya, que foi alvo de chacota durante uma das apresentações do Oscar. Segundo sua detratora, a apresentadora de TV Giuliana Ranci, o cabelo da atriz fazia ela parecer que “cheirava a óleo de patchuli ou erva daninha”.

Casos de preconceito contra o cabelo de pessoas negras (crianças, adultos ou idosos) continuam a pipocar mundo afora. No caso de estudantes negras, inclusive, o assédio é rotineiro. Além da solicitação de mudar o cabelo para torna-los adequados aos “padrões convencionais”, há diversas retaliações aos que se recusam a aceitar as imposições: exclusão de aulas, ameaças de suspensão e expulsão. Reeditada no século XXI, a Lei do Tignon permanece ativa em todos aqueles empenhados em policiar cabelos alheios.

Referências

HANGER, Kimberly S. Almost All Have Callings: Free Blacks at Work in Spanish New Orleans. Colonial Latin American Historical Review, 3 (2):141-164.

MCNEILL, Tamara. The Politics of Identity and Race in the Colored Creole Community: The Gens de Couleur Libre in Creole New Orleans, 1800–1860. The McNair Journal. 2004.

WINTERS, Lisa Ze. The Mulatta Concubine: Terror, Intimacy, Freedom, and Desire in the Black Transatlantic. Georgia: University of Georgia Press, 2016, p. 77.

* Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios Incendiários sobre um mundo normatizado (2021)

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