Luis Gustavo Reis
Colunista
História 08/Dez/2021 às 13:06 COMENTÁRIOS
História

A vingança da América: uma história desconhecida do Haiti

Luis Gustavo Reis Luis Gustavo Reis
Publicado em 08 Dez, 2021 às 13h06

O legado da violência deixou o Haiti devastado. Até hoje o país é punido pela ousadia dos rebelados, mas o invasor – uma das maiores forças armadas da história – foi derrotado.

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Cerimônia vodum de Bois Caiman, 1791. A cerimônia é lembrada como evento catalisador da Revolução Haitiana, e serviu como um encontro espiritual e político que organizou revoltas e resistências contra o império europeu.

Luis Gustavo Reis* Pragmatismo Político

Eu vinguei a América
Jean-Jacques Dessalines (1804)

Em 5 de dezembro de 1492, manhã ensolarada de quarta-feira, a caravela Santa Maria ancorou há alguns metros da costa. Perdidos durante meses no mar, famintos e exaustos, os tripulantes avistaram terra firme: praias alvíssimas, rios sinuosos e dezenas de árvores carregadas de frutas. Entre os curiosos aglomerados na proa, estava o comandante da expedição que mudaria para sempre a história das Américas: Cristóvão Colombo.

Foi a primeira vez que os espanhóis chegaram ao que chamamos hoje de Haiti, território que logo batizariam de Hispaniola. Quando os europeus desembarcaram na ilha, perto de 500 mil índios arawkes (ou taínos) e caraíbas povoavam diferentes pontos das montanhas e planícies. Cerca de 40 anos depois, o saldo do encontro resultou na aniquilação de 450 mil nativos, restando apenas 50 mil desafortunados.

Os autóctones viviam em pequenas comunidades, cultivando milho, batata, inhame, mandioca e outros gêneros agrícolas. Foram esses produtos e muita água fresca – diga-se de passagem – que ofereceram aos cadavéricos europeus recém-aportados em suas terras. Terra essa que chamavam de Ayiti (terra montanhosa).

Recebidos por Guacanagari, um dos caciques arawkes, os espanhóis colheram informações sobre o território desconhecido e interpelaram o nativo sobre os pequenos ornamentos de ouro pendurados em suas orelhas e pescoço. Em guerra permanente com os caraíbas, Guacanagari vislumbrou a possibilidade de interromper os saques, raptos de mulheres e expulsões de terras por meio de aliança com os espanhóis.

Tanto arawkes quanto caraíbas eram exímios tecelões, mas também fiavam, plantavam e colhiam nos campos comunais que compartilhavam. Embora nenhum deles tenha domesticado qualquer animal, dispunham de grandes florestas para caçar suas presas. Eles não conheciam o ferro, mas elaboravam utensílios em cerâmica e objetos em ouro com habilidade incomum. Tinham também um vasto vocabulário, parte dele incorporado ao léxico espanhol: pimenta, milho, tabaco, canoa, mandioca.

Passados alguns meses do encontro, Colombo regressou para Europa. Morreu tempos depois convicto de que chegara às Índias, sem saber que os ventos o levaram para América. A confusão do almirante criou um substantivo usado até hoje para nomear os habitantes dessas bandas: índios.

O desinteresse dos espanhóis em explorar o território aguçou o apetite de outros colonizadores. Na segunda metade e do século XVII, após breves negociações, a ilha de Hispaniola foi dívida em duas: a banda ocidental (atual Haiti) foi cedida aos franceses, enquanto a parte oriental (atual República Dominicana) permaneceu sob domínio espanhol.

Os franceses batizaram a terra de São Domingos, colocaram em marcha o processo de colonização e implementaram a produção de uma iguaria bastante valorizada na época: o açúcar. À medida que os anos avançavam, milhares de africanos escravizados desembarcavam na ilha destinados aos trabalhos nas plantações de cana-de-açúcar. Em pouco tempo, São Domingos se tornou a colônia mais rica da França e nas esquinas de Paris ouvia-se o burburinho sobre o domínio ultramar, conhecido como “Pérola das Antilhas”.

Responsável por cerca de 40% da riqueza produzida pela França, São Domingos era o único território do planeta no século XVII onde a produção de açúcar, anil, café e algodão ocorriam concomitantemente. A importância da colônia era de tal magnitude que nos idos de 1763, durante rodadas intensas de negociações, os franceses preferiram entregar o Canadá francês à Inglaterra do que ceder-lhes São Domingos.

As levas de escravizados desembarcados na ilha geravam temores nas autoridades coloniais, que trataram de criar formas de diferenciá-los e dividi-los por meio da concessão de determinados privilégios. Em 1685, entrou em vigor um documento chamado Código Negro, que permitia aos mestiços livres (filhos de brancos com negras) os mesmos apanágios e prerrogativas desfrutados pelos colonizadores, incluindo posse de escravizados, propriedades de terras e estabelecimentos comerciais, formação educacional e comando militar.

Essas medidas possibilitaram a ascensão de grandes proprietários mestiços e negros, que gozavam de poder político, militar e econômico. Andavam pelas ruas trajados em roupas finas, carruagens importadas e um cortejo de escravizados à disposição. Despertavam, inclusive, o ranço de brancos menos privilegiados que cuspiam após a passagem da comitiva.

Embora a maior parte da riqueza produzida em São Domingos escoasse para França, boa parte dela permanecia na ilha e propiciava às elites (mestiços, negros e brancos) opulências incomparáveis no Caribe. Por isso, em suas majestosas carruagens, essas mesmas elites podiam visitar duas orquestras residentes, parte dela composta por músicos negros. Além disso, apostavam em cassinos, assistiam paradas militares, visitavam exposições de cavalos e frequentavam um museu de cera itinerante com imagens de personalidades de diferentes partes da Europa e da América: George Washington, presidente dos Estados Unidos, figurava entre os laureados.

Em março de 1784, São Domingos seria palco do primeiro voo de balão aerostático das Américas. Uma semana depois, autoridades coloniais, grandes proprietários e mercadores reuniram-se em um extenso campo primaveril para assistir o voo de outro balão ainda mais imponente. Medindo quase dez metros de altura, tendo a estrutura envolvida por tecidos decorados com grinaldas e brasões de dignitários, a geringonça decolou, atingiu 548 metros de altitude e deixou os maganos na plateia boquiabertos.

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A capital de São Domingos, Porto Príncipe, concentrava atrações pouco vistas em outras cidades coloniais, inclusive europeias. Havia mágicos, ilusionistas e malabaristas espalhados em diferentes ruas; um imenso jardim botânico atraia interessados em apreciar plantas aclimatadas e trazidas de diferentes partes do mundo; uma casa de banho era destino frequente de quem desejava água quente e a companhia de prostitutas; além de dezenas de livrarias espalhadas em diferentes pontos do burgo.

Outras seis cidades tinham teatros com companhias permanentes, que chegavam a encenar mais de 150 peças anualmente. Um desses teatros ficava em Cap François, comportava 1500 espectadores e estava sempre lotado. Lugar preferido das elites, abrigava os espetáculos do ator mais celebre da ilha: o ex-escravo Chevalier, que morreu no palco: “Fechem as cortinas”, disse ele à plateia atônita, “a farsa terminou”.

A colonização estabeleceu matizes em todas as esferas da vida cotidiana, por isso, os moradores ricos de Cap Francois podiam vangloriar-se de seus museus, diversos jornais e até de uma Sociedade Real de Artes e Ciências fundada no século XVIII.

Porém, como em outras sociedades escravistas, o temor da revolta assombrava os poderosos, sejam eles mestiços, negros ou brancos. São Domingos concentrava a maior população escrava do Caribe, algo que levou um importante parlamentar francês, o conde Mirabeu, a dizer que os ricos dormiam “ao pé do Vesúvio”. E esse vulcão dava sinais de erupção constante, principalmente com as constantes fugas de escravizados.

Os cativos fugiam aos magotes, sobretudo em direção às planícies do norte (principal área agrícola de São Domingos), onde encontravam outros fugitivos e confabulavam rebeliões. Até que, finalmente, um grupo de escravizados representantes dos trabalhadores de centenas de fazendas reuniu-se em um lugar remoto chamado Alligator Woods. Ali, sob o céu noturno e estrelado, abateram um porco, beberam o sangue do suíno e juraram se rebelar em determinado dia. No calor da abarrotada reunião, um membro altivo e imponente pediu à palavra. Com punhos fechados e olhos em chamas, disse à multidão: “joguem fora a imagem do deus dos brancos que tem sede de nossas lágrimas e ouçam com atenção a voz da liberdade que fala no coração de todos nós.” Bastou!

Na madrugada do dia 22 de agosto de 1791, uma segunda-feira, enquanto os poderosos dormiam, o vulcão entrou em erupção. Os toques estridentes dos tambores deram os sinais e os escravizados atacaram as construções, os proprietários e seus lacaios com facões, foices e tochas. Marchavam pelas plantações colocando fogo em tudo que estava relacionado ao trabalho: campos de cana-de-açúcar, engenhos, casas de caldeiras, depósitos, plantações de café e algodão. As máquinas que resistiam ao incêndio eram destruídas à marretadas; as carruagens foram destroçadas e os cavalos libertados.

Em pouco tempo, milhares de homens brancos, mestiços e negros foram executados com os mesmos requintes de violência que submetiam seus escravizados. O membro de uma milícia que capturava fugitivos foi pregado vivo na porteira de uma fazenda e teve braços e pernas decepados; um carpinteiro escravizado conhecido por delatar companheiros foi cerrado em dois; um fazendeiro foi decapitado na frente da esposa, também morta em seguida.

Aterrorizados pelo banho de sangue, dezenas de proprietários, alguns de pijama, fugiram para Cap François buscando abrigo e segurança. Enquanto as labaredas consumiam as plantações, muitos escravizados decidiram proteger seus senhores das lavas do vulcão.

A Abertura

Na mesma Cap François, um negro esquálido e taciturno, computando cerca de 40 anos de idade, gozava de privilégios na fazenda onde morava. Homem de confiança de seu proprietário, o mercador Bayon de Libertat, exercia a função de criador de animais e cocheiro. Requisitado pela qualidade dos serviços prestados, sobretudo como botânico e veterinário, dizia ser filho de um chefe da África Ocidental antes de embarcar em um navio negreiro com destino ao Caribe. Alfabetizado e com trânsito facilitado em São Domingos, era conhecido como Toussaint.

Toussaint foi libertado poucos anos antes do início da revolta de 1791. Após a alforria tratou de virar proprietário de escravos e submeter outros tantos ao cativeiro. Fiel ao seu antigo proprietário, encarregou-se de conter os rebeldes por algum tempo até que a família tivesse tempo suficiente para fugir de Cap François.

Ao ver perceber o avanço da agitação, Toussaint hesitou em aderi-la. Não queria perder os diversos privilégios que desfrutava, entre os quais alguns cativos e admiração de alguns fazendeiros. Sentindo a mudança dos ventos, percebeu que chegara o momento de seguir em frente e nunca mais olhar para trás: tomou uma baioneta e abraçou a revolução.

As notícias da conturbação em São Domingos chegaram à Europa. Pela primeira vez na história, milhares de brancos eram executados por escravizados: os metropolitanos tremeram, o mundo estava de ponta-cabeça. Napoleão Bonaparte, que governava a França, enviou tropas a fim de conter os amotinados. Além disso, milhares de armas, provisões e dólares chegaram dos Estados Unidos ofertados pelo presidente George Washington e por seu secretário de Estado, Thomas Jefferson, ambos proprietários de escravos.

Enquanto batalhas encarniçadas seguiam e o território ardia em chamas, Toussaint rapidamente se projetou como habilidoso estrategista, conquistou o respeito dos rebeldes e assumiu posições de liderança. Quando foi alçado ao posto de comando, adotou um sobrenome escolhido por ele mesmo: L’Ouverture, que significa “A Abertura”. É provável que a alcunha derive da maneira como as tropas dirigidas por Toussaint forçavam brechas quando atacadas pelos franceses ou mesmo de uma cicatriz em sua boca causada pelo estilhaço de uma bala de canhão.

Napoleão Bonaparte e seus soldados acreditavam que o controle da ilha seria restabelecido rapidamente, mas esbarraram nas técnicas de guerrilha adotadas pelo inimigo, no pleno desconhecimento do território e na soberba característica dos colonizadores. Esta última, inclusive, sobrepôs o bom senso. Sucessivos navios carregados de soldados aportavam em São Domingos trajando pesados uniformes feitos de lã grossa, desconfortáveis e pouco funcionais para lutar no calor infernal e úmido dos trópicos. As camadas de flanela e lã ficavam ensopadas de suor, criando uma capa espessa e encharcada que provocava desidratação e insolação na soldadesca.

Mas o uniforme não era o único descompasso. Os médicos franceses não sabiam que malária e febre amarela eram transmitidas por mosquitos que procriavam em água parada. O principal hospital das tropas colonizadoras, localizado em Porto Príncipe, ficava junto a um pântano repleto de insetos. Quando um soldado contraia febre amarela, os médicos receitavam bolinhos de farinha com pimenta caiena, o que acabava piorando ainda mais a enfermidade, pois a febre amarela enfraquece o tecido interno do estômago.

Assim como o inverno sempre foi uma aliados dos russos, Toussanit L’Ouverture usava seus melhores generais: a malária e a febre amarela. Aproveitando as estações secas para treinar a tropa e elaborar técnicas de guerrilha, deixou as ofensivas mais brilhantes para as estações chuvosas, que propiciavam a contaminação por malária e inutilizavam os inimigos. Foram várias as batalhas em que os franceses caíram em armadilhas e ficaram com quase todo o corpo enterrado na lama.

Acuado pela ação dos rebeldes e tentando apaziguar os ânimos Léger- Félicité Sonthonaz, alto funcionário francês lotado na ilha e à serviço de Napoleão, proclamou o fim da escravidão em São Domingos. Era 29 de agosto de 1793, três anos após a erupção do vulcão que já tinha deixado uma pilha de cadáveres apodrecendo nas plantações, estradas e estabelecimentos do país.

O poderio bélico dos ex-escravizados foi minguando, os recursos escasseando e vários generais, oficiais e soldados desertavam iludidos pelas promessas da monarquia francesa. Em maio de 1802, Toussaint decidiu negociar a trégua e aceitou encontrar um general francês. Capturado em uma emboscada no percurso até o ponto de encontro, foi amarrado, levado às pressas para costa e embarcado em um navio para França onde morreria na prisão, dez meses depois, no dia 7 de abril de 1803.

A detenção, porém, não fez o movimento recuar. Outro general, Jean Jacques Dessalines assumiu a liderança do movimento. Famintos, desmoralizados pelas sucessivas derrotas e reduzidos à metade, as tropas francesas bateram em retirada no final de 1803.

No rastro da debandada, o saldo da empreitada catastrófica: mais de cinquenta mil franceses assassinados. Napoleão sofreu mais perdas em São Domingos do que em qualquer outra batalha. Além disso, com o tesouro depauperado pelo vão esforço de subjugar os ex-escravizados, foi obrigado a vender a Louisiana para os Estados Unidos e interromper o avanço da colonização francesa nas Américas.

Em 1º de janeiro de 1804, os líderes de São Domingos proclamaram a independência do país. Na celebração da vitória, ergueram uma estátua no coração de Porto Príncipe e se autoproclamaram “Vingadores do Novo Mundo”. Os ex-escravizados estavam vingando arawkes e caraíbas, os povos que estabeleeram contato com Colombo. Em homenagem aos índios, restabeleceram o nome da ilha dado pelos seus primeiros habitantes: Haiti.

Em mais de 12 anos e 4 meses de guerra, campos cultivados foram arrasados e milhares de pessoas assassinadas. A fome flagelou o país, que perdeu mais da metade de sua população. Trabalhadores, professores, médicos e outros profissionais que sobreviveram à guerra fugiram. Nas cidades, centenas de pessoas viviam em abrigos temporários e nos escombros do que, anos antes, tinham sido as mais esplendorosas construções do Caribe.

O legado da violência deixou o Haiti devastado. Até hoje o país é punido pela ousadia dos rebelados, mas o invasor – uma das maiores forças armadas da história – foi derrotado.

*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros escolares e coautor do livro Ensaios incendiários sobre um mundo normatizado (2021).

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