A desigualdade e ‘O Bicho’ de Manuel Bandeira
Um país em que imensos contingentes que ‘catam comida entre detritos’ convivem com uma casta de bilionários precisa entender a importância de uma mudança no sistema tributário. Esse é o tema de ‘Que conta é essa?’, organizado por Victor Lins
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(O Bicho – Manuel Bandeira)
Extraído de Que conta é essa? O sistema tributário das desigualdades
Victor Lins*, BrasilDebate
Infelizmente nosso país abriga mesmo muita pobreza e desigualdade. Muitos, ao lerem o poema de Bandeira pela primeira vez, já conseguem imaginar seu desfecho. É nítido o fato de ser a larga concentração de renda na mão de poucos, somada à carência em acesso a recursos básicos a muitos, uma questão estrutural a se resolver. Um país em que as seis pessoas mais ricas concentrem a soma da riqueza possuída por aproximadamente metade da população brasileira mais pobre (mais de 100 milhões de pessoas) [1] exige medidas urgentes a serem tomadas.
No Brasil, quem lê a Constituição e anda pelas ruas se pergunta se realmente leu a do país certo. Logo no primeiro artigo do texto constitucional, representando todo o valor simbólico que possui essa escolha da ordem, está determinado que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Entretanto, segundo o IBGE [2], aproximadamente, uma em cada quatro pessoas no país vive em condições de pobreza absoluta. Esse resultado é obtido ao se analisar o número de pessoas abaixo do parâmetro de US$ 5,50 diários disponíveis (em torno de R$ 406,00 mensais [3]), utilizado pelos estudos do Banco Mundial para analisar países de renda média-alta como o Brasil.
Mas, para piorar, o equivalente a mais de 15 milhões de brasileiros seriam considerados pobres até para os padrões socioeconômicos de países pobres africanos ou em conflito, como Haiti, Afeganistão e Síria. Para esses países, o padrão indicado para avaliar pobreza absoluta é de apenas US$ 1,90 diários (cerca de R$ 140 mensais).
Vale registrar que, na outra ponta, nos últimos anos, o número de bilionários no país mais que triplicou[4]. Os 31 bilionários, possuíam, em conjunto, uma riqueza de mais de US$ 135bilhões (R$ 424,5 bilhões). Em outra ponta, seis em cada dez pessoas possuíam uma renda domiciliar per capta média de até R$ 792,00 por mês [5].
Assim, é possível afirmar que um grande problema do país é a enorme concentração de renda, que reflete fortes limitações de acesso a direitos básicos aos menos favorecidos. Se explorarmos mais as diferenças de renda entre as camadas das duas pontas opostas da população, as constatações são realmente impressionantes. Da renda nacional, 1 em cada 4 reais vai para o 1% mais rico da população; ou, então, ao se dividir a renda total pela metade, veremos que uma delas fica com os 5% mais ricos, enquanto a outra é distribuída entre os outros 95% [6].
O abismo é tanto que uma pessoa que recebe um salário mínimo precisa trabalhar dezenove anos para receber o equivalente ao rendimento de um único mês da média do 0,1% mais rico. Já no caso de desigualdade de riqueza, os valores são ainda maiores: o 1% mais rico possui quase metade de toda a riqueza do país (48%), e os 10% mais ricos concentram 74%. Enquanto isso, a metade mais pobre da população detém tão somente 3% da riqueza nacional [7].
O Brasil tem mesmo papel de destaque no ranking mundial em desigualdades sociais: segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2018 alcançamos o 9º lugar entre 189 países[8]. Entretanto, diante de todo esse cenário, o que não podemos fazer é achar que essa informação é algum tipo de dado imutável: esse debate não pode ser deixado de lado e soluções precisam ser buscadas. Como vimos, em dissonância com a realidade social brasileira, a Constituição postula importantes direitos a seus cidadãos, no sentido de terem uma vida mais digna. Isso quer dizer uma coisa: tivemos políticos que escolheram bons caminhos, agora precisamos daqueles que os bem executem.
Assim sendo, a intenção desse livro é contribuir para a ampliação do acesso à informação sobre os pontos centrais do debate acerca da desigualdade social no país e sua discussão técnica. Acreditamos que Educação Fiscal é tão importante quanto Educação Política. Uma vez que o orçamento público revela as prioridades governamentais a sua democratização é um imperativo.
A Parte I fará a introdução ao tema da Educação Fiscal. Posteriormente, será trazido o debate da Filosofia do Direito sobre a desigualdade. Isso, porque a maioria dos escritos sobre o tema apresenta os altos níveis de desigualdade social e, dando um salto, passam a discutir a operacionalização das soluções.
Entretanto, há uma etapa intermediária: é preciso explicar o porquê da redução das desigualdades ser um objetivo a se perseguir. Sabemos que, no fim das contas, políticas redistributivas são imposições de tributos aos mais ricos para transferir aos menos favorecidos. Sendo assim, é preciso entender que alguns críticos dessas políticas questionam a legitimidade de obrigar uma pessoa a transferir dinheiro a outra. Por isso, a Parte II abordará os fundamentos jurídicos da redistribuição de renda.
Encerrada essa discussão, passar-se-á à compreensão de um modelo tributário justo Parte III, seguida de uma ampla discussão sobre o panorama tributário brasileiro e seus pontos de tensão. Por fim, analisar-se-ão os gargalos do orçamento público. Assim, será possível compreender qual é a conta envolvida na política econômica brasileira.
*Victor Lins é auditor fiscal e cientista político.
Citações
[1] Oxfam Brasil (2018): Relatório “A distância que nos une – Um retrato das desigualdades brasileiras”, p 30.
[2] IBGE (2018): “Síntese de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira”, p 56-57. Valores se referem a 2017.
[3] Conversões cambiais referem-se à época do estudo.
[4] Oxfam Brasil (2018): Relatório “A distância que nos une – Um retrato das desigualdades brasileiras”, p 18. Dados do PNAD de 2015.
[5] Oxfam Brasil (2018): Relatório “A distância que nos une – Um retrato das desigualdades brasileiras”, p 27.
[6] Idem 1, p 18.
[7] Idem 9.
[8] Oxfam Brasil (2018): Relatório “País Estagnado: Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”, p 27.