Redação Pragmatismo
Saúde 25/Mai/2021 às 08:57 COMENTÁRIOS
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Cientista de 34 anos morre de Covid; família doa tecidos para ajudar pesquisa

Publicado em 25 Mai, 2021 às 08h57

Jovem cientista brasileiro que estudava impacto do coronavírus no cérebro morre de Covid-19. Família autorizou autopsia para que a pesquisa desenvolvida por ele e seus colegas siga

Cientista morre Covid família doa tecidos ajudar pesquisa
Nilton Barreto dos Santos (Imagem: reprodução)

BBC

A covid-19 pode ter interrompido abruptamente a vida do paraense Nilton Barreto dos Santos, morto aos 34 anos na noite do último dia 4 de maio, mas não seu propósito de vida: o jovem biomédico de carreira meteórica que, coincidentemente, investigava o impacto do novo coronavírus no sistema nervoso central teve parte dos tecidos do pulmão, do coração e do cérebro coletados após a morte para que a pesquisa desenvolvida por ele e seus colegas continue avançando.

A família de Santos, que autorizou a autópsia, quer ajudar a decifrar os mistérios de um vírus que já matou milhões em todo mundo e deixa sequelas ainda não totalmente entendidas pela ciência.

“Autorizamos a coleta do material tecidual dos pulmões, do coração e cérebro do Nilton para entender melhor essa doença. Por exemplo, por que ela está acometendo jovens sem comorbidades como ele, e evitar que outras famílias passem pelo sofrimento que estamos passando”, diz à BBC a engenheira Sâmia Maracaípe, viúva de Nilton.

“Quero poder continuar o legado dele de alguma forma”, acrescenta.

Um legado de amor à pesquisa e à ciência

Natural de Abaetetuba, no interior do Pará, Nilton mudou-se para os subúrbios da capital, Belém, onde conheceria a futura mulher Sâmia – os dois eram vizinhos e estudavam na mesma escola. Começaram a namorar no Ensino Médio e estavam juntos havia 16 anos.

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Sâmia e Nilton Barreto dos Santos (Imagem: reprodução)

Na capital paraense, Nilton cursou graduação e mestrado em neurociência e biologia celular pela Universidade Federal do Pará. Em 2012, mudou-se para São Paulo, onde ingressou no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

Ali, foi aprovado no doutorado e em dois pós-doutorados. Investigava o processo de inflamação do cérebro, principalmente gerado pelo estresse, e como isso modifica o funcionamento das células, contribuindo para o desenvolvimento de doenças como a depressão.

Bolsa no exterior

O esforço com o qual se dedicava à essa pesquisa foi recompensado no ano passado: Nilton foi aprovado em um intercâmbio no hospital Mount Sinai, um dos mais prestigiados dos Estados Unidos.

Mas a pandemia de covid-19 mudaria seus planos. A viagem, que aconteceria em janeiro de 2020, foi remarcada para janeiro do ano que vem.

Diz sua orientadora, Carolina Munhoz, professora do Departamento de Farmacologia do ICB/USP: “O consulado americano suspendeu a emissão dos vistos e, logo depois, as fronteiras foram fechadas. O sonho do Nilton, desde que ele veio para São Paulo, era fazer um estágio no exterior”.

“Ele era brilhante e sensacional, uma pessoa com quem adorávamos trabalhar. Ele sempre pensava no coletivo”, acrescenta.

Carolina lembra que Nilton havia acabado de publicar um estudo do qual era coautor na aclamada revista científica Nature Neuroscience.

“O que me dói mais nisso tudo é que ele realmente estava no auge da carreira dele e a ponto de colher os frutos de seu trabalho árduo”, lamenta ela.

“Ele estava se preparando para poder prestar concurso. Tinha um currículo imbatível, mas até os concursos foram suspensos. Não tinha vaga.”

Mas Nilton não esmoreceu. Apesar da frustração diante da mudança forçada de planos, ele passou a se dedicar a pesquisar, com outros colegas, o impacto do coronavírus no sistema nervoso central.

O objetivo era entender se o vírus, que ataca e mata os neurônios, pode aumentar a propensão para o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, como demência, por exemplo.

“Nilton era muito curioso, característica primordial para qualquer cientista. Quando a pandemia chegou ao Brasil e as coisas se agravaram, nossas atividades foram suspensas. E começamos, dentro das nossas limitações, a investigar o assunto”, conta Carolina.

“Estávamos tentando correlacionar se a gravidade da infecção no sistema nervoso central correspondia à gravidade da infecção no pulmão, mas não conseguimos comprovar isso pelas amostras que tínhamos”, explica.

Infecção e hospitalização

Apesar de o coronavírus ter interrompido temporariamente os planos do casal de passar uma temporada no exterior, Nilton e Sâmia viviam o “melhor momento” de suas vidas, diz ela.

“Quando Nilton veio para São Paulo, em 2012, passamos dois anos a distância. Em 2014, vim para cá. Sou engenheira de formação, mas por necessidade trabalhei em shopping e padaria. Quando o Nilton conseguiu a bolsa e eu passei no mestrado, foi a primeira vez que a gente conseguiu sair do sufoco”, conta.

Sâmia não sabe como Nilton foi infectado pela covid. Tampouco por que ele foi o único da família que vive em São Paulo a desenvolver os sintomas mais graves da doença.

“Éramos muito cuidadosos. Nunca deixávamos de usar máscara, evitávamos aglomerações e lavávamos todos os alimentos. Mas Nilton foi o único a agravar. Ele era extremamente saudável e não tinha nenhuma comorbidade”, diz.

“Ele teve 90% dos pulmões comprometidos e seu quadro se agravou muito rapidamente.”

Nilton ficou internado por dois meses no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, referência para o tratamento de covid, e morreu no último dia 5 de maio.

“Algumas semanas antes da morte dele, pudemos visitá-lo na UTI. Ele estava muito cansado, mas interagindo. Ele se mostrava preocupado com a situação política do Brasil. Sempre fomos muito progressistas. Sempre lutamos pela educação pública de qualidade e ele, pela pesquisa, e esse foi um setor que vem sofrendo seguidos cortes”, conta.

“Ele também ficou feliz ao saber que os pais dele finalmente haviam sido vacinados.”

Luto e revolta

Sâmia ainda tem dificuldades para enfrentar a dor do luto.

“Nilton é meu esteio. Sempre me apoiou profissionalmente, me engrandeceu, conhecia cada sorriso e cada sentimento que eu tinha, era a pessoa que certamente melhor me conhecia. A gente dormia abraçado todos os dias e para mim está sendo muito difícil. Não sei como vai ser a minha vida daqui para frente, como vou continuar na minha casa rodeada de memórias dele todo o tempo”, diz ela.

“Ele foi o meu primeiro namorado, meu marido, o amor da minha vida. Tive a sorte de ter um amor seguro, tranquilo, por 16 anos e só tenho que agradecer a Deus pela oportunidade”, acrescenta.

O sentimento é compartilhado pela irmã de Nilton, Neucy, que vive em Belém.

“Ele continua vivo em cada um de nós. Era um irmão maravilhoso, um filho excelente, sempre preocupado com todo mundo”, diz.

“Nilton era muito protetor, sempre esteve do meu lado.”

Sâmia, com o apoio da família, decidiu autorizar a doação de órgãos de Nilton. Partes do tecido do pulmão, coração e cérebro dele foram coletadas para que a pesquisa desenvolvida por ele continue. O objetivo é tentar entender por que que um paciente sem nenhuma comorbidade evoluiu tão gravemente.

“A saudade nunca vai passar. Mas temos muito orgulho dele. E a sensação de que ele cumpriu o papel dele e continua sua missão. Mesmo depois de sua morte, a pesquisa vai continuar e esperamos que isso possa a salvar outras pessoas”, diz Neucy.

Mas não é o só a dor do luto que Sâmia e a família têm que enfrentar, mas também a revolta.

“Estou extremamente revoltada. Nilton morreu de uma doença para a qual já há vacina. Ele foi assassinado por um governo genocida”, diz ela, em alusão à gestão do presidente Jair Bolsonaro.

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“Temos um governo que não acredita na ciência, que não investe em pesquisa, que odeia professor. É muito cruel”, finaliza.

Nilton deixa os pais, Nilton e Maria Nércia, duas irmãs, Nádia e Neucy, e a esposa Sâmia, assim como uma dezena de amigos, muitos cientistas como ele.

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