Redação Pragmatismo
Música 09/Out/2020 às 16:10 COMENTÁRIOS
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John Lennon traduziu angústias masculinas que dizem tanto ao século XXI

Publicado em 09 Out, 2020 às 16h10

John Lennon, que faria 80 anos nesta sexta, aos poucos repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época. A partir do romance com Yoko, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas expressou seus erros nessa relação e na que teve com a ex-mulher

John Lennon
John Lennon e Yoko Ono

Silvio Essinger, O Globo

John Lennon não foi o melhor músico e — alguns vão objetar, mas subjetividades são sempre subjetividades — tampouco o mais bonito dos Beatles. Talvez até fosse o mais inteligente, o mais experimental, embora os fãs de Paul, de George e mesmo de Ringo sempre tenham lá seus argumentos.

O que não dá para negar é que, nesta sexta-feira do seu aniversário de 80 anos de idade, Lennon sobrevive na memória coletiva como o melhor espelho para o homem desconstruído de 2020 — aquele que foi levado a reavaliar preconceitos, traumas, questões de poder, religião e a própria masculinidade. Com uma vantagem: dessa inquietação, o inglês fez canções que são patrimônio da humanidade.

“E afinal, o que é rock’n’roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul?” A troça, feita por Humberto Gessinger e seus Engenheiros do Hawaii na canção “O papa é pop”, põe na mesa a eterna rivalidade, camuflada no interior da parceria Lennon-McCartney, que serve de combustível até hoje para intermináveis conversas de bar (ou melhor, de Zoom, dados os tempos pandêmicos).

John era o beatle sarcástico, cerebral, revoltado, que não se esquivava das polêmicas — um irresponsável capaz de dizer que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. E Paul, o compositor do sentimento aflorado, que fazia as grandes canções de amor dos Beatles e que entendia como ninguém os anseios do seu público.

No entanto, nos 50 anos passados desde o fim dos Beatles, o público mudou, bem como as sensibilidades. As grandes canções de amor, é verdade, resistem, assim como Paul, que antes da pandemia continuava bem ativo nos maiores palcos do mundo. Mas o “zeitgeist” nervoso do pop de 2020 tem muito mais a ver com John, um artista que não se acanhou em transformar a terapia em arte, abrindo a alma diante do que a vida trazia para ele, fossem separações, crenças, mágoas, posições políticas, o mal-estar com si mesmo ou o pesadelo após o fim da lua-de-mel com as drogas.

“A única razão pela qual faço música e sou uma estrela é que aqui posso dar vazão às minhas repressões”, disse certa vez.

Sexo, raiva e ativismo

Ainda com os Beatles, Lennon pediu socorro ante o turbilhão de fama que o engolira (“Help!”) e falou de depressão (“You’ve got to hide your love away”), de infidelidade (“Norwegian wood (this bird has flown)”) e do incontrolável desejo sexual (“I want you (she’s so heavy)”). Em carreira solo, expôs sua raiva em relação a McCartney (“How do you sleep?”), mandou o povo ocupar as ruas (“Power to the people”) e, inspirado pela teoria do grito primal do psiquiatra Arthur Janov, exorcizou a perda da mãe, quando criança, em “Mother” — a intensa faixa de abertura de seu primeiro álbum pós-Beatles.

Aos poucos, Lennon repensou sua atitude abusiva de homem inglês de sua época (“Eu costumava ser cruel com minha mulher, e fisicamente — com qualquer mulher”, admitiu) e, a partir do romance com Yoko Ono, o feminino passou a ter centralidade em sua obra. Ele não apenas defendeu Yoko diante dos outros beatles e dividiu discos com ela, mas de forma absolutamente franca falou de seus erros nessa relação (em “Jealous guy”) e na que teve com a ex-mulher, Cynthia.

Depois de um tempo conturbado de separação de Yoko e muita farra (o “lost weekend”), em 1975 John tomou a decisão de interromper a carreira para, junto da mulher, cuidar do filho Sean — o que não conseguira fazer com Julian, filho que teve com Cynthia no começo do sucesso dos Beatles. E, pouco antes de ser assassinado na porta de casa, em 8 de dezembro de 1980, deixou a canção “Woman”, para Yoko.

Quando propunha um mundo sem religiões, em “Imagine”, John Lennon já considerava Deus “um conceito pelo qual medimos a nossa dor” (na letra da canção “God”). Era a expressão madura de um artista que, anos antes, quando os Beatles foram à Índia, ousara questionar o guru Maharishi Yogi e que conseguiu transformar indagações sobre a existência em um hit de rádio (“Whatever gets you thru the night”, em 1974). Com a postura que tem muito a ver com o niilismo dos tempos atuais, Lennon já dizia nos 70: “Não consigo te acordar, você pode se acordar. Não posso te curar, você pode se curar”

Um dos poucos artistas do rock de sua época cujo ativismo político foi consistente — do bed-in com Yoko (contra a Guerra do Vietnã) e o apoio aos Panteras Negras às críticas sociais de “Working class hero” —, Lennon pagou o preço. Se hoje as pessoas reclamam da vigilância eletrônica sobre suas opiniões, há que se lembrar que, nos anos 70, o beatle duramente foi investigado pelo FBI por suas posições antimilitaristas e esquerdistas. E esteve, durante anos, sob a ameaça de ser deportado dos EUA — como tantos imigrantes por lá hoje.

Pode-se tentar imaginar o que John Lennon estaria fazendo e pensando aos 80 anos. Talvez admirasse os jovens progressistas de 2020, talvez apreciasse as redes sociais — ou tivesse muitas críticas a tudo. Mas pode ser ainda que repetisse o conselho do Lennon fictício, velhinho e anônimo, do filme “Yesterday” (2019), passado numa realidade paralela em que ele e Paul nem chegaram a montar os Beatles: “Diga a verdade a todo mundo que você conhece.”

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