Redação Pragmatismo
Guerra injustificável 06/Ago/2020 às 16:43 COMENTÁRIOS
Guerra injustificável

Hiroshima e Nagasaki: 75 anos das duas rosas radioativas, estúpidas e atômicas

Publicado em 06 Ago, 2020 às 16h43

Hiroshima e Nagasaki: Ainda que se considere que tudo em um raio de quilômetros tenha sido dizimado, é cruelmente simbólico que o epicentro da primeira explosão não tenha sido uma instalação militar, mas um hospital

hiroshima nagasaki
Getty Images

Jean Montezuma, Esquerda Online

“Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada”

(Rosa de Hiroshima. Poesia de Vinícius de Moraes, cantada por Ney Matogrosso)

Primeiro foi um clarão intenso, em seguida um forte estrondo. Depois veio uma ventania arrasadora, fruto da onda de choque da explosão. Menos de um minuto antes, quando o relógio marcava 8h15 de uma ensolarada manhã de verão, a vida fluía normalmente na cidade de Hiroshima. Mal sabiam os seus 80 mil habitantes que naquele instante, a 10 km sobre as suas cabeças, um bombardeiro B-29 apelidado de Enola Gay, liberava a bomba Little boy para o seu mergulho mortal. A bomba, com 64 kg de urânio enriquecido, despencou por 44 segundos antes de explodir a 500 metros do chão. Em segundos a cidade deixou de ser cidade, e um terço de sua população seria consumida instantaneamente. Estava feito, e depois daquela manhã, nada mais seria como antes.

Documentos oficiais posteriormente revelados apontam que o alto comitê estadunidense formado para definição da escolha do alvo tinha dois balizadores cruciais para sua decisão: 1) obter o maior efeito psicológico contra o Japão; 2) fazer com que o uso inicial fosse suficientemente espetacular para a importância da arma ser reconhecida internacionalmente quando a publicidade sobre ela fosse liberada. O alvo exato era uma ponte, mas o vento deslocou o epicentro da explosão para o Hospital de Shima. Ainda que se considere que tudo em um raio de 2 km tenha sido dizimado, é cruelmente simbólico que o epicentro dessa explosão não tenha sido uma instalação militar, mas um hospital.

Não satisfeitos, três dias depois os EUA lançaram uma segunda bomba. O alvo inicial era a cidade de Kokura, mas as condições de visibilidade forçaram o plano b. Às 11h da manhã no horário japonês, a bomba de plutônio Fat man era lançada de outro B-29 sobre os céus de Nagasaki. A segunda bomba era ainda mais potente que a primeira, capaz de gerar uma radiação 17 vezes acima do considerado letal. Em 1 segundo, mais uma cidade riscada do mapa e dezenas de milhares de vidas instantaneamente vaporizadas. Em Hiroshima e Nagasaki, nos meses posteriores aos ataques, um total de 80 mil pessoas morreram em decorrência das sequelas geradas pela radiação.

Com a rendição japonesa e o fim da guerra, que somente no Pacífico teve um custo de 25 milhões de vidas, os EUA formaram a “Comissão de baixas das bombas atômicas”. Essa comissão, formada por mil médicos e cientistas estadunidenses e japoneses, não tinha nenhum interesse filantrópico ou humanitário. Os pacientes, literalmente arrebentados pela destruição radioativa, tiveram sua humanidade uma vez mais devassada. Como ratos de laboratório eram submetidos aos mais variados testes. O povo japonês foi usado como cobaia duas vezes. Primeiro, como alvos. E depois, como objeto de pesquisas médicas.

Rosas estúpidas e inválidas

No contexto de julho/agosto de 1945 o uso das armas nucleares não se justificava sequer pela análise fria da estratégia militar. Na Europa o nazismo havia sucumbido, e no pacífico o Japão estava isolado. Por semanas uma ofensiva da Força Aérea dos EUA havia devastado 67 cidades japonesas. Nem mesmo Tóquio foi poupada. No auge dos ataques, em uma só noite, 1.600 bombas incendiárias fizeram arder em chamas a capital japonesa e cerca de 100 mil pessoas, 90% delas civis, morreram somente nesse ataque. Pelo mar, um cerco naval impedia a chegada de provisões ao arquipélago japonês.

O Japão estava cercado, somente a cegueira do seu governo militar fascista impedia o reconhecimento da derrota. Com o fim da guerra na Europa, também a União Soviética voltou seus olhos para o pacífico, e na madrugada de 09 de agosto iniciou uma ofensiva que rapidamente arruinaria o que havia de melhor do exército japonês na Manchúria (nordeste da China). Ainda atordoados pela investida soviética, o conselho de guerra japonês já discutia a rendição quando veio a notícia da bomba em Nagasaki. Mais do que as duas bombas nucleares, foi a ameaça de 1 milhão de soviéticos estacionados a poucos quilômetros do seu arquipélago, que fez o Imperador Hirohito finalmente demover seus generais da intenção de seguir a guerra. Afinal, era melhor negociar com Truman e os ianques, do que com Stálin e o exército vermelho.

Pensem nas crianças mudas, telepáticas

Não foi um ato de guerra, foi um crime contra a humanidade. Inúmeros cientistas e pesquisadores, da biologia, da física, da História, concordam com a tese de que ao utilizar armas nucleares trava-se também uma guerra com o futuro. Os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki, Hibakusha em japonês, levaram sequelas para o resto de suas vidas, legando-as para suas descendências muitas vezes na forma de má formação congênita, além de canceres agressivos e letais. Pesou sobre esses sobreviventes também os efeitos psicológicos de quem viveu na pele um apocalipse radioativo, de ter perdido num segundo famílias inteiras, e de ainda sofrer o preconceito de quem os evitava por medo dos efeitos da radiação.

Aliás, ao longo do século XX, não foram poucas as vezes que o “Tio Samn” esbanjou crueldade cometendo crimes contra a humanidade hipocritamente taxados de atos de guerra. De tantos exemplos, citarei outro emblemático também ocorrido em solo asiático. Como não vir a mente a imagem daquelas fotografias que ganharam o mundo, nas quais mulheres e crianças nas proximidades de Saigon (Vietnã) corriam a esmo pelas estradas, após serem vítimas armas químicas a base de fósforo branco. Ou, novamente no Vietnã, como não registrar que até hoje boa parte dos vastos campos, onde outrora haviam plantações de arroz, seguem inutilizados pelos efeitos do agente laranja, um herbicida que foi despejado à escala dos milhões de litros pelos helicópteros militares; comprovando que naquele país os EUA travaram duas guerras: Uma contra o povo, outra contra a natureza.

Da Rosa de Hiroshima, a rosa hereditária

Por mais cruel e desumano que pareça, do ponto de vista geopolítico e militar, o Japão foi usado como um vasto laboratório de aplicação. Nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, os EUA puderam testar aquilo que passaram ao menos 5 anos desenvolvendo no Estado do Novo México, sede das instalações do Projeto Manhattan. Lá centenas de cientistas, civis e militares, entre eles o físico e diretor do projeto Robert Oppenheimer, perverteram a tecnologia da fusão nuclear a serviço do aprimoramento do arsenal militar yankee.

No Kremlin em Moscou, Stálin entendeu o recado de Truman e seus generais, visto que apenas 4 anos mais tarde, em 1949, também a URSS realizou seu primeiro teste balístico com uma ogiva nuclear. No início dos anos 60, Reino Unido, França e China também desenvolveram armas nucleares. Diante dessa nova corrida armamentista, EUA e URSS usaram de sua hegemonia para aprovar nas Nações Unidas em 1968 o Tratado de não proliferação de armas nucleares (TNP). Centralmente esse tratado, que segue válido até hoje, proíbe o compartilhamento entre as nações de armamento balístico ou mesmo de tecnologia para desenvolvimento de energia nuclear. Porém, permite programas de enriquecimento de urânio e outros compostos para fins “pacíficos”. O Brasil por exemplo, signatário do tratado, domina a tecnologia da fusão nuclear.

No entanto, mesmo com o TNP, no auge da guerra fria estimava-se que havia 70 mil ogivas nucleares no mundo. Atualmente, além das cinco potências nucleares originais, Israel, Paquistão, Índia e Coréia do Norte, ingressaram no “clube atômico”. Estima-se que hoje existam 13 mil ogivas, sendo que 95% de todo esse arsenal está nas mãos de EUA e Rússia. Em 2010, os presidentes Barack Obama e Dmitri Medvedev assinaram o tratado START, um novo acordo bilateral visando a redução de seus arsenais nucleares. Segundo suas cláusulas, as duas potências comprometiam-se a retomar as inspeções mútuas de suas tecnologias nucleares, além de reduzir o seu arsenal estratégico para 4 mil ogivas. Dessas, 1.550 permaneceriam em status de operacional. Ou seja, prontas e devidamente instaladas em mísseis balísticos.

Nessa passagem dos 75 anos de Hiroshima e Nagasaki, lembrar desse episódio é não deixar nublar na memória o potencial destrutivo que uma das mais cruéis invenções humanas pode ter. O imperialismo e sua sede por dominação e poder não ficou no passado, e conflitos geopolíticos cada vez mais graves se acirram. Alguns cientistas políticos argumentam que vivemos uma nova guerra fria, outros alertam que nunca estivemos tão próximos de um novo conflito militar de grandes proporções. EUA e China medem forças em todos os terrenos, inclusive o militar, para saber quem deterá a hegemonia do mundo. Não se trata de um embate conjuntural, é um conflito em escala histórica entre uma potência dominante que vive uma crise de perda relativa de sua hegemonia, e uma potência em ascensão econômica, militar e tecnológica. Assim como nas leis da física dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço; pelas regras do jogo imperialista, duas nações não podem ocupar o mesmo lugar no sistema mundial de Estados.

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