Cinthia Filomeno
Colunista
Cultura 31/Jul/2020 às 16:34 COMENTÁRIOS
Cultura

É tradição e o samba continua

Cinthia Filomeno Cinthia Filomeno
Publicado em 31 Jul, 2020 às 16h34
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Geraldo Filme de Souza (Imagem: reprodução)

Cinthia Filomeno*

Na última coluna falei da importância que Pato N’Água foi para o samba de São Paulo e, principalmente, para a história do samba em geral. Hoje, darei continuidade ao assunto “samba paulista”, para falar de um dos maiores e mais importantes sambistas de São Paulo, que fez o samba dessa terra acontecer, o nosso, Geraldo Filme.

Quando falamos do samba de São Paulo, automaticamente vem a nossa cabeça a figura e a trajetória de Geraldo, esse sambista paulistano que até hoje é considerado por muitos, um dos mais importantes artistas da cultura negra e popular do país. Esses artistas que tanto o admiram falam ainda da desfeita que a indústria fonográfica fez com ele, não dando a devida importância ao seu trabalho. E nós, que vivemos e estudamos o samba, sabemos que essa é uma triste verdade.

Geraldo Filme foi quem pensou o samba dessa cidade; que absorveu o que acontecia na época aqui e nas cidades próximas e foi quem articulou para que esse samba legítimo acontecesse. Ele pensou, fez e mostrou para todo o país, o samba de São Paulo.

É muito comum falar de Geraldo Filme nos discursos sobre o samba paulista nos quais ele é frequentemente apontado, não só como um importante compositor mas, principalmente, como um formador de ideias relacionadas à definição desta cultura, sem esquecer que o samba e toda a cultura que o envolve, tem características específicas surgidas no interior rural do Estado e migrado para a capital, no final do século 19.

Foi na festa do Bom Jesus de Pirapora, cidade do interior de São Paulo, que Geraldo ainda menino foi levado pela mãe, iniciando sua vivência no samba. Assim como ele, iniciaram também essa vivência, outros sambistas de sua geração.

Geraldo era apaixonado por São Paulo e, queria a todo custo, falar da cidade nos seus sambas. Ele, que valorizava como ninguém a nossa cultura queria mostrar que São Paulo, não precisava “copiar” o samba de ninguém, nem da Bahia e nem do Rio de Janeiro, pois São Paulo tinha suas próprias raízes com muita história para contar e cantar em versos e prosas.

Em 1980, aos 52 anos, Geraldo Filme gravou seu único disco interpretando seus maiores sucessos. Esse trabalho revela a mais pura raiz do samba urbano paulista, onde é claramente percebido seu enorme talento de compositor, cantor e poeta. É um disco fundamental porque mostra o espírito negro da maior das nossas cidades através de uma porção de imagens que definem todo o engajamento dele pela luta da afirmação de seus irmãos negros.

Leia aqui todos os textos de Cinthia Filomeno

O repertório desse trabalho é formado por sambas de ouro como “A morte de Chico Preto”, “Mulher de Malandro”, “Eu vou pra lá”, “Garoto de Pobre”, “História da Capoeira”, “São Paulo Menino Grande”, “Vai Cuidar de sua Vida”, “Vamos Balançar”, não esquecendo das duas mais conhecidas pelo público, “Silêncio no Bexiga” e “Vai no Bexiga pra Ver” , já “Tristeza do Sambista” é a única no disco que não é de sua autoria e foi composta por Oswaldo Arouche e Walter Pinho.

Pra finalizar o disco tem “Reencarnação”, que ele com todo seu talento de poeta resume de modo brilhante a sua própria filosofia de vida:

Eu quero ser sambista / Ao renascer de novo / Pra cantar a alegria / E desventura do meu povo / Quero ter muitos amigos / Como tenho atualmente / Cantar samba na Avenida / E nascer negro novamente

Geraldo faleceu no dia 05 de janeiro de 1995, aos 67 anos de idade e, mais uma vez, a morte de um bamba fez estrago na comunidade do samba da cidade. De uma hora para a outra, ele foi internado por conta de uma broncopneumonia agravada pela diabetes e, dias depois, teve uma parada cardiorrespiratória e não resistiu.

Alguns relatos dizem que, Geraldão da Barra Funda – como também era conhecido – não se preocupava com sua alimentação. A tentação era grande, pois era filho de cozinheira e, quando criança, trabalhava entregando marmitas. Diziam que ele aproveitava a hora da entrega para comer os bolinhos de carne que vinham sempre no primeiro plano das quentinhas que sua mãe preparava.

Segundo Plinio Marcos, amigo e parceiro de trabalho, Geraldo era daqueles sambistas que adorava frequentar os almoços da família aos domingos mostrando desde cedo, sua preferência pela feijoada e por quase todos os pratos gordurosos.

Mas deixando de lado os particulares da vida de Geraldo, acredito que ele era quem fazia o samba legítimo de São Paulo porque, além de sambista e boêmio, ele era ligado a calçada, à rua, à poeira e a terra da cidade grande. Nos últimos anos de vida trabalhou na organização do Carnaval da cidade, tornando-se uma referência da cultura do samba junto à cultura negra paulistana.

Tem um aspecto pouco conhecido de sua obra, que é a releitura que ele fez do samba rural paulista em: “Batuque de Pirapora” e “Tradições e Festas de Pirapora”, que trazem elementos do jongo, vissungo e batuques ensinados por sua avó. Infelizmente, ele deixou pouca coisa gravada desses segmentos e, boa parte de sua obra num todo, continua desconhecida. Para se ter uma ideia, o LP “Geraldo Filme” só chegou a ser gravado em CD, em 2003, demorando 23 três anos para ser lançado. Se pensarmos que o CD veio para substituir os LPs, quase na mesma época que Geraldo lançou seu único disco, para ser o protagonista desta indústria, Geraldo com seu trabalho saiu muito prejudicado.

Geraldo Filme, que nasceu Geraldo Filme de Souza, era compositor, cantor e um dos mais importantes militantes negros que São Paulo já teve. Se imortalizou pelo acúmulo de experiência nas rodas, nas reuniões clandestinas, nos cordões carnavalescos e nas escolas de samba de São Paulo e, no “asfalto que hoje cobriu nosso chão”, Geraldo contou em prosa e samba, o cotidiano de tantos chicos pretos e patos n’água que sobrevivem diariamente nas quebradas do Bexiga e em outros becos desse mundaréu paulistano. E ao lançar tardiamente seu primeiro disco desfilou sua poesia cantando a alegria e desventura de seu povo. Poesia essa, que nunca esteve tão atual como agora.

*Cinthia Filomeno é artista visual, pós-graduada em Fundamentos da Cultura e das Artes pelo Instituto de Artes da UNESP, escritora e pesquisadora do samba, e autora do livro Samba: Uma Cultura Popular Brasileira

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