Redação Pragmatismo
Saúde 30/Abr/2020 às 16:24 COMENTÁRIOS
Saúde

Coronavírus em Nova York se transforma em genocídio de negros e latinos

Publicado em 30 Abr, 2020 às 16h24

Coronavírus escancara disparidades gritantes em Nova York: doença está matando o dobro de negros e latinos em comparação aos residentes brancos

coronavírus nova york
(Imagem: New York Times)

Michael Schwirtz, The New York Times

Faz horas que o homem de 71 anos do quarto 3 da unidade de terapia intensiva (UTI) morreu de covid-19, a doença causada pelo coronavírus. Seu corpo foi limpo, empacotado em uma bolsa laranja e coberto por um lençol branco, mas a sobrecarregada equipe de transporte do necrotério ainda não chegou.

As enfermeiras de plantão têm muitas outras preocupações. O Hospital Universitário do Brooklyn, no coração de Nova York, a cidade mais atingida por uma pandemia que se propagou por todo o mundo, pode parecer que está desmoronando. O telhado tem goteiras. Os tubos corroídos explodem com uma frequência alarmante. Em uma das UTIs, lonas plásticas e fita adesiva servem como frágeis barreiras que separam os pacientes. As enfermeiras registram sinais vitais com caneta e papel em vez de usarem sistemas informatizados.

Um paciente no quarto 2 está com a pressão arterial cada vez mais baixa e precisa fazer um ultra-som. Um terapeuta está tentando acalmar uma mulher no quarto 4, que está entubada e semiconsciente e tentou arrancar o tubo respiratório quando as faixas que imobilizavam seus braços foram retiradas.

Genevieve Watson-Gray, enfermeira-chefe em serviço, disse que conta com fé e oração para preencher a lacuna entre necessidade e realidade. “Saber que há uma força maior lá em cima”, ela disse, dá esperança.

Todos os hospitais de Nova York têm lutado para lidar com a pandemia, mas o surto revelou as profundas disparidades no sistema de saúde da cidade. O vírus está matando o dobro de negros e nova-iorquinos latinos em comparação aos residentes brancos, e os hospitais que atendem os pacientes mais doentes geralmente trabalham com o menor número de recursos.

Hospitais privados ricos, principalmente em Manhattan, conseguiram reunir reservas de dinheiro e influência política para aumentar rapidamente a capacidade de internação, acelerar os testes e adquirir equipamentos de proteção. No auge da onda, o sistema de saúde do Monte Sinai conseguiu alistar aviões particulares da empresa de Warren Buffett para trazer máscaras N95 da China.

O Hospital Universitário, que recebe financiamento público e faz parte da Universidade de Ciências da Saúde SUNY Downstate, tentou arrecadar dinheiro para comprar equipamentos de proteção por meio da plataforma de crowdfunding GoFundMe, a campanha foi iniciada por um médico residente.

A maioria dos pacientes do hospital é pobre e negra, e obtém mais de 80% de sua receita de programas governamentais como Medicare e Medicaid.

Robert Foronjy, chefe do departamento de medicina pulmonar e de cuidados intensivos do hospital, supervisiona a unidade com lonas plásticas e fita adesiva. Ele disse que não acreditava que nenhum paciente tivesse morrido por causa de recursos inadequados. Mas as instalações “envelhecidas e em ruínas”, disse ele, tornaram o trabalho de cuidar desses pacientes muito mais difícil.

“Por que um negro não deveria ter instalações que estejam no mesmo nível de outras populações de pacientes?” ele disse.

‘Precisamos de um novo hospital’

Era fim de fevereiro e Wayne Riley, presidente da Universidade de Ciências da Saúde SUNY Downstate, estava em uma conferência em Atlanta quando seu telefone começou a receber mensagens de casos da doença. Estava ficando mais claro que o novo coronavírus, que devastara partes da China e da Itália, começara a se espalhar rapidamente nos Estados Unidos.

“Eu disse: ‘Meu Deus, se isso realmente se enraizar nos Estados Unidos, então, aqui no Brooklyn, teremos um problema'”, lembrou.

Riley não se preocupou apenas com os recursos que seriam necessários para prestar assistência durante uma pandemia, mas também temeu que os pacientes do hospital fossem particularmente suscetíveis à doença.

As regiões centrais do Brooklyn, onde vive a maioria dos pacientes do Hospital Universitário, East Flatbush e Prospect Lefferts Gardens, têm concentrações acima da média de doenças crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade, que estudos preliminares mostraram aumentar a letalidade da covid-19.

O hospital foi inaugurado em 1963 e deveria receber cerca de 60 mil visitas por ano. Apesar de quase não ter melhorias físicas, ele agora lida com cerca de 200 mil visitas anualmente. O edifício de concreto que lembra um bunker está desmoronando por dentro. No início deste ano, um teto com vazamento forçou uma evacuação temporária de bebês prematuros de uma UTI neonatal.

“É muito, muito velho em comparação com outros hospitais ao longo do rio “, disse Riley. “Precisamos de um novo hospital para estarmos preparados para a próxima pandemia e para melhor servir a nossa comunidade.”

As placas dentro do hospital são escritas em inglês, espanhol e crioulo, um reflexo do grande número de imigrantes na área, principalmente das ilhas do Caribe.

Muitos dos pacientes trabalham, mas são pobres ou recebem assistência do governo. Muitos não têm seguro de saúde e usam o hospital para emergências e primeiros socorros. Eles vêm de um albergue masculino da rua de cima ou de uma casa na vizinhança para os sobreviventes de violência doméstica para receber medicamentos e verificar o diabetes.

“O estresse do dia a dia nessas comunidades é simplesmente incrível, e isso está impulsionando essas condições”, disse Moro Salifu, chefe do departamento de medicina do hospital.

O hospital está em desequilíbrio financeiro há anos. Uma auditoria de 2013 pelo escritório do controlador estadual descobriu que estava no caminho da insolvência. A auditoria constatou que estava sangrando milhões de dólares a cada semana, e apenas infusões de dinheiro do Estado o mantinham vivo. Ele também foi mal gerenciado. As auditorias subsequentes descobriram que os líderes do hospital usaram dinheiro do governo em uma festa de aniversário nas Bermudas para um consultor que recebeu dezenas de milhões de dólares, mas fez muito pouco para melhorar as finanças do hospital.

Riley, que se tornou presidente da universidade em 2017, após a comemoração do aniversário das Bermudas, insistiu que os recursos limitados não haviam afetado a qualidade do atendimento. O hospital, no entanto, foi, por vezes, acusado de violar os padrões de segurança.

Em julho passado, o hospital suspendeu seu programa de transplante depois que uma análise descobriu altas taxas de mortalidade e sérias preocupações de segurança. Dois médicos – o ex-chefe do departamento de cirurgia e outro cirurgião – entraram com ações judiciais por rescisão indevida, acusando funcionários do hospital de demiti-los como retaliação por suas queixas em relação aos padrões de segurança negligentes. O programa foi reativado desde então.

Mesmo assim, o hospital é vital para a comunidade. Juntamente com sua universidade afiliada, é o quarto maior empregador do Brooklyn. A universidade, que faz parte do sistema da Universidade do Estado de Nova York, é a maior faculdade de medicina da cidade de Nova York e forma uma grande porcentagem dos médicos que trabalham aqui.

Quando a pandemia chegou à cidade, Andrew Cuomo, governador de Nova York, ordenou que o hospital recebesse apenas pacientes que tinham o vírus. A decisão irritou os profissionais da saúde e outros, que se queixaram de ter que arcar com o fardo pesado com recursos limitados.

“Agora estamos em uma situação em que um hospital com recursos insuficientes está sendo solicitado a administrar o epicentro da crise”, disse Zellnor Myrie, senador estadual democrata cujo distrito inclui o Hospital Universitário. “Os dólares que não investimos anos atrás estão afetando as decisões de vida ou morte agora.”

‘Essa é a mãe de alguém’

O primeiro paciente com covid-19 no Hospital Universitário, uma mulher de 74 anos em diálise com hipertensão e diabetes, foi identificado em 12 de março.

“Recebi a primeira chamada às 17h51 de que havia chegado o nosso primeiro caso”, disse Salifu, chefe do departamento de medicina. “Lembro exatamente onde eu estava em 11/09 e sei exatamente onde estava quando recebi essa ligação.”

Em questão de dias, a apertada sala de emergência, que parece ser a mesma desde que o hospital começou a funcionar, estava superlotada. Às vezes, mais de cem pacientes com febre e tossindo se acumulavam pelos corredores e salas laterais ou eram agrupados na enfermaria, lançando o vírus no ar.

O hospital quase ficou sem ventiladores pulmonares. Julie Eason, diretora do setor de fisioterapia respiratória, disse que teve de “ser um pouco criativa” enquanto tentava racionar recursos à medida que recebia todos os códigos 99, o termo usado quando um paciente precisa ser entubado.

“Era apenas interminável”, disse ela. “O código 99 vinha de três, quatro quartos diferentes, todos em poucos minutos, um após o outro, o dia inteiro.”

Médicos começaram a adoecer e muitos enfermeiros terminaram entubados nas UTIs do hospital.

“Ter que trabalhar com uma infraestrutura tão antiquada é incrivelmente estressante”, disse Forojy. “Você precisa se preocupar mais com a própria segurança.”

Os departamentos de saúde do estado e da cidade não divulgaram dados de taxas de mortalidade por hospital, mas dada a alta ocorrência de condições pré-existentes entre pacientes do Hospital Universitário, os médicos estimam que suas taxas de mortalidade devam estar entre as mais altas da cidade.

Quando o número de mortos começou a aumentar, os corpos sobrecarregaram o minúsculo necrotério do hospital com capacidade para dez pessoas. Então, encheram não um, mas dois caminhões frigoríficos estacionados do lado de fora.

O agente funerário do hospital, Michael McGilicuddy, precisou contratar seis novos funcionários para ajudar a administrar o necrotério. Recentemente, um fluxo contínuo de carros funerários têm chegado ao hospital a cada dia para coletar os corpos, mas em pouco tempo outros ocupam o lugar daqueles que foram levados.

“Estou fazendo isso com dignidade, tentando não empilhar os corpos”, disse McGillicuddy. “Essa é a mãe ou a avó de alguém.”

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