Redação Pragmatismo
Racismo não 29/Nov/2019 às 13:39 COMENTÁRIOS
Racismo não

Pai defende melhor amigo do filho de ataque racista e viraliza nas redes

Publicado em 29 Nov, 2019 às 13h39

Bullying e racismo são coisas distintas? Caso de pai que defendeu melhor amigo do filho viralizou nas redes e foi tratado pela maioria dos veículos de comunicação como 'bullying'. A prática pode ser tão preocupante quanto o racismo, mas tem origem discriminatória diferente

Conversa entre pai e filho repercutiu nas redes sociais — Foto: Reprodução/Facebook

Nathália Geraldo, portal Universa

Ser uma criança negra em ambientes em que as interações são feitas diretamente com outras crianças brancas, como festinhas de aniversário, brincadeiras no prédio e na escola, é viver cercado por um conceito nem sempre fácil de explicar, especialmente para os pequenos: o racismo estrutural.

Ele ganha voz quando um amiguinho chama o outro de “macaco”, quando impede de brincar com outras crianças ou puxa o cabelo crespo do outro. Acontece que esses comportamentos, de acordo com especialistas, quase sempre são disfarçados e amenizados sob o nome de bullying — uma prática tão preocupante quanto os comentários racistas, mas que tem origem discriminatória diferente.

Como identificar cada situação e o que fazer com as crianças envolvidas em episódios assim? Conversamos com mães e psicólogas para entender a diferença de racismo e bullying e como enfrentar o primeiro.

“Não é bullying, é racismo”

O racismo estrutural é um dos braços do racismo sustentado para privilegiar pessoas brancas, e que associa pessoas negras a espaços e estereótipos de cunho negativo. Por estar tão enraizado, ele também se reflete nas atitudes de crianças, como aconteceu em um caso de preconceito racial que foi denunciado por uma criança durante uma festinha infantil e que viralizou na internet.

No episódio, um amiguinho da criança estava sendo chamado de “preto e gordo” por outros menores. O menino resolveu comunicar seu pai sobre a situação e pediu para que ele fosse buscá-lo.

Infelizmente, os xingamentos racistas entre crianças não são tão incomuns, como explica a professora de educação básica Liliana Marcelina Soares Costa, que é mãe de dois meninos negros: Gustavo, 9 anos, e Murilo, 8.

Meus filhos não sofrem preconceito na escola pelo fato de eu estar lá. Mas já vi criança chamando outra de macaca e outra aluna, que é negra, tendo seus cabelos crespos puxados. E nesse caso, levei para a direção da escola e eles não chamaram os pais, o que me deu um desânimo“, explica.

Liliana conta que é comum que professoras brancas nem sempre enxerguem que, por trás do xingamento, há uma questão racial, e que se preocupem com ações de valorização da autoestima da criança negra, apesar de, de uma forma ou outra, se esforçarem para uma educação antirracista.

Fora da escola, eles já sofreram. No condomínio onde moramos, dois meninos brancos ficaram ‘de mal’ com meu filho e falaram para as outras crianças não brincarem com eles, que são os únicos negros“.

Por que é importante não tratar como buylling?

Para a psicóloga com abordagem psicanalítica Marleide Soares, que atua no enfrentamento do racismo no ambiente escolar com rodas de conversas sobre o tema nesses espaços, diferenciar bullying de racismo é fundamental para que a pauta da discriminação racial não seja invisibilizada.

Isso porque enquanto há um pacto e um entendimento social de que o bullying precisa ser combatido, no caso do racismo, as agressões tendem a ser vistas como normais. Vale dizer que o racismo (e, mais especificamente, a injúria racial), define a especialista, está ligado a ideia de que a cor da pele ou as características físicas da raça negra, como cabelo, olhos e nariz, de uma pessoa são vistas como “menos bonitas”, “de valor menor” e desqualificadas.

Parece que não há uma necessidade de enfrentamento, mesmo racismo sendo crime no Brasil. Por isso é importante diferenciar que bullying não é racismo“, pontua.

Além dos xingamentos mais comuns, como “macaco, fedido, feio, cabelo duro”, a psicóloga também orienta que os adultos fiquem de olho em atitudes não verbalizadas. Entram nesse rol o fato de uma criança não querer dançar com uma criança negra nas festas juninas ou não segurar a mãozinha do amigo negro durante brincadeiras. “A criança não tem repertório para verbalizar, mas a criança negra sabe que está relacionado a isso“.

O que fazer

A psicóloga explica que a agressão racista entre os pequenos não pode passar batida. “A professora ou o professor devem identificar a situação de violência e agir automaticamente, assim como os pais. A sugestão é ter uma ação de afeto positivo, abraçar essa criança, para que ela se sinta cuidada“.

Senão a criança é ‘revitimizada’ [vítima da agressão e do silenciamento sobre o episódio]. Aí, gera um microtrauma acumulativo, que são pequenas ações do cotidiano que resultam num grande trauma e podem se acumular com outros sofridos na vida adulta“, detalha.

E o que fazer quando quem agride também é negro? “O exercício de se colocar no lugar do outro deve ser empregado desde cedo, por isso, se a criança negra é a agressora, é importante trabalhar o sentimento de fraternidade, de igualdade. Muitas vezes a criança negra pode ser autora de bullying [ou de racismo] como forma de se vingar da agressão sofrida. Neste caso, a criança deve ser educada com base na empatia“, explica a psicóloga e psicopedagoga Camila Generoso.

Meu filho é racista? O que fazer para educá-lo diferente?

Uma das criadoras do perfil no Instagram Criando Crianças Pretas, a publicitária Deh Bastos pondera que, pelo fato de o racismo no Brasil ser sutil, nem sempre admitimos que a sociedade é racista — e que, como as crianças são reflexo do meio social, também podem reproduzir essa lógica de pensamento.

A criança aprende que o sol é amarelo, que as folhas são verdes e assim faz com as pessoas. Se a criança branca vê que todas as pessoas que a servem e as que estão em situação de invisibilidade social são em maioria negras, ela não cria uma relação com elas, não gera afeto, admiração, respeito; assim, pode acabar reproduzindo comentários racistas“.

Por outro lado, a publicitária, que gera conteúdo sobre educação antirracista na rede social, explica que nem sempre uma criança negra tem o “letramento racial” dentro da família, ou seja, não tem consciência de raça — o que impacta diretamente na construção de sua autoestima e na forma com que se relaciona com os amiguinhos.

No Criando Crianças Pretas, a gente se preocupa em perguntar: ‘você já contou para o seu filho que ele é negro?’. Porque tem famílias que não entendem esse processo, e aí a criança reage sendo violenta demais, silenciada demais…Tudo isso dentro de uma sociedade que diz o tempo inteiro que ser preto é uma coisa ruim“, explica a publicitária, que criou a página ao lado da jornalista Paula Batista, que também é mestre em Divulgação Cientista e Cultural pela Unicamp .

Falar com todo mundo sobre racismo

Levar as questões raciais para debaixo do tapete, assim, não é a melhor saída. “Se uma criança agride a outra por racismo é importante que ela saiba que causou sofrimento na amiguinha ou no amiguinho, mas com cuidado, porque ela também é vítima de uma estrutura racista e não deve ser ela ‘a pagar’ por isso. Digo que o racismo deve ser tratado com todas as crianças, já que a escola é o primeiro espaço social que elas são inseridas depois da família“, diz Marleide.

Paralela à luta antirracista, está a valorização dos negros na educação das crianças, brancas e negras. “Os pais brancos podem humanizar as pessoas negras que convivem com a criança branca, por exemplo. Geralmente, o homem que recebe os alunos na escola é negro; o pai pode pedir para a criança perguntar o nome dele“, sugere Deh Bastos. “Livros, filmes, desenhos animados com personagens negros também podem ajudar nesse processo“.

O que vem da infância

O racismo na infância reverbera também na fase adulta. Depois da publicação de um vídeo sobre o tema pela youtuber Gabriela Oliveira, muitas pessoas comentaram nas redes sociais como sofreram episódios de racismo que foram atenuados sob a visão do “bullying”.

Camila Generoso explica que, lentamente, essa visão está sendo mudada. “Hoje as pessoas estão dando mais importância à saúde mental e principalmente à saúde mental infantil. E o que antigamente era somente ‘brincadeira’, hoje tem nome; o que visto como ‘normal’ sempre foi racismo, porém os negros eram ensinados a engolir e a se sentirem merecedores daquela agressão. Agora, as pessoas estão cada vez mais conhecedoras dos seus direitos, os negros estão buscando seus espaços“.

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