Redação Pragmatismo
Ciência 11/Jul/2019 às 17:20 COMENTÁRIOS
Ciência

A descoberta que pode reescrever a nossa história

Publicado em 11 Jul, 2019 às 17h20

Dois crânios ameaçam mudar a história da nossa espécie: novo estudo obrigaria a jogar no lixo todos os livros didáticos sobre a evolução humana, embora alguns especialistas alertem que ainda é cedo para fazer isso

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Apidima da esquerda é um humano moderno e o apidima outro é um Neanderthal (IMAGEM: Katerina Harvati | Eberhard Karls University of Tubingen)

Nuño Domínguez, ElPaís

Um par de crânios encontrado há décadas em uma caverna no sul da Grécia fez surgir agora uma tese que obrigaria a jogar no lixo os livros didáticos sobre a evolução humana, embora muitos especialistas independentes alertem que ainda é cedo para fazer isso.

Os dois crânios foram encontrados nos anos setenta. Estavam a poucos centímetros um do outro, incrustados na rocha da gruta de Apidima, em um penhasco salpicado pelas ondas do Mediterrâneo. Um dos crânios conservava os ossos do rosto e o outro, apenas a parte de trás da cabeça. Inicialmente, foram atribuídos a neandertais, a espécie humana prima da nossa que ocupou a Europa durante centenas de milhares de anos antes de se extinguir misteriosamente há 40.000 anos, exatamente quando os sapiens chegaram ao continente.

Agora, uma equipe de paleoantropólogos voltou a datar os dois crânios e os reconstruiu em três dimensões para analisar em detalhes sua fisionomia. Os resultados, publicados nesta quarta-feira na Nature, apontam que o crânio mais antigo e incompleto tem 210.000 anos e é de um Homo sapiens, o que o transformaria no membro da nossa espécie mais antigo já encontrado na Europa.

Essa tese é um tremendo golpe na versão clássica − que ainda é a mais aceita − sobre a origem da nossa espécie. Segundo o relato clássico, os sapiens surgiram no leste da África. Dois dos fósseis mais antigos da nossa espécie datam de 196.000 e 160.000 anos atrás e foram encontrados na Etiópia. A análise de DNA de populações atuais fixa a origem da espécie em cerca de 200.000 anos atrás.

Em estudos anteriores, a análise de DNA também mostrou que 100.000 anos depois os sapiens saíram pela primeira vez de seu berço africano para explorar a Eurásia. Nessa aventura, encontraram-se com os neandertais e tiveram filhos com eles, mas aquela onda de humanos sábios não se estabeleceu completamente. Nenhuma das pessoas atuais descende deles, e sim de uma incursão posterior, há 70.000 anos. Esta foi a que triunfou e povoou todo o planeta, enquanto os neandertais desapareceram para sempre.

Há dois anos, uma equipe de paleoantropólogos desfechou um duro golpe nesse relato clássico ao apresentar os mais antigos fósseis conhecidos do Homo sapiens, de 315.000 anos atrás. Foram encontrados no Marrocos, muito longe do suposto berço da nossa espécie. Aquela descoberta revolucionária abriu caminho para o que propõe agora o novo estudo dos restos gregos, cujos autores oferecem um assombroso relato de um capítulo até agora desconhecido de nossa história como espécie.

Nesse relato há outra peça-chave: o segundo crânio encontrado em Apidima, aquele que tem rosto. Segundo a nova análise, ele data de 170.000 anos atrás e pertence a um neandertal. Isso significa que houve um grupo de sapiens que saiu da África muito antes do que sabíamos, chegou até o sul da Europa e se instalou por lá, embora tenha finalmente perdido a batalha, porque foi substituído por neandertais.

As provas que sustentam essa versão são uma datação dos isótopos de urânio e tório acumulados nos fósseis e uma análise morfológica dos dois crânios. O mais antigo e incompleto, o número 1, foi comparado a dezenas de restos de Homo sapiens e neandertais de diferentes épocas. Segundo os autores, apresenta características típicas da nossa espécie, como a ausência do coque occipital, uma protuberância que os neandertais tinham na nuca.

Se nossas análises estiverem corretas, os Homo sapiens entraram na Europa mais de 150.000 anos antes do que pensávamos, o que levanta muitas possibilidades sobre a origem da nossa espécie e sobre o que acontecem com eles”, assinala Chris Stringer, pesquisador do Museu de História Natural de Londres e coautor do estudo. Ele reconhece que quando enviaram seu estudo para a Nature, uma das revistas científicas de maior prestígio, “os revisores se mostraram muito céticos de que um fóssil de humano moderno tivesse sido encontrado ao lado de um fóssil de neandertal”. Os responsáveis pela publicação os obrigaram a fazer mais análises comparativas e datações de urânio, que finalmente os convenceram.

Esse estudo, juntamente com outras evidências anteriores, “demonstra que em mais de uma ocasião os humanos modernos se aventuraram para o norte e o oeste do planeta, da África até o Oriente Médio e a Europa”, escreve o paleoantropólogo Eric Delson, do Museu Nacional de História Natural dos EUA, em uma análise sobre o estudo da equipe de Stringer publicado pela Nature. O trabalho revela as “migrações faltadas” do Homo sapiens, afirma Delson.

“Faltam evidências”

No entanto, nenhum dos especialistas consultados pelo ElPaís aceita as conclusões do estudo. “Trata-se de uma afirmação extraordinária, mas faltam evidências para sustentá-la”, opina Juan Luis Arsuaga, codiretor da Fundação Atapuerca. Em 2017, esse paleoantropólogo participou da datação de isótopos de urânio do crânio 2, o mais completo, que mostrou uma antiguidade de pelo menos 160.000 anos. O pesquisador diz que a morfologia do crânio 1 é totalmente compatível, na verdade, com a de um neandertal primitivo que ainda não tinha desenvolvido suas características típicas na parte posterior do crânio.

Que dois crânios encontrados a poucos centímetros um do outro sejam de duas espécies diferentes separadas por mais de 40.000 anos é coisa de romance de ficção. Não acredito nos novos dados e vamos contestar esse estudo”, alfineta o paleoantropólogo.

Warren Sharp, do Centro de Geocronologia de Berkeley (EUA), assinala que a datação do crânio 1 “não se sustenta”. “As diferentes datações individuais obtidas para esse fóssil divergem de 335.000 anos atrás a 142.000 anos atrás, o que sugere que o fóssil perdeu parte do urânio que tinha originalmente. Isto implica que a idade atribuída a ele é muito antiga”, explica.

Amélie Vialet, pesquisadora do Museu Nacional de História Natural da França, opina que “a explicação mais plausível é que os dois crânios tenham ficado presos aos sedimentos da caverna na mesma época e que ambos sejam neandertais”.

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