João Miranda
Colunista
Política 22/Jan/2019 às 20:31 COMENTÁRIOS
Política

O retrato de uma classe

João Miranda João Miranda
Publicado em 22 Jan, 2019 às 20h31

Visões de uma classe refletida numa live do facebook

João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político

Um vídeo de setembro do ano passado que mostra um político qualquer chorando e enxugando as lágrimas numa bandeira viralizou nas redes sociais recentemente.

Vi o vídeo e fiquei sem palavras. O papinho cheio de groselha do moleque em questão já é conhecido, mas desta vez o cara se superou. Cheguei a rir de nervoso. O que dizer desse sujeito? O vídeo é evidência cabal de que o sujeitinho mimado, que parece se achar a última bolacha do pacote, está se desenvolvendo: já era um debiloide que desmaia pra fugir do debate, agora é ainda mais. Que apelo mais baixo esse vídeo que esse filhote de fascista fez.

Lembrei da Dilma quando vi esse vídeo. Aquela mulher passou por tantas adversidades em seu governo, foi vaiada em um estádio de futebol, fizeram um adesivo extremamente abusivo simulando estupro, enfim, passou por várias e não derramou uma lágrima. Aí vem o floquinho de neve fazer biquinho de choro porque está sendo investigado por casos de corrupção. Que vergonha!

O vídeo é, de longe, o retrato de um play boy. O cidadão acha que o mundo é uma espécie de continuação de sua casa — onde todo mundo teria que ser um papai ou uma mamãe complacente, que tudo concede;  foi ensinado a acreditar que merece, seja lá o que for que queira. E quando não consegue o que quer, sente-se traído e revolta-se com a “injustiça”.

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O tipinho sempre teve tudo do bom e do melhor. O ato falho ambulante se acha “machão”; bate em mulher, enquanto posta nas redes sociais foto de armas enormes para compensar algo. É um cagueta que mente até na vírgula e no pingo do i.

O lamentável é que esse papa nutella não está sozinho. Mais do que um retrato de um play boy, o vídeo representa uma forma de ser de quase toda uma classe social que, dentre outras coisas, é profundamente contra as políticas que possibilitaram alguma ascensão social e intelectual às classes mais desfavorecidas. Todas as medidas de investimento nas camadas mais populares – como as cotas raciais e sociais nas universidades e no serviço público, os programas de transferência de renda, a extensão dos direitos trabalhistas as trabalhadoras domésticas, a elevação constante do salário mínimo – são vistas por essa gente como uma conta com a qual ela deverá arcar por meio do aumento de impostos. Incomoda também porque fere os seus valores da ideologia meritocrática, além de pôr em risco a reserva de mercado que os seus filhos têm nas universidades, no setor público, dentre outros espaços de privilégio.

Com essa gente não há diálogo. Quando dizem que a serpente chocou, eles são o ovo. É inútil e masoquismo tentar estabelecer diálogo com quem não tem abertura para ideias contrárias. Percebi da pior forma que é um castigo de Sísifo tentar dialogar com gente que vive voltado para o mar e de costas para o Brasil. Eu apresentava os meus argumentos, escutava, mas, independentemente do esforço dispendido, sempre acabavam rolando a pedra ladeira abaixo, enquanto berram esbaforidos que o país antes caminhava pro socialismo (oi?), porque vivíamos numa “ditadura de esquerda” (como?).

Convivi com essa gente durante alguns anos no período em que estive em um cursinho caro da minha cidade. Estava lá por conta da bolsa que ganhei, um descontão que permitia que um filho de trabalhador estudasse ao lado do filho do prefeito.

Lembro bem que sempre que a professora de redação perguntava quem era a favor das cotas, somente eu levantava a mão de uma sala de duzentos floquinhos de neve. Essa mesma professora indicava como leitura para atualidades a revista Veja.

Como não rolava estudar em casa, ficava o dia todo no cursinho, estudando, com fome. Várias vezes encontrei uma senhora responsável pela limpeza chorando num canto do cursinho por conta da forma como era tratada pelos estudantes. É uma senhora negra, na época com os seus sessenta anos, que pegava quatro ônibus para chegar até ali. Sonhava com o dia em que a neta fosse pra faculdade.

É impressionante como são alienados aqueles meus colegas papa nutella. Incrível como esse país é desigual. Depois da aula, enquanto eu contava as moedas que tinha para comer no restaurante popular, os meus colegas passavam do lado fazendo barulho com a bmw do papai.

No período, também trabalhei de garçom em lugares caros da cidade. Era uma correria louca. Tínhamos que montar todo o local da festa, atender os convidados durante a festa e depois desmontar tudo. Cheguei a trabalhar sem parar durante 32 horas para ganhar cenzão. E ainda tínhamos que mediar os reclames da playboyzada. Lembro dos convidados reclamando da falta de gelo no whisky, enquanto os meus companheiros de trabalho cambaleavam de sono segurando a bandeja pesada na alta madrugada. Certa vez uma senhora muito bem vestida me puxou pela roupa e disse: “não volte mais aqui, filho da puta”. Ela ficou brava porque me chamou mais de uma vez e não ouvi. Evitei a mesa dela com prazer; serviço a menos, afinal. Anos depois vi ela, novamente, numa foto. Estava de óculos escuros, camisa nova da cbf, marchando na principal avenida da cidade.

Isso que compartilho não é nem metade da história. Mas, tô ligado que o que vivi não é nada. Sei que existem pessoas que sofrem muito mais, mas a humilhação que sofri e em alguma medida ainda sofro é suficiente para eu entender, claramente, que o sujeitinho do vídeo, enxugando lágrimas na bandeira, faz parte de uma classe de gente que está acostumada com a opulência em que vivem nos condomínios luxuosos. Para essa galera cínica, morango só é bom com a preta de ladoCaixas-de-pandora-ambulante, não entendem que o país é muito mais do que qualquer zona-sul. Ainda nos treinam pra ser os escravos da casa/Agradecidos por servir a lagosta defumada.

E essa lógica de condomínio cria envolta deles fortalezas que não os deixam aceitar qualquer coisa que fuja de sua cosmovisão formada pelas propagandas das marcas de grife e grande mídia. Vivem envolta de cercas e grades combatendo tudo o que é diferente, tudo o que não for espelho, como se fosse ameaça. Mandam para Cuba qualquer um que não se faça de cego aos direitos humanos, aos direitos das minorias, à universalidade e diversidade da vida. Vivem na escuridão de sua própria ignorância e insignificância escondendo o vazio existencial dentro da bolsa cara e abafando o cheiro de medo com perfume francês.

O engraçado é que, de repente, essa gente “acordou”. Afinal, por conta de algumas migalhas distribuídas, de repente o sertanejo de “Os sertões” não mais passava fome. O negro de “Casa-grande & senzala” estava na universidade. Os retirantes Manuel e Rosa de “Deus e o diabo na terra do sol” e o ingênuo Fabiano de “Vidas Secas” tinham casa própria financiada em décadas pela MRV e empregos precarizados. Macabéa de “A hora da estrela” estava “doutrinando” as crianças nas escolas com “mamadeira de piroca” e “kit gay” em troca de um salário de fome.

Indignados com esses perigos, o povo da cbf pegaram o carrão e a panela e foram pra avenida para salvar o país do primeiro passinho da Justiça social. Entenderam que era hora de reviverem a saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade! A marcha que, segundo eles, “salvou” o país de uma “ditadura comunista” e nos garantiu 20 anos de “paz e prosperidade”. São cheios de força e pó contra o canhão da corrupção, desde que não seja a dos políticos de estimação!

O protagonismo da alta classe média foi grande também porque essa gente dispõe de uma posição estratégica no Judiciário. Então, segmentos dessa classe que ocupam a cúpula dessa instituição – juízes, procuradores, desembargadores, defensores públicos, delegados e outros – valem-se de suas posições para de maneira quase unilateral denunciar, investigar e perseguir figuras conhecidas e não-conhecidas do campo progressista. E, assim, denigrir a imagem de militantes e de seus principais representantes, de modo a colocar na parede a esquerda como um todo, criando assim um clima ‘schmittiano’ de suspensão da lei.

Até as pedras do calçamento viram as redes corporativas de notícias receberem das operações de investigação uma série de informações, delações, áudios vazados e, com todo esse aparato, cobrirem exaustivamente as operações, explorando tudo em seus mínimos detalhes e, quase sempre, fazendo ilações, apostando em denúncias, até condenando moralmente os envolvidos antes do julgamento.

O sangue das pessoas que morrerão por causa do atual governo está nas mãos dessa classe anestesiada com cocaína que só quer saber de respostas simples para perguntas complexas.

Para mim é mais do que evidente que, na luta em prol de um mundo mais justo, é uma grande perda de tempo contar com esses reaças que sentem nojo de nós — os de baixo. Guardo e nutro uma profunda raiva dessa classe que tanto me humilhou e continua humilhando a mim e aos meus companheiros e companheiras. Para mim, essa classe defensora canina do capitalismo é minha inimiga pública, assim como o grande capital. Sinto que são poucas as pessoas que militam ao meu lado que, de fato, entendem o que é ter essa raiva correndo nas veias — e o quão é difícil não deixá-la se tornar veneno. É preciso ter paciência e continuar na luta.

Pessoas como essas que descrevi acima são, a meu ver, o “núcleo duro” do eleitorado do Bolsonaro. É a parcela de eleitores profundamente ideologizada, de extrema-direita, muito barulhenta, guiados pela “defesa da ordem” (baseada na tradição, família, prosperidade e profundamente contra as conquistas das mulheres e de minorias como LGBT+). Essa parcela, contudo, não é a maior.

O grosso dos eleitores do novo governo é composto por trabalhadores que encontraram na figura do atual presidente um caminho para escapar das contradições do sistema representativo; estão revoltados com a captura da pólis promovida pelo capital e querem uma saída rápida.

É gente que possui todas as razões para ter pressa, vale apontar. Afinal, hoje as pessoas morrem mais do que antes, perdem seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais; a escalada da violência é gigantesca. Diante dessa progressiva deterioração da vida, desejam que uma mudança profunda no sistema político-institucional ocorra.

Neste sentido, é preciso deixar claro que precisamos trazer para o nosso lado esse conjunto da classe trabalhadora que votou em Bolsonaro, esse conjunto que não é convicto em relação ao apoio a esse fascista — e que aos poucos está deixando de apoiar o novo governo.

Já com os filhos da casa grande não precisamos contar não. E é bom que o chorão do vídeo saiba que está muito enganado se acredita que as suas lágrimas de crocodilo enganam alguém. É bom que esse filho adotivo espiritual de Caim, e sua classe merdosa de intrigas e falsidades, acostume-se com a ideia: o “mito” vai cair!

*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e trabalha na rede pública do Estado do Paraná. Email: [email protected]

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