Redação Pragmatismo
Religião 30/Jan/2019 às 14:16 COMENTÁRIOS
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Leonardo da Vinci era um gênio de pouca fé?

Publicado em 30 Jan, 2019 às 14h16

Serão impressionantes em 2019 as celebrações sobre Leonardo da Vinci, este gênio que deixou um igualmente impressionante patrimônio artístico, científico e literário

 

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Leonardo da Vinci (reprodução)

Instituto Humanitas Unisinos

Sexta-feira, 2 de maio, 1519, aos 67 anos (ele nasceu sábado, 15 de abril de 1452), morria no castelo de Cloux, hoje Clos-Lucé perto de Amboise, na margem esquerda do Loire na França central, Leonardo da Vinci. Serão impressionantes em 2019 as celebrações sobre este gênio, que deixou um igualmente impressionante patrimônio artístico, científico e literário.

Steve Jobs, fundador da Apple, não hesitava em considerá-lo como o mais alto modelo a ser seguido mesmo em nossos dias aparentemente tão distintos, e a razão seria o fato de que ele tinha sido capaz de conjugar ciência e arte, isto é, técnica e humanismo em um entrelaçamento único e criativo. Jobs o chamava de “o engenheiro renascimental” e podemos considerá-lo como aquele que resolveu antecipadamente o debate sobre as “duas culturas”, formalizado em 1959 pelo homônimo ensaio de Charles Percy Snow, que ele próprio era justamente de profissão químico e romancista.

O artigo é de Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 06-01-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Obviamente, não podemos agora delinear um retrato biográfico do personagem, aliás esboçado de forma exemplar em Leonardo de Carlo Vecce (1998), nem seguir sua extraordinária produção artística ou a sua suprema elaboração científica, e nem mesmo nos aprofundar em seu eventual pensamento sistemático, como fez em uma famosa conferência florentina, de abril de 1906, Benedetto Croce, dedicando-se ao Leonardo filósofo, texto posteriormente publicado pela Laterza na obra Saggio su Hegel, seguido por outros escritos de história da filosofia.

Também não é possível reunir a massa de suas anotações, muitas vezes aforísticas, de viés ético. Eis aqui apenas alguns exemplos: “Repreende o amigo em segredo e louva-o em público… Este homem tem uma fortuna louca, que sempre se esforça para não perder, e a vida lhe foge na esperança de desfrutar os bens adquiridos com tanto esforço… O homem tem um vasto discurso, do qual a maior parte é vão e falso; o dos animais é restrito, mas útil e verdadeiro. Melhor é a pouca certeza que a grande mentira … Felizes serão aqueles que prestarem ouvido à palavra dos mortos: leiam as boas obras e as observem… Quem pouco pensa, muito erra… Aquele que não castiga a maldade, dá ordens para que se faça… Oh, miséria humana, quantas coisas por dinheiro você se faz serva! … Quem semeia virtude colhe fama“.

E outras frases ainda, em particular, sobre a existência moral: “A vida bem vivida é longa … Assim como um dia bem empregado procura um sono feliz, também uma vida bem empregada termina com uma morte serena… Quem não estima a vida não a merece… Quando eu pensar que aprendi a viver, terei aprendido a morrer“. Para concluir com a famosa “Não se volte, se a meta for as estrelas“. […]

Augusto Marinoni publicou em “Vita e Pensiero” (n. 1/1983) um artigo intitulado A religião de Leonardo, tema que eu gostaria de mencionar, um assunto substancialmente negligenciado pelos especialistas em Leonardo.

Claro, há o ensaio de Rodolfo Papa, um pouco ousadamente intitulado Leonardo teólogo (2006). Na realidade, porém, trata-se da análise da iconografia bíblica de suas várias pinturas, sendo então as Sagradas Escrituras o grande código artístico fundamental: basta pensar na Última ceia em Milão, na Anunciação e na Adoração dos Magos nos Uffizi, na Virgem das Rochas, em Sant’Ana Metterza do Louvre, no incompleto São Jerônimo da coleção do Vaticano.

Cada artista se confrontava na época com esses temas com sua própria hermenêutica de múltiplas iridescências espirituais. Mas se quiséssemos identificar através de testemunhos autobiográficos a religiosidade pessoal de Leonardo, a colheita seria escassa, exceto visitas a homens da Igreja (como, por exemplo, o cardeal Luiz de Aragão ou o próprio Papa Leão X, que o hospedou em um apartamento do Belvedere entre 1513 e 1516). Prevalece a convicção de que a visão “teológica” leonardiana fosse de natureza panteísta naturalista, com uma prática religiosa tradicional e comum. A esse respeito é significativa a narração de sua morte feita por Vasari em sua famosa Vida dos artistas (1550). Aqui está um trecho:

Finalmente, tendo envelhecido, ficou doente por muitos meses; e vendo-se próximo da morte, dedicou-se diligentemente a se informar das coisas católicas e da via boa e santa religião cristã, e, depois, com muito pesar, confesso e contrito, embora não pudesse se manter em pé, apoiando-se nos braços de seus amigos e servos, se empenhou devotamente a consultar o Santíssimo Sacramento fora da cama. Quando o visitava o rei, que muitas vezes e amorosamente acontecia; para quem ele reverentemente tentava se levantar para a posição sentada, contando sua doença e acontecimentos, no entanto, mostrava como tinha ofendido a Deus e aos homens no mundo não tendo atuado na arte como era apropriado“.

A narrativa da morte piedosa, embora tendo como base a razão mencionada acima da adesão à fé comum, tem um aspecto comemorativo, como é a introdução fantasiosa do rei Francisco I de Valois, entre cujos braços reais Leonardo teria morrido (o soberano estava, na realidade, em um castelo em Paris na época). Sua vida foi velada por uma acusação de imoralidade: em 1476, sofrera uma denúncia por sodomia em Florença, mas a investigação terminara com uma absolvição.

Vasari o considerava um “herege“, mesmo que na edição seguinte da Vida (1568) tal definição tivesse sido omitida: “Fez em sua mente um conceito tão herético, que não se aproximava de nenhuma religião, estimando por ventura muito mais ser um filósofo do que um cristão“.

Certamente, como observou outro importante estudioso, Carlo Pedretti, o da fé de Leonardo é “um problema incômodo, para não dizer espinhoso“. A mesma natureza fragmentária e o ecletismo de seus escritos impossibilitam a elaboração de uma visão unitária nesse âmbito que por ele foi pouco tratado em relação aos temas científicos ou artísticos que dominaram sua pesquisa. Precisamente por essa razão, todo detalhe filosófico-teológico das suas anotações foi sujeito a interpretações antitéticas e hipotéticas. Assim, só para ilustrar, suas fortes críticas à credulidade em fantasmas levou a assumir a sua negação da imortalidade, enquanto a sua paixão pela pesquisa experimental (“a mecânica é o paraíso das ciências matemáticas”) foi lida por alguns como um opção determinista e materialista.

Freud representou Leonardo como um homem que acordou cedo demais na noite enquanto todos os outros ainda dormiam. No entanto, é visível nele a influência de Marsilio Ficino, filósofo platônico toscano, seu contemporâneo, que o leva a cavar, sim, na matéria para isolar seu dinamismo energético; mas esse movimento imanente teria sua origem no Primeiro Motor, Deus. Na essência humana, no entanto, seria a alma que constituiria essa energia que em nós que é imediata e metatemporal, expressa na mente, no conhecimento, no desejo de “voltar ao seu Mandatário“, Deus, fonte deste dinamismo vital e espiritual. É precisamente sob essa luz que sua definição de pintura como “discurso mental” deve ser decifrada. A matéria opõe a sua passividade, mas é o espírito que a move e a expressa com seu poder através dele.

Como cientista, Leonardo estuda as leis que regem a matéria; mas como artista tenta capturar as vibrações íntimas da alma que vivifica a matéria. Marinoni ressalta no artigo citado publicado na revista: “Deus não é apenas o Primeiro Motor que move o mundo, mas também o sumo Mestre e ‘altore’ ou seja, o artista que idealizou a forma do universo, sua obra-prima“. É sob essa luz que, ao criar suas obras artísticas, como escrevia Leonardo, “a mente do pintor se transmuta em uma semelhança da mente divina“.

Podemos então concluir com uma das raras profissões de fé em oração que ele nos deixou, onde amor e medo se cruzam de forma lapidar: “Você, ó Deus, nos vende todos os bens pelo preço do esforço … Eu lhe obedeço, Senhor, primeiro pelo amor que razoavelmente lhe devo, em segundo lugar, por saber como abreviar a vida dos homens”.

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