Direita

General Mourão parece uma ilha de lucidez no manicômio de Bolsonaro

Share

No manicômio em que se transformou o entorno de Jair Bolsonaro, o general Hamilton Mourão vem despontando como uma rara ilha de lucidez. A constatação é tão ou mais surpreendente quando se recorda a trajetória recente do vice-presidente

Antônio Hamilton Martins Mourão (reprodução)

Miguel Enriquez, DCM

No manicômio em que se transformou o entorno do presidente eleito, Jair Bolsonaro, com declarações intempestivas sobre política externa, propostas destrambelhadas na área econômica capitaneada pelo Posto Ipiranga Paulo Guedes, escolha de fundamentalistas de extrema direita para postos chaves como os ministérios das Relações Exteriores e da Educação, entre outros, acredite se quiser: o general Hamilton Mourão vem despontando como uma rara ilha de lucidez.

A constatação é tão ou mais surpreendente quando se recorda a trajetória recente do vice-presidente, seja nos seus últimos anos na ativa do Exército, seja no período eleitoral, propriamente dito.

Em 2015, quando ainda estava à frente do Comando Militar do Sul, em palestra a oficiais da reserva Mourão defendeu a possibilidade de uma intervenção militar, no país, além criticar severamente a então presidente da República Dilma Rousseff e programar uma homenagem ao coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, de quem é um grande admirador, sentimento compartilhado, com Bolsonaro, por sinal.

O conjunto da obra custou-lhe, além do rótulo de boquirroto, a perda do comando da tropa e a transferência para a burocrática Secretaria de Economia e Finanças do Exército.

Em setembro do ano passado, Mourão voltou a preconizar o golpe, o que apressou sua passagem para a reserva e possibilitou sua candidatura como vice- de Bolsonaro.

Durante a campanha eleitoral, o general da reserva consolidou sua fama de falastrão, para desconforto do próprio Bolsonaro, diga-se, empenhado em amenizar para consumo externo sua imagem de troglodita e truculento.

Em sucessivas ocasiões, Mourão soltou o verbo, com referências pejorativas à indolência e malandragem dos índios e negros, às famílias dirigidas apenas por mães e avós, definidas como “fábricas de elementos desajustados”.

Não faltaram críticas a existência do 13º salário, que chamou de típica jabuticaba brasileira, que pesaria em desfavor dos empresários, além de propostas estapafúrdias, como uma nova Constituição elaborada por notáveis, e a possibilidade de autogolpe de parte de um futuro governo.

Quando você vê que o país está indo para uma anomia, anarquia generalizada, que não há mais respeito pela autoridade, pode haver um autogolpe por parte do presidente com apoio das Forças Armadas”, afirmou em entrevista à GloboNews.

Passadas as eleições, no entanto, à medida que Bolsonaro retomava os disparates de sempre, com a milionária contribuição de seu grupo mais próximo (os garotos, Paulo Guedes e o tal Gustavo Bebbiano, ex-presidente do PSL, a legenda de ocasião pela qual foi eleito), aqui e ali Mourão foi baixando a bola, manifestando alguns rasgos de lucidez.

A entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, publicada nesta sexta feira, 23, é um bom exemplo dessa postura. Notoriamente dotado de formação intelectual mais sólida e mais articulado do que o capitão Bolsonaro, o general Mourão tratou de contestar e colocar no devido lugar algumas das ideias e propostas mais estapafúrdias do futuro presidente, principalmente no que se refere à política externa do novo governo, orientada pela subserviência ao presidente americano, Donald Trump.

A defesa do pragmatismo, que retoma a política exterior do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), o penúltimo dos presidentes militares, que evitava o alinhamento automático com os Estados Unidos, preconizado hoje por Bolsonaro e pelo chanceler abilolado Ernesto Araújo, é um dos pontos altos da entrevista.

Sob Geisel, o Itamaraty ampliou a presença do Brasil na África e foi dos primeiros a reconhecer os governos socialistas da Portugal e de Angola, após a derrubada do Salazarismo, em Portugal, além de reatar as relações diplomáticas com a China.

A posição dos EUA é inquestionável”, afirmou Mourão. “É a potência hegemônica, que tem capacidade de travar guerra em dois locais diferentes ao mesmo tempo e grande projeção tecnológica. É um mercado a ser explorado e uma parceria estratégica.”

Ao mesmo tempo, porém, Mourão, que de bobo não tem nada, não embarca na canoa furada de Bolsonaro em relação à China, atualmente um parceiro comercial muito mais importante do que os Estados Unidos. “Mas não podemos descuidar dos outros grandes atores da arena internacional”, disse. “Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China.”

Na verdade, o general parece conhecer melhor os números do comércio exterior do que Bolsonaro, o Posto Ipiranga e seus acólitos.

Entre 2010 e 2017, as exportações brasileiras para a China somaram nada menos de US$ 321,20 bilhões, contra US$ 197,6 bilhões vendidos para os Estados Unidos. Disse Mourão: “Uma briga com a China não é uma boa briga, certo? Tenho certeza absoluta de que nós não vamos brigar —34% das nossas exportações são para a China. Não podemos fechar esse caminho pois tem outros loucos para chegarem nele”.

O mesmo raciocínio vale para as relações com o Mercosul, subestimado e espezinhado por Guedes, um empresário que nunca produziu ou vendeu um prego na vida e fez fortuna com a especulação financeira.

A Argentina, com US$ 136,9 bilhões, foi o terceiro maior destino das exportações de produtos “made in Brazil”, no mesmo período. Por isso, embora admita que o Mercosul não esteja cumprindo a sua função, Mourão opõe-se a proposta de que seja colocado em segundo plano. “Antes de pensarmos em extinguir, derrubar, boicotar, temos que fazer os esforços ainda necessários para que atinja os seus objetivos”.

Os interesses econômicos também levaram Mourão a detonar a ideia de jerico do futuro presidente de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.

É óbvio que a questão terá que ser bem pensada. “É uma decisão que não pode ser tomada de afogadilho, de orelhada”, afirmou.“Nós temos um relacionamento comercial importante com o mundo árabe. E competidores que estão de olho se perdermos essa via de comércio.”

Transformado numa espécie de “grilo falante” do futuro governo, Mourão também investiu contra duas bandeiras caras ao bolsonarismo: a negação das mudanças climáticas e a intervenção militar na Venezuela. “Não resta dúvida de que existe um aquecimento global”, afirmou. “Não acho que seja uma trama marxista”.

Da mesma forma, ele descarta qualquer ação militar contra o governo Maduro. “Não faz parte da nossa tradição diplomática a intervenção em assuntos internos de outros países”, lembrou. “O que o Brasil pode fazer é participar do esforço conjunto internacional para que a democracia retorne ao país, mas com uma pressão diplomática, sem retaliações”.

O pragmatismo de Mourão aparenta ter origem no realismo aprendido em seus mais de 40 anos de caserna. “Nós podemos comprar as brigas que podemos vencer”, observou. “As que a gente não pode, não é o caso de comprar”.

Diante do inevitável, que é a posse de um presidente eleito com 57,8 milhões de votos, a expectativa é de que gente como Mourão mantenha essa posição diferenciada e consiga conter as barbaridades esperadas de um governo Bolsonaro.

Essa possibilidade, porém, é vista com ceticismo pelo professor Oliver Stuenkel, coordenador da Escola de Ciências Sociais e pelo MBA de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo.

Seria tolice acreditar que o Mourão pode anular/superar os radicais pró Trumpistas, negadores de mudanças climáticas e anti-globalistas em torno de Ernesto Araujo, Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho em todos os assuntos”, afirma Stuenkel. “Ele terá que escolher suas batalhas. Será um eterno controle de danos”.

Ou seja, o “grilo falante” vai ter que rebolar para minimizar o desastre que se anuncia.

Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook