João Miranda
Colunista
Ditadura Militar 26/Out/2018 às 00:13 COMENTÁRIOS
Ditadura Militar

Fui dormir e acordei em 1964

João Miranda João Miranda
Publicado em 26 Out, 2018 às 00h13

Breve história da sociedade brasileira

João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político

Fernanda ficou virando a taça vazia entre as mãos. Apesar de já ter terminado o seu prato, continuava com fome. Na tela de TV, a imagem mostra o candidato extremista sendo transmitido para dezenas de pessoas num telão erguido no meio da Av. Paulista. A cena a faz lembrar do grande irmão de 1984. O som da TV é abafado pelo do aparelho de som conectado ao Spotify, por onde sai a voz de um cantor de sertanejo universitário que envolve toda a sala com a sua sofrência; barulhos esses que se misturam ao tilintar dos copos, ao som metálico dos talheres, as vozes que mantêm um tom na direção da euforia obrigatória.

Em volta dela, a sua família que, enquanto engole pappardelle al sugo com alcatra – especialidade da Dona Zefa, a empregada – e dão longos goles de vinho suave, opinam sobre tudo, com um ar de segurança sobre o que dizem de fazer inveja aos mais doutos. O olhar dela migra da TV para eles, e vice-versa. Ela observa em silêncio as bocas deles se movendo, nas quais a comida fina vai de um lado ao outro para abrir espaço para as palavras grossas que saem uniformes como os elos de uma grande cadeia de ferro.

— Não resolvemos grandes coisas — diz o primo. — Mas ao menos iremos lavar a alma ao tirar aquela bandidagem do governo.

— Se Deus quiser — grita a tia, se agitando na cadeira. — Ele vai botar ordem na casa.

— Por falar em bandidagem, viram o que aconteceu no morro, né? — diz o tio.

— Mas também, tava na favela de roupa curta, pediu pra acontecer. — disse o avô, enquanto acena para Daniel, o jovem garçom da família, para que ele encha a sua taça.

Fernanda olha com atenção para Daniel. E, por um instante, deseja vê-lo quebrando a garrafa de vinho na cabeça daquele velho que abusa da secretária da firma.

— Sem dúvida — concorda o tio, enquanto acaricia os cabelos sedosos do filho. No seu sorriso clareado a laser o brilho de orgulho pelo garoto que, mesmo sendo tão jovem, já é dono de imóveis no centro da cidade.

— Chato é agora aqueles petistas no face e whats espalhando mentiras sobre o mito — diz o primo, enquanto retribui com o olhar o carinho do pai. — Hoje em dia tem gente chata pra todo lado.

— Não querem largar a vidinha fácil — afirma o avô com ar zombador.

— Pois é, eu acho que ao invés de ficar jogando dinheiro fora com bolsa, o governo tem é que jogar uma bomba naquela porra de morro, ou no mínimo fazer um muro nos separando daquela merda toda — diz o tio.

— Pra isso acontecer só Bolsomito 2018 — diz o primo. — Aquele sim tem coragem.

Fernanda ouve os velhos preconceitos maquiados com as tintas de um moralismo hipócrita, vestidos com as roupas caretas de uma ética liberal-fascista, e sente que os seus ouvidos estão prestes a sangrar com toda essa velhacaria absurda. Mil alfinetes penetrando todo o seu corpo doeria menos do que ouvir essa gente de mentalidade enraizada nas profundezas de uma violência sem fim.

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Quando perguntam a sua opinião, ela olha para a faca mais próxima, olha para os próprios pulsos, e não encontra outro tipo de resposta que não seja “hum”, porque os pedaços marcantes da conversa estão ecoando na sua cabeça, impedindo-a de pensar noutra coisa.

Antes ela também dizia o que pensa. À proporção que o tempo passou, se deu conta de que é masoquismo tentar estabelecer diálogo com quem não tem abertura para ideias contrárias. Percebeu que é um castigo de Sísifo tentar dialogar com gente que vive voltado para o mar e de costas para o Brasil. Fernanda apresentava os seus argumentos, escutava, mas, independentemente do esforço dispendido, a pedra sempre acabava rolando ladeira abaixo.

A sua família está acostumada com a opulência em que vivem no litoral. Caixas-de-pandora-ambulante, não entendem que o país é muito mais do que qualquer zona-sul. E essa lógica de condomínio cria em volta deles fortalezas que não os deixam aceitar qualquer coisa que fuja de sua cosmovisão formada pelas vitrines da loja cara e fake news. Vivem em volta de cercas e grades combatendo tudo o que é diferente, tudo o que não for espelho, como se fosse ameaça. Mandam para Cuba qualquer um que não se faça de cego aos direitos humanos, aos direitos das minorias, à universalidade e diversidade da vida. Anestesiados com fluoxetina, querem respostas simples para perguntas complexas. Vivem na escuridão de sua própria ignorância escondendo o vazio existencial dentro da bolsa cara e abafando o cheiro de medo com perfume francês.

— Daniel, mais vinho por favor — pede Fernanda estendendo a taça.

Bebe lentamente com o ar solene que lhe é habitual e vai para a janela.

Os parentes se levantam da mesa e vão para o centro da sala, onde dão as mãos formando um círculo para com os olhos fechados rezarem em agradecimento ao jantar que tiveram. Daniel corre até a TV, a desliga e faz o mesmo com o aparelho de som; um silêncio pesado se forma para a oração. Daniel e Dona Zefa seguem para a cozinha, onde esperarão os patrões saírem da sala da jantar para que possam tirar a mesa.

Da janela do apartamento, Fernanda vê a vitrine de uma loja e a rua deserta. A cidade pousa em seu labirinto místico de ruas e almas vazias. Em cada esquina uma vida perdida. Sem que a família perceba, ela abre a janela, sobe no parapeito e se joga do quinto andar.

*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, trabalha na rede pública do Estado do Paraná e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical. Email: [email protected]

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