África

Omana Ngandu: o refugiado que personifica o mungazi

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Felipe Antonio Honorato*, Pragmatismo Político

Quem vê o congolês Omana Kassongo Ngandu, com sua fala mansa e seu sorriso fácil, nunca imagina as indas e vindas que a vida já lhe impôs. Filho de uma mãe viúva, que sustentou a família com a produção de cerveja artesanal, Omana decidiu-se a militar pelos direitos das mulheres e das crianças numa das regiões mais violentas do mundo. Após organizar uma greve que durou 5 dias, uma noite, o exército bateu em sua porta de forma derradeira: lhe torturaram e depois o levaram para a floresta, junto com outras pessoas, para serem executados. Os fizeram cavar a própria vala, mas, por puro acaso, o atirador errou o tiro, que, de forma não letal, atingiu a barriga de Omana. Ele se escondeu na vala, em meio aos corpos e o sangue dos demais. A vida decidiu que não era a hora de Omana desencarnar: um dos soldados lhe reconheceu, pelo ativista, em uma ocasião, ter ajudado um de seus familiares; ele resgatou Omana. Sua família, com os quais já havia ensaiado uma fuga pois não era novidade que sua militância incomodava o governo, assim o fez, deixando as partes um sem notícia da outra por anos.

Omana agora vive na zona leste de São Paulo. Por aqui, continua sua luta: toca uma organização sem fins lucrativos que ajuda pessoas que chegaram à maior cidade brasileira na mesma condição que ele. Seu sonho? Expandir ainda mais sua organização, para que ela não só tenha capacidade de ajudar refugiados em São Paulo, mas também possa colaborar com deslocados internamente na República Democrática do Congo. Nesta entrevista, Ngandu falou, além de sua vida de superação e de sua militância, de política, cultura e da condição dos refugiados no Brasil.

Pragmatismo Político: Tua vida é cheia de passagens de superação, é permeada por desafios. Você, infelizmente, perdeu o pai muito cedo. Gostaria de te pedir para contar como foi a vida de sua mãe, como mãe solteira, e sua, criança / adolescente criado por uma mulher viúva.

Omana Ngandu: Bom, em primeiro lugar meu nome é Omana Kassongo Ngandu. No Congo, temos uma significação para cada nome e Ngandu significa crocodilo. Quando criança, tive uma vida normal, como todo mundo. Minha vida mudou quando eu tinha 10 anos, porque, neste momento, meu pai faleceu. Quando meu pai faleceu, foi uma situação muito difícil, porque no costume do africano, no nosso costume, quando o pai falece, o responsável pela família falece, minha mãe deveria ficar responsável pela irmã do meu pai, quase como uma herança.Foi difícil para a minha mãe, porque ela era uma mulher muito educada e falou “não, não posso”. Então, na família, foi uma revolução e eles não queriam deixar minha mãe ficar mais na casa do meu pai – colocaram ela pra fora. Então, neste momento, foi difícil, tudo mudou; neste momento eu vi que mulher é uma coisa, uma máquina que serve só para fabricar criança, não tem direitos. Minha mãe falou para nós que nós íamos mudar, íamos a uma cidade muito bonita; mudamos para uma aldeia, onde ela se sentiu feliz para fazer uma vida melhor. Neste momento ocorreu uma mudança também na minha cabeça; falei “vou estudar muito para ajudar minha mãe, vou estudar muito para fazer alguma coisa”. Eu era criança, não sabia muito bem das coisas e estava procurando alguma forma para falar com esse povo, para promover uma revolução, para coincientizar minha família, e estudar foi minha primeira preocupação. Acabei meus estudos, voltei e queria que minha mãe ficasse muito feliz com isso, mas ela faleceu antes de eu começar a trabalhar. Neste momento eu passei a considerar que toda mulher era minha mãe e que esse sofrimento das mulheres era meu também. Decidi então fazer alguma coisa para ajudar as mulheres e as crianças. Foi isso que aconteceu, foi muita coisa.

Você, por um tempo, foi intercambista na França, certo? A imigração para a Europa é um assunto que está em voga hoje, por isso, gostaria que contasse como foi sua experiência de imigrante na França.

Bom, na França não foi como se eu fosse um imigrante, lá fui como alguém que vai estudar, faz uma pesquisa. Foi uma doação de uma escola e também de um amigo que foi como padre para a França e que me ajudou com isso. Estes 4, 5 anos passaram rápido, fui, voltei, fiz a pesquisa e só. Minha vida foi boa lá, não foi uma experiência muito forte, porque eu considerava tudo como novidade; neste momento não considerei fazer uma vida lá, como aqui, tem muita diferença. Lá foi uma coisa transitória

Houve, em 1994, o trágico episódio do genocídio em Ruanda, que é vizinha da RDC. Este acontecimento trouxe profundas consequências ao Congo. Você recorda como foi, à época, a repercussão deste fato na RDC? Houveram reflexos imediatos em sua região, em sua vida cotidiana?

Em 94 eu estava em Goma trabalhando. Ruanda e Congo, antes dessa guerra, eram como uma coisa só, porque muitas pessoas, para fazer comida, para comprar carne, precisavam ir à Ruanda, atravessar a fronteira, porque lá era melhor para comprar do que no Congo. Nós comprávamos muita coisa lá, o intercâmbio era muito grande. Haviam muitos Tutsis no Congo, a maioria dos Tutsis moravam no Congo. Todo mundo convivia bem… eu, até então, não percebia nada ruim, nenhuma diferença. Depois deste genocídio, tudo mudou, foi uma coisa muito forte, porque tinham pessoas que eram amigas que estavam juntas, e depois, no outro dia, tudo se inverteu e um matou o outro. Eu acho que, talvez, isso tenha sido algo preparado no exterior, fora de Ruanda, porque não é assim, ao mesmo tempo, tão rápido, que se pode promover mudanças como essas. Eu assisti quando uma mulher, que morava na mesma pensão que eu, sua amiga vai lá e chama um bandido para matá-la, na nossa frente, isso em Gisenyi [ extensão da cidade de Goma, extremo leste da RDC, já em território de Ruanda]… esse filme até hoje me vem à cabeça e foi horrível. Foi horrível. Eu assisti mais de 30 ou 35 execuções, eu vi com meus próprios olhos. Foi horrível e eu, à época, comentei com amigos “este sistema não é de hoje, tudo que vocês estão vendo aqui existe há tempos e isso terá consequências no Congo”. E foi verdade. Depois de pouco tempo Gisenyi mudou, Goma mudou, todo o Congo mundo e você precisa ver o tanto de gente que morreu, não assassinada, mas doente de cólera. Eu acho que, por dia, de 200 a 300 pessoas morreram de cólera no Congo. Foi difícil… Bem nesta época, eu comecei a trabalhar em uma ong de ajuda humanitária e foi difícil ver o tanto de pessoas que morreram de cólera… Você, por exemplo, pensa em uma cidade como Campinas, aí todo mundo que mora em São Paulo, de uma hora para outra, se muda para Campinas. Campinas não vai conseguir absorver todo aquele número de pessoas – foi isso! Ruanda inteira foi para o Congo. Neste momento, a violência também aumentou muito no Congo. Alguns grupos rebeldes apareceram, como os Mai-Mai, um grupo de pessoas que queriam fazer uma resistência para proteger o Congo. O Congo foi dividido entre três grupos: o grupo de Mobutu, os Mai-Mai e esses Hutus, que haviam feito o genocídio em Ruanda. Os Hutus, para entrarem no Congo e expulsarem o Mobutu, ultilizaram os tutsis. Não foi fácil. Meu irmão, Ngandu, estava como um dos chefes dos rebeldes e lutou junto com o Kabila para derrubar o Mobutu. Houve uma hora que a gente teve até dificuldade para enterrar os mortos, pois já não tinha espaço na terra pra tanta gente… foi difícil.

Você teve de se exilar da RDC por causa de sua militância em prol dos direitos humanos. Como começou essa militância? Como era sua atuação?

Como comentei antes, por causa da minha mãe, eu, já de muito tempo, tinha vontade de fazer algo pra ajudar mulheres e crianças. Aí, com essa situação do genocídio em Ruanda e toda a confusão que tomou o Congo depois, quando a guerra começou, os primeiros que pegaram foram as crianças, para fazer guerra, para carregarem arma de fogo. Com essa guerra também, as mulheres perderam de vez seus poucos direitos, por que as mulheres estavam no centro da sexualidade, eram objetos sexuais, por que, naquele momento eles tinham uma arma de fogo nas mãos e, por isso, poderiam ir aqui ou ali obrigar uma mulher a ficar com eles, se casar com eles. Eu percebi que não tinha ninguém que chegasse e discutisse sobre os direitos das mulheres e, na minha cabeça, isso era algo que deveria ser feito, eu queria ajudar a proteger essas mulheres. Além disso, eu via criança de 10 anos já com arma na mão e sabia que estas crianças não teriam futuro. Eu via tropas do governo chegar em lugares e levaram estas mulheres para a guerra e pensava “este não é tipo de guerra boa, as coisas estão ruins”. Então eu resolvi agir: primeira coisa foi criar uma ong, por que eu sozinho não iria conseguir fazer alguma coisa, mas se eu chamasse meus amigos e outras pessoas para me ajudar, seria diferente, teria visibilidade. Depois, eu comecei a expor as idéias para as pessoas,a conversar com esse, aquele, não tive medo. Comecei a fazer campanha sem a autorização do governo, pois eu não queria dar ao governo a oportunidade de me dizer que eu podia ou não podia fazer, e essa também foi uma estratégia para chamar atenção das pessoas… esse foi o começo… eu parei por um tempo, depois voltei, demorou 6 anos para alguma pessoa aderir a aquilo que eu estava falando, que eu estava defendendo. No início foi difícil, foi bem difícil. A ong se chamava Actions Urgentes D ‘Utilité Publique.

E foi aí que você entrou no “radar” do governo?

O problema não foi eu fazer uma militância em prol das mulheres e das crianças, mas sim eu ter falado contra o governo. Acontecia alguma coisa a noite, por exemplo, e, no outro dia, o governo chegava e falava “foi tal grupo que fez isso”. Eu comecei a perceber que, muitas vezes, não era assim. O próprio governo fazia as coisas e, depois, espalhava os rumores. Eu comecei a falar “não, não, não é bem assim”. Foi aí que o governo entrou na dança. Quando o governo fecha um contrato e o povo das regiões afetadas pelo fechamento desse contrato dizem que não vão aceitar o cumprimento do acordo, é o governo que vai lá matar as pessoas, não este ou aquele grupo rebelde, justamente por que aquelas pessoas estavam contra o contrato. Eu comecei a incentivar as pessoas a protestarem contra o governo. Quando vieram me pegar foram tropas do governo, não foram os bandidos dos quais eles sempre falavam.

Do dia em que o exército bateu em sua porta até sua chegada a SP, como foi sua trajetória?

É muita coisa pra eu contar tudo, mas quando eu saí do Quênia, passei por outro país antes de chegar em São Paulo. Quando cheguei em São Paulo, fui recebido por uma irmã; na África, nós chamamos todo mundo de irmã, porque lá todo mundo é irmão. Então aqui eu fui recebido por uma irmão do Congo, fui na casa dela, depois tive alguns problemas lá na casa dela, por causa do marido, não deu certo. Eu preferi sair e fui morar na rua, na praça da Sé. Toda vez que passo por lá, se eu tenho alguma coisa no bolso e eu vejo alguém morando na praça, eu dou alguma coisa, por que eu também já passei dias da minha vida naquele mesmo lugar, na mesma situação. Aí eu comecei a perguntar, procurar alunos, qualquer dinheirinho que eu tinha, ia pra internet buscar alunos. Antes disso, trabalhei num lava rápido; trabalhei lá por 15 dias, não consegui trabalhar muito, por que uns problemas de saúde me atrapalharam; no lava rápido o trabalho é muito difícil, e então eu falei com meu patrão, que foi uma pessoa muito boa comigo, que eu não ia conseguir, pois ali trabalhava das 8 às 17, sem horário de almoço; meu patrão me perguntou “mas o que você vai fazer, Omana?” e eu disse que era professor e ia correr atrás de alunos. Nesse tempo, uma amiga brasileira me convidou para ir até São José dos Campos e eu, mesmo com pouco dinheiro, aceitei ir. E esse foi o início da minha vida. Eu fui até o Terminal do Tietê, peguei o ônibus, fui e, no meio da viagem, a minha amiga me ligou, começou a falar em português comigo. Até então, sempre que ia falar com ela, eu usava o Google, mas ao vivo era outra coisa, era muito difícil pra mim. Então eu pedi pra alguém pegar o telefone e me ajudar a falar com ela. Você imagina, hoje eu falo português com dificuldade; quatro anos atrás eu não falava nada, nada! Eu saí procurando alguém que falasse minha língua dentro do ônibus. Perguntei para um rapaz se ele falava francês e ele respondeu “eu também falo francês”; Meu Deus! Eu perguntei o nome dele, ele respondeu que se chamava Paulo de Tarso, me ajudou a me orientar, tudo certinho… daí ele me perguntou se eu era refugiado, eu respondi que sim, então ele falou que precisava conversar melhor comigo e disse que entraria em contato comigo. Eu cheguei em São José dos Campos, desci onde minha amiga estava me esperando, deu tudo certo e a noite eu voltei. Isto foi em um sábado; na segunda este jovem, Paulo, me ligou “Bonjour, monsieur. Je suis Paul de Tarso. Estou aqui pelo centro. Você está por perto ? Será que você poderia vir até a Biblioteca Mário de Andrade ? » Eu fui lá, contei minha situação pra ele, ele começou a chorar e disse «hoje mesmo você vai ter um lugar pra ficar » e ele me deu tudo. Ele me emprestou dinheiro, encontrou uma casa para mim e um amigo com dois quartos, sala, banheiro, tudo bonitinho e também, por indicação dele, eu consegui 10 alunos. Foi o primeiro dinheiro que eu consegui ganhar aqui no Brasil. Tudo começou com esse homem. Eu fui indo, indo, tiveram muitas pessoas que me ajudaram e, depois de 3 anos aqui, eu encontrei minha família, pois até então eu não tinha idéia de onde eles estavam, e graças a esse homem também, o Paulo, pois ele me deu um computador, que meu filho usa até hoje, que eu usei para procurar notícias deles. A partir dessa minha trajetória, eu decidi fazer alguma coisa para ajudar meus irmãos. Eu achei que dando aula conseguiria ajudar, mas tem épocas que você tem aluno, outras não. Como eu trabalhava como voluntário na Adus, eu falei com o Marcelo e perguntei como eu podia fazer para ajudar meus irmãos também. Ele respondeu que se eu criasse uma ong, eu poderia ajudar, ou então eu poderia também trabalhar em parceria com a Adus ; eu preferi fazer uma coisa de forma independente. Quando eu comecei, não tinha nada, o primeiro espaço consegui através de uma mulher que me visitou ontem, professora Suelma, que conseguiu que os dois primeiros meses fossem grátis e depois eu teria que pagar 500 reais por mês, e estou seguindo até hoje !

Você acha que o Brasil e São Paulo, mais especificamente, são lugares acolhedores com refugiados?

Eu acho. Olha todas estas doações que estão aqui, são de brasileiros. 99% deles querem ajudar refugiados. Na cabeça do brasileiro, a primeira coisa que se passa é ajudar o próximo. Tem alguns brasileiros que, não sei, tem problemas com refugiados, mas 99% deles querem ajudar. O brasileiro, mesmo que ele não tenha nada, ele ajuda, de uma forma ou de outra. E falo para meus amigos que eu acho que tá errado na Bíblia Jesus ter nascido em outra terra, ele deveria ter nascido aqui, aqui no Brasil, principalmente em São Paulo. Eu morei na França, lá todo mundo é fechado, cada um na sua vida. Lá, se algum refugiado chega em alguma aldeia, eles começam a se perguntar “na nossa cidade? Por que na nossa cidade?”. Aqui não, ninguém te nega um abraço… Eu gosto muito do povo brasileiro, pois é um povo que tem vontade de dividir. O problema aqui não é o povo, mas sim o sistema que o governo brasileiro está usando para tratar da questão dos refugiados; o governo ainda não tem um política melhor para orientar esse refugiado, é ruim para o refugiado, por que o refugiado chega aqui e dão pra você carteira de trabalho, protocolo e CPF. Acabou. Não é todo mundo que fala português, como angolanos, ou o pessoal de Guiné-Bissau, de Moçambique, por exemplo. Você chega em organizações, como a Casa do Migrante, que fazem um belo trabalho mas são pequenas, passa a noite lá, durante o dia você precisa sair, corre atrás de emprego, depois de três meses você precisa sair, pois também tem outras pessoas necessitando usar aquele espeço; você não conhece ninguém, você vai pra onde?

Procurar quem? Vai fazer o que? Esta forma de lidar com as coisas é muito perigosa para o refugiado, por que, se um refugiado nesta situação é convidado a vender drogas para poder sobreviver, ele vai. Por que não há uma política adequada para ele, então ele se vê ali, sem emprego, sem uma companheira, sem comida, e ele aceita. É muito, muito complicado… Eu conheço refugiados que eram perseguidos em suas regiões de origem, que foram para Angola, mudaram de nacionalidade para poder pegar o passaporte angolano e, depois, vieram para o Brasil, que chegaram aqui e não encontraram nenhuma oportunidade de emprego e, por isso, começaram a transportar droga e hoje estão presos! São pessoas que não podem voltar para seus países, como eles vão viver? Hoje tá tudo complicado, não tem trabalho. Tem gente que a família tem visto, mas ele não tem dinheiro para trazer a família para o Brasil. A perseguição em nossos países é verdadeira: quando alguém quer, ela vai atrás e te mata, então estes refugiados precisam trazer a família pra cá. Agora, como fazer para pagar o passaporte e 1500 dólares de passagem para embarcar a família para o Brasil? Tem gente que leva 5 anos para trazer 1 pessoa… Tem pessoal que acaba caindo no trabalho escravo, trabalhos que a lei brasileira não aceitaria, coisa como trabalhar das 6 às 20 horas para ganhar seus 800 reais. Como esse sujeito pode denunciar? O refugiado vai lá, denuncia, e o que vai acontecer com esse patrão? E com o refugiado? É muito difícil. É preciso o diálogo entre o governo e alguma liderança dos refugiados… Há o problema da moradia também. O refugiado acaba encontrando como alternativa as favelas e as ocupações, pois moradia custa muito caro aqui no Brasil, muito, muito caro, é dificil para o refugiado obter. Ele vai lá, em uma favela ou em uma ocupação, paga 200, 250 reais de aluguel e isso é o que ele pode obter, é o que é bom para ele. As igrejas são locais onde há uma bela interação entre refugiados e brasileiros, onde também sempre há solidariedade.

Sua militância continua aqui em SP. Gostaria que você falasse um pouco sobre a Mungazi.

A Mungazi foi criada em 2015, mas só conseguimos ter documentos e CNPJ ano passado. Ela foi criada para dar apoio, para ajudar nosso amigos refugiados. A ong foi criada para refugiados e estamos ajudando refugiados, mas é uma Ong de cada um de nós que nos juntamos: tem brasileiros e estrangeiros ajudando e juntos fazemos o trabalho. Ajudamos refugiados aqui no Brasil e também queremos ajudar refugiados lá fora, pois nem todo mundo irá conseguir chegar aqui. Hoje, ajudamos mais de 1500 refigados que estão cadastrados, mais de 500 crianças, mais de 200 famílias.. eu já coloquei mais de 40 famílias no mercado de trabalho… Porém, precisamos de ajuda também!

Não temos um parceiro, uma ajuda financeira – ainda não! Não temos uma empresa que se diga nossa parceira e nos ajude sempre – ainda não! Temos a Cruz Vermelha e outras empresas que nos ajudam de forma pontual, como quando, por exemplo, promovemos alguma festa: dia da criança, páscoa, enfim. Nós temos como objetivo, em nosso trabalho, ajudar o refugiado ou o imigrante a se adaptar a uma vida nova; essa adaptação à vida nova não se resume ao imigrante ou refugiado receber doações; estas pessoas precisam de assistência jurídica, por exemplo, de emprego, de aulas de português… nós queremos as colocar no caminho de sua independência financeira. O grande projeto, no momento, é conseguir ajudar pessoas no exterior; no Congo, no Burundi, onde há refugiados internos… gente que deixou sua aldeia, fugiu e precisa de ajuda: roupa, sapato, açúcar, alguma coisa; colocar isso em um contaeiner e enviar para lá.

Também queremos levar pessoas de nossa organização para ir até a região e prestar suporte. Estamos buscando ajuda para poder tornar tudo isso realidade. Além de todos estes projetos, há ainda nosso centro cultural para crianças refugiadas, que esperamos que cresça ainda mais.

O nome Mungazi tem um significado todo especial. Pode explicar qual?

Mungazi é uma planta simbólica na África, primeiramente porque mungazi significa esperança. Mungazi não nasce onde não existe povo; se você se perder na floresta – e você sabe que na África, especialmente no Congo, tem muita floresta – você procura pelo mungazi e acabou: onde a planta está, tem gente; se você chegar onde há mungazi e não tiver gente, pode sentar ali e aguardar, porque logo vai aparecer alguém por lá. Por isso mungazi significa esperança. Em segundo lugar, mungazi é comida, o miolo de seu caule é comida, é o principal; dele dá para se extrair óleo de dendê e olho de palma também. Do mungazi, de uma parte que chamamos Umumbo, dá para se extrair bicarbonato, que não serve só para cozinhar, mas também é ótimo para se passar em machucados e queimaduras. Deixamos garrafas penduradas no mungazi para colher a “água” que sai dele durante a noite; é um ótimo remédio para mães que estão com dificuldade para gerar leite: é dar esse líquido para ela beber, 3, 4, 5 vezes e a questão está resolvida! Este mesmo líquido, se você deixar ele descançando durante o dia e colhê-lo só a tarde, vira uma bebida alcoólica muito forte, o Lumayi-mayi sélé; se tomar um copo, você não consegue sair andando… Nas aldeias, no fim da tarde, o pessoal costuma se reunir, tomar esse líquido, dançar…é uma festa! (risos). Das raízes, pode-se fazer remédio que é útil para curar algumas doenças sexualmente transmissíveis – um antibiótico muito forte! Além disso, damos a raiz para os bebês que sofrem com cólicas.

O mungazi, se você cortar ele em dois pedaços e jogar cada pedaço para um lado, as duas partes vão brotar, criar raiz e gerar um novo mungazi. Por isso, eu digo que eu sou um mungazi: me arrancaram lá do Congo, me jogaram aqui no Brasil, e aqui eu cresci, renasci! Por essas razões resolvemos colocar o nome da ong de Mungazi.

A Ong depende de doações. O que doar e como doar?

Nós da Mungazi, hoje, queremos várias coisas. Se uma pessoa puder nos ajudar financeiramente, ótimo, mas as pessoas podem contribuir com o que quiserem, pois os refugiados que ajudamos aqui estão em várias situações diferentes, com várias necessidades diferentes e, com toda certeza, vamos encontrar alguém que esteja precisando aquilo que foi doado.

Qual sua opinião sobre a atual situação política no Congo? Eram para terem sido realizadas eleições no final de 2017, que foram adiadas, enfim. Como você analisa tudo isso?

Pessoalmente, quando eu morava no Congo, não conseguia entender os motivos para a guerra. Agora que estou vivendo aqui no Brasil, depois de refletir muito, eu sei o que podemos fazer pelo Congo: a guerra do Congo não é uma guerra deste presidente, é uma guerra de fora, uma guerra internacional. O Congo está pagando o preço por suas riquezas, é isso. O atual presidente [Joseph] Kabila, o presidente que entrar, estão dependentes do grupo de pessoas que roubam as riquezas do Congo e não tem vontade nenhuma de ajudar o país ou melhorar a situação de vida dos congoleses. Este grupo de pessoas não aceitaria que um presidente responsável, que fizesse alguma coisa para mudar esta situação, assumisse a presidência do Congo, vão fazer de tudo para colocar lá uma pessoa que dê continuidade à exploração o máximo de tempo possível. Acho que, como a guerra do Congo é uma guerra externa, precisamos nos juntar e fazer “guerra” lá fora também: reunir estas grandes empresas da informática e da eletrônica que utilizam muito mineral congolês, e elaborar maneiras de explorar as riquezas do país de forma mais responsável; o problema não é explorarem nossos minerais, que é uma atividade que sustenta muitas famílias no Congo, mas sim explorar de forma que, só apenas estas grandes companias ganhem – os congoles tem de se beneficiarem também, sem que ninguém faça uso da força, sem trazerem armas para dentro do Congo.

Para terminar: como bacharel em letras, o que indicaria a quem quer conhecer a literatura congolesa?

Zamenga Batukezanga, que foi o escritor que me inspirou a estudar letras. Ele falava sobre a vida na aldeia, sobre ir para a Europa, e, muitas vezes, eu lendo os trabalhos dele achava que ele estava contando sobre mim.

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*Felipe Antonio Honorato é graduado em Políticas Públicas e mestrando em Estudos Culturais pela USP, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça pela UnB e colaborou para Pragmatismo Político.

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